É curioso que os críticos de Marina Silva ignorem o que deveria ser sua maior contribuição para o debate sobre nossa sociedade - um debate tão importante que vai além da política e foca o modelo de civilização. Aliás, sua própria campanha não enfatiza este ponto, provavelmente para não perder o voto útil de empresários ou tucanos. Falo da sustentabilidade, tal como foi analisada por vários economistas de seu grupo. Sem ela, Marina não traria quase nada de novo.
Quando você compra uma passagem aérea, o estresse causado à natureza pela emissão de gás carbono não está incluído no preço. Você espeta a conta na natureza. Ela a repassa sob forma de El Niño, secas, fome, doença.
A estrutura de produção vigente inclui um cálculo deturpado de custos e preços. O mercado pode fixar estes últimos, mas vários custos são, perversamente, terceirizados. Não são bancados pelos agentes visíveis da economia, produtor, comerciante, consumidor. Mas alguém paga por eles. Pior, esse alguém é um vulnerável. Eu viajo de avião para a Europa, com isso sobe o efeito estufa, a Marginal alaga e favelados perdem tudo. A sequência causal que vai do meu voo até a perda do barraco é tão vaga e remota que torna impossível me mandarem o boleto do estrago que, involuntária e inconscientemente, causei. Mas inúmeros estudos científicos mostram que o aquecimento global produz esse tipo de efeito. Como enfrentar o problema?
Antes de mais nada, precisa haver transparência. Devemos reexaminar os custos envolvidos em qualquer atividade produtiva. O resultado será preocupante. Não se trata aqui de pregação ideológica ou doutrinária, mas de estudos de biólogos, ecólogos e, recentemente, economistas. Todos eles dizem: primeiro, os custos estão mal calculados; segundo, esse mau cálculo traz vantagens ocultas para certas classes ou grupos sociais (enquanto penaliza outros); terceiro, o planeta não pode continuar como está. Não dá para o homem estressar os recursos da natureza como tem feito.
Os recursos naturais são finitos e preciosos. Alguns não são propriamente finitos, como por exemplo a lavoura, mas mesmo ela necessita de nutrientes minerais. Esta, aliás, uma das razões para lidar com o lixo de forma diferente. Ele pode ser riquíssimo em nutrientes, não há sentido em enterrá-los num lixão. Precisam ser recuperados. Certamente isso vai custar caro. Mas esse custo está mal calculado, porque omite que em breve se esgotarão muitos dos recursos minerais que sustentaram o desenvolvimento no último século. Não reciclar os lixos é mais caro do que reciclar.
Quando alguns acusam os projetos sociais de Marina de ambiciosos, estão sendo modestos! A questão não é só ter dinheiro para educação em tempo integral. É mudar todo o nosso modo de viver. Lojistas dos Jardins fizeram várias perguntas, outro dia, a Walter Feldmann, que representava a candidata. Tinham medo do comunismo, mas nem perguntaram o que a candidata pensa do consumismo. Não perceberam que ela quer um novo pacto civilizatório. Provavelmente os lojistas teriam saído mais preocupados do que entraram, mas por outras razões.
Insisto: o custo geral - ou o preço final pago pela sociedade - pelo que se produza e consuma não vai aumentar. Alguém já paga pelo desastre. A ideia sustentável é fazer que o custo se torne preço, a ser pago pelo beneficiário ou usuário do produto que estressou a natureza. É parar de terceirizar os custos, de espetar na sociedade ou nos pobres o custo de bens que outros usufruem. Essa revisão da conta será dolorosa. Alguns produtos passarão a ter preços proibitivos e até sairão de linha. Satisfazer o consumo perdulário poderá ficar tão caro que não esteja ao alcance da maior parte dos bolsos. A carrodependência tem que diminuir. Pode ser contida por várias formas de cobrança. A Rede não quer tributar, mas há outras formas de cobrar. Pode-se cobrar pelo uso das vias, pela circulação no centro expandido, pelo emprego do carro nos horários de rush. A Air France e as ferrovias francesas já dão ao cliente a opção de pagar pelo plantio de árvores que compensem ambientalmente o carbono que o transporte gerou. Um dia, isso será obrigatório. Fará parte do custo e preço do produto. Viajaremos menos.
Daí, muito a debater. Como rever o setor produtivo, que afinal de contas é o "backbone" de nossa sociedade. Como completar a inclusão social, o que demandará mais produtos de uma natureza já extenuada. As dificuldades de como cobrar os custos, se não for pela via do imposto. E a pergunta se nossa sociedade está madura para esta mudança de rumo. É óbvio que não está. Ao mesmo tempo, é óbvio que o tempo urge. Se empurrarmos as coisas com a barriga, o custo - quando for precificado - da correção de rumo se tornará bem mais alto. Mas essa mudança radical na vida tomará tempo, talvez muito tempo.
Engana-se quem vê em Marina apenas a candidata do tripé ou do setor financeiro ou uma fadinha perdida na floresta. Há um projeto sério aí, certamente incompleto, talvez contraditório ou prematuro, mas há. Uma mudança é proposta, que no entender do Rede pode e deve ser executada rigorosamente dentro dos quadros do capitalismo, mas mesmo assim alterará muito, em termos de cultura.
Tudo isso pode ficar nas intenções. Um mandato não dará para tanto. Mas Marina não é Aécio. Cometerá um erro histórico, caso eleita, se fizer simplesmente a política econômica dos tucanos. E também errará quem apostar que o projeto dela é o deles.
PS - Para refletir sobre estes pontos, um bom começo é o livro de Ricardo Arnt, "O que os Economistas Pensam Sobre Sustentabilidade".
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
Fonte: Valor Econômico
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