Confesso: o programa de governo que li com maior atenção foi o de Marina Silva. Posso criticá-lo e o farei, mas jamais ocultei a admiração por ela e pelo que traz para a discussão pública. Vejamos as propostas políticas do início de seu Eixo I, "Estado e democracia de alta intensidade". Recomendo a leitura do programa. Um dos maiores elogios à candidatura é que ela escreve e assina o que realmente quer. Não é um documento só para a Justiça eleitoral. Tenho ouvido gente dizer que programa se compra ou se encomenda, e depois se esquece. Advirto: não é essa a intenção da candidata.
O melhor da Rede é a vontade de empoderar a sociedade para discutir o que, hoje, é monopólio dos partidos e dos políticos. O projeto acerta ao dizer que não bastam choque de gestão ou eficiência gerencial, pois conferem mais poder ao gestor e desconhecem o caráter essencialmente político, até popular, da reforma do Estado - que deve aumentar seu teor de democracia, assim como democratizar mais a sociedade. A democracia atual é de baixa qualidade porque avessa às formas de participação: diagnóstico de esquerda, com o qual o PSDB dificilmente concordaria. Marina quer mais povo, não menos, no Estado. Critica a concentração de poder. Exige transparência, facilitada pelos recursos digitais hoje disponíveis. Não é fortuito que só ela, dentre as lideranças de oposição, não tenha atacado o decreto de Dilma Rousseff sobre a participação popular. Propõe "plebiscitos e consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas, orçamento democrático, conferências temáticas e de segmentos específicos". Elenca um rol admirável de formas de participação.
O projeto de fazer a política sair dos gabinetes, das câmaras, para estar na sociedade, seja em reuniões presenciais, seja em formas de atuação virtuais, é ético e oportuno. É enorme o atual desinteresse pela política, o desdém pelos políticos; quer-se reverter isso. O PT na oposição falava em democracia direta, a Rede em democracia de alta intensidade. Não são a mesma coisa. O PT pensou na democracia direta a partir de movimentos sindicais, aos quais se associavam, com igual legitimidade, movimentos sociais e de vizinhança, grupos unidos por queixas e projetos comuns, como homossexuais, negros, mulheres, usuários de drogas, artistas, em suma, quem acreditasse que outro mundo é possível. A Rede saúda os movimentos sociais "históricos" e quer combiná-los com "as mobilizações que surgem por meio das novas tecnologias", em referência às assim chamadas revoluções do Twitter e do Facebook. É um pouco vago, mas saúdo esse aprofundamento do projeto de democracia participativa de Franco Montoro ou essa retomada da democracia direta do PT em suas primeiras décadas.
Mas, quando chegamos à página 15, um "box" pretende traduzir este arrazoado - sério, correto, prioritário - em medidas que devam "deflagrar" a reforma política. Contudo, esse minirresumo executivo não bate com a filosofia antes exposta. Os meios não dialogam com os fins! Da filosofia se passa para medidas práticas - mas sem relação com ela. No "box", é só política institucional. O que se propõe de prático e de imediato? Primeiro, a coincidência de todos os mandatos, inclusive municipais, numa única eleição a cada cinco anos, sem reeleição. Já defendi a reeleição e não volto ao tema. Mas há no país uma queixa constante sobre as eleições federais e estaduais que, sendo simultâneas, nos fazem preencher ao mesmo tempo cinco ou seis cargos. Somar-lhes as municipais fará elegermos de uma só vez sete ou oito cargos. Ora, se este ano a campanha presidencial nublou a dos governadores, para não falar dos legislativos, como será se renovarmos todos os cargos ao mesmo tempo? E por que eleições mais espaçadas, e não mais frequentes? Tudo isso despolitiza. A escolha será menos meditada do que já é hoje. O que vai contra os ideais do programa.
E uma contradição: quer-se preencher os "cargos proporcionais" segundo "a Verdade Eleitoral", definida como a regra de proclamar eleitos os candidatos individualmente mais votados, sem levar em conta o partido ou coalizão a que pertençam. É curioso que isso seja exatamente o "distritão" proposto pelo vice-presidente Michel Temer. Aliás, assim os cargos deixam de ser preenchidos proporcionalmente, portanto a expressão "cargos proporcionais" deveria ser trocada por "deputados e vereadores". Mas isso acaba com os partidos. Na verdade, as candidaturas avulsas, adiante recomendadas, deixam de ser a exceção e se tornam a regra. Todas as candidaturas serão avulsas. Não conheço país no mundo que adote esse critério, dado que esses cargos são preenchidos pelo voto ou distrital ou proporcional.
Há duas más consequências: primeira, cada candidato terá como adversários todos os demais candidatos, não sendo de seu interesse aliar-se ou somar suas forças a ninguém que dispute o mesmo cargo. Segunda, os partidos se liquefazem.
Assim o mandato deverá pertencer ao eleito, não ao partido. Daí, a troca de partidos estará na lógica do sistema. Há o risco de que, em vez de criar canais paralelos aos da democracia representativa, esta última fique mais frágil, mais vulnerável ao canto de sereia do Poder Executivo. Isso pode até piorar nossa política! Porque, enfim, o programa tem um descompasso entre a meta nobre da maior participação popular, mas que não se traduz em nada concreto, e as reformas concretas, só que confusas e possivelmente com efeitos indesejados. Ainda estamos longe do ideal, que aprovo, de uma democracia de alta intensidade.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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