No livro de Milan Kundera “A festa da insignificância”, um personagem disse: “Ninguém em torno de Stálin sabia mais o que é uma brincadeira. É por isso, a meu ver, que um grande novo período da história se anunciava”. O personagem, chamado Charles, referia-se a uma piada que Stálin contava e nenhum dos seus ministros conseguia rir, com medo de que o ditador estivesse falando sério.
É muito difícil prever fins de era. Mas quando o país entra numa recessão econômica é razoável prever o fim de uma longa política que resultou num desastre: foi a pior performance da História, pior que a do Marechal Floriano, em tempo de guerra.
No Flamengo, um amigo me perguntou o que era recessão técnica. Repeti o que tenho lido: o país não cresceu nos dois últimos trimestres. É como um time que passasse meio ano sem vencer.
— Se é a recessão técnica, por que não demitir o técnico, como no futebol? — concluiu o amigo.
No jogo democrático troca-se o grande técnico de quatro em quatro anos, com direito a mais quatro. O amigo perguntou: quem e como vai nos tirar desse buraco? Se fosse só a recessão econômica as coisas seriam mais simples. Minha resposta seria limitada aos projetos e equipes econômicas.
Mas há uma crise de outra natureza: o imenso abismo entre o sistema político e as aspirações cotidianas. Para milhões de brasileiros, o programa eleitoral na tevê não interessa. Muitos limitam-se a se divertir um pouco com mensagens e figuras que parecem de outra galáxia.
O clima em Brasília é de terra arrasada. O governo e seus aliados tiveram o maior empenho em nivelar por baixo. A frase da velha senhora, na peça de Friedrich Dürrenmatt, foi o guia da esquerda no poder: “O mundo fez de mim uma puta. Vou fazer do mundo um bordel”.
Contei ao amigo do Flamengo que durante muitos meses mostramos que havia algo de errado na economia, que o ciclo estava esgotado.
Dilma e a artilharia do PT nos chamavam de urubus. Tinham e têm, até hoje, confiança de que estão no caminho certo. O que fazer? Se no Planalto animalizam a oposição, o que esperar dos militantes na planície? Sou meio vegetariano, mas admiro a elegância do voo do urubu.
Mesmo sem crise econômica, já seria delicado o momento de rejeição aos políticos. Com ela, aumentam as chances de mudança. Os caminhos para superar a crise econômica, de uma certa forma, já estavam implícitos nesses anos de crítica. Não há uma grande invenção no horizonte.
Para superar a crise de confiança na política, as alternativas são bem mais complicados. Desejo profundamente uma reforma que restabeleça em nosso pais um mínimo de confiança na democracia representativa. Tenho reservas quanto ao rótulo de uma nova política. Sou escaldado com aquele conceito do novo homem, na revolução cubana. Quantos não foram fuzilados ou presos porque não cabiam no modelo?
Se o leitor de Guevara se dedicar a algumas peças de Shakespeare vai compreender que as pessoas, de uma certa forma, são sempre as mesmas ao longo do tempo: imperfeitas, contraditórias, comoventes, limitadas. No entanto, é possível fazer algo melhor no Brasil. A sinceridade de alguns líderes, por exemplo, é algo que pode contribuir para a redução do abismo.
Não há mágicas para criar um novo mundo político. Mas há possibilidades de algo melhor. Por que não aceitar isto? Quem esperou um novo mundo, amanhãs que cantam, sociedades perfeitas, aprendeu, desde que tenha suportado as dores, que o buraco é mais embaixo. A existência de razões para o fim de uma era não basta para inaugurar uma outra. Os atores são importantes, sobretudo se concordarem com alguns pontos essenciais e mantiverem a unidade diante dos anos difíceis que virão.
De um ponto vista econômico a experiência chavista na Venezuela é um fracasso. Mas ainda assim, na últimas eleições, a maioria preferiu Nicolás Maduro. Hoje, na Venezuela, os consumidores passam por uma identificação digital antes das compras. É para evitar que comprem duas vezes no mesmo dia. Com todo o fracasso econômico, Maduro ainda se equilibra conversando com Chavez transfigurado em pássaro ou desenhado numa caverna do metrô.
O Brasil não tem os excedentes do petróleo, é mais complexo que a Venezuela. Os dois estão numa encruzilhada. A nossa é menos assustadora, menos presente no cotidiano. Costumo dizer que a nacionalidade não é uma segunda pele. Você pode se desfazer dela, vivendo no estrangeiro. Mas o Brasil tem um peso na identidade de cada um. Quando murcha, murcha uma parte de nós.
Há uma chance real de mudança que encaro com um otimismo moderado, fiel ao mundo de Shakespeare, ao mundo das pessoas reais que, modestamente, querem controle da corrupção, serviços públicos decentes e políticos, ainda que tediosos, razoavelmente confiáveis.
Fonte: O Globo (7/9/2104)
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