Entrevistado pela revista Caros Amigos durante o governo FHC, nela tive a honra de conversar com Milton Santos, homem de ciência combativo. A matéria fora sugerida pelo mestre e causou impacto nos campi. Como resultado fui perseguido pelos áulicos do governo, alunos meus perderam bolsas de estudo, recebi "desconvites" por desafiar os então senhores dos ministérios. O meu espanto maior, no entanto, veio com o petismo no poder.
Intelectuais contrários ao sucateamento do ensino passaram a seguir os governantes, de quem se tornaram instrumentos. Dos mesmos que aplaudiram minhas teses recebi lições de indecoroso maquiavelismo. E por invectivar seus hábitos exibidos sem pudor, logo eles me pespegaram as fichas de moralista, tucano e outros mimos. A entrevista circula na internet. Quem quiser a consulte e note que minhas posições permanecem intactas. Mas os jacobinos de ontem assumem o papel de intelectuais orgânicos cuja tarefa, além de farejar verbas e cargos, consiste em destruir os contrários ao arbítrio. Logo percebi o quanto errei ao acolher as juras democráticas dos que então se levantavam contra o poder vigente. Fanáticos da "ética na política" revelaram-se cúmplices de corruptos, na carcomida oligarquia brasileira.
Os cargos de confiança, a direção de empresas de menor porte, as honrarias do Planalto, as viagens pagas ao exterior, tudo serviu aos intelectuais como lentilha para vender consciências. Um colega recebeu a tarefa de servir como "assessor ético da Petrobrás". Pelo visto, a assessoria foi frutuosa…
Na dita entrevista critiquei a tese de que existiria poder na universidade. Insisti sobre algo óbvio no Estado moderno, que concentra os monopólios da força, da norma jurídica, dos impostos. Mas os iludidos do mundo acadêmico alardeiam o "poder" dos reitores, dos conselhos, etc. "Onde a universidade tem isso? Onde um reitor tem isso?", interrogava eu na Caros Amigos. E advertia: "Temos representantes do poder na universidade. Esses reitores são embaixadores do poder". Milton Santos radicalizou minha fala: "Essas pessoas que se renovam nos postos de comando constituem um grupo que tem certa autonomia de existência e se opõe à ideia da universidade".
Os dirigentes universitários mimetizam o verdadeiro poder. O Estado brasileiro embaraça o Executivo hegemônico com o Judiciário e o Legislativo. Nos campi o reitor paira acima do conselho. Mas para garantir seu controle existem os grupos de sustentação nomeados depois das eleições. Uma visita às universidades em dias de urna mostra sua igualdade com os municípios brasileiros: promessas e falta de prudência. Para um dossiê sobre esse ponto se leia o excelente livro organizado por W. Rampinelli O Preço do Voto: os Bastidores de uma Eleição para Reitor (2008).
Os escolhidos esbanjam verbas, vão aos ministros, pedem favores a oligarcas do Congresso, apoiam candidatos à reeleição presidencial. Representantes do poder nos campi, eles apoiam seus favoritos como se fossem donatários do espaço acadêmico. Ignoram que são reitores de toda a comunidade.
I. Kant adverte que o administrador, ao defender suas ideias, deve usar a razão comum, seguir os mesmos direitos e deveres dos outros funcionários públicos. Os reitores federais movem os cargos que não lhes pertencem e incensam presidentes com manifestos ilegítimos. Outros cerebrinos bajulam mandatários sem possuir o cargo de reitor. Eles chegam à ignomínia ao explorar o preconceito contra a religião dos candidatos não palacianos. Eles se reúnem com a postulante oficial, mas não parasitam a academia.
Em outubro de 2004, Luiz Inácio da Silva recebeu o apoio dos 55 reitores federais. A presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, Ana Lúcia Gazzola, confessou que o referido beija-mão foi o segundo entre reitores e Presidência. Em agosto de 2003, "pela primeira vez tivemos uma reunião de caráter político entre o nosso sistema e o presidente da República" (MEC, ver http://www.universia.com.br). Difícil optar pelo mais lamentável, se a ilegalidade no apoio a um candidato poderoso ou a subserviência no uso sem peias de cargos públicos para fins eleitoreiros.
Para o pleito de 2014 é mantida prática idêntica. Reitores de 54 universidades federais foram ao Alvorada para exibir uma carta de apoio a Dilma Rousseff. A reitora Margareth Diniz foi ditirâmbica: "Ela (Dilma) recebeu a carta com muita alegria, porque sendo uma classe de reitores, que lida com a educação superior, considerando a importância que é tratar da educação superior no País, receber um manifesto de reitores é algo que ela achou muito importante". Pobre língua brasileira! Além do psitacismo, o alarido conceitual: reitores nunca formaram uma "classe". Além da bajulação e do peditório, os dirigentes repetem slogans como se fossem verdades científicas: segundo a magnífica, Dilma defende verbas do pré-sal para a educação. "A lei dos royalties prevê a destinação de 75% dos recursos oriundos da exploração do pré-sal para a educação e 25%, para a saúde". João Santana forja os chavões da presidente e hoje dita o programa universitário. A continuar o servilismo reitoral, logo teremos nova carta em louvor de Marina Silva ou de outro inquilino palaciano.
Palavras têm sentido. Os magníficos exibem heteronomia, jamais autonomia acadêmica. E onde estão os movimentos docentes, mudos diante da ilegalidade antidemocrática? E o Ministério Público nada tem a dizer? Fariam bem os reitores se lessem Plutarco, Como Distinguir o Amigo do Bajulador, e o padre Vieira no sermão aos peixes. Lá encontrariam o nome perfeito de sua atividade: eles servem à higiene dos poderosos, os peixes grandes, como "pegadores". E na triste sina são honoris causa por experiência, pois agem assim desde a ditadura Vargas e o regime de 1964.
Pobre Brasil.
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva)
Fonte: O Estado de São Paulo
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