Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.
O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou aatividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.
O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.
Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual,de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente —do conflito constante—em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.
O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.
A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.
Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar —sob tal conformação—que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.
Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.
Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.
O Globo/30 de abril de 2019
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