Os repertórios constituem um conjunto articulado de conhecimentos e de práticas, selecionados pela experiência, que se tornam dominantes quando amplamente compartilhados, tornando-se, assim, um instrumento de uso generalizado para os diferentes modos do agir social. Tanto podem assumir uma forma simples como, no caso das regras de etiqueta, se revestir da alta complexidade, do tipo das que se manifestam, por exemplo, na ciência, na música erudita e na política. Repertórios mudam, sempre contingenciados pelas alterações do gosto, pela emergência de novas necessidades ou de novos desafios, mas há sociedades e culturas que os protegem dos riscos da obsolescência, envolvendo-os numa aura mística, e até levantam muralhas, como na antiga China, a fim de garantir a permanência de princípios que sustentem dever existir harmonia entre o cosmo e a vida dos homens.
No Ocidente, sob a influência do Século das Luzes, temia-se a síndrome da imobilidade chinesa como um fim do mundo em que as rodas da História parariam de girar, como em Tocqueville, Marx, Nietzsche e Weber. A opção ocidental, decerto num processo que conheceu lutas sociais prolongadas e revoluções, foi a da permanente busca pela inovação do seu repertório cognitivo em todos os ramos da atividade humana, com o que se abriu passagem para o moderno, e desde então, nas conhecidas palavras de um grande autor, tudo o que antes parecia sólido estava condenado a se dissolver no ar, inclusive na China.
Somos filhos, neste extremo Ocidente ibérico em que nos encontramos, dessa mesma cultura, e uma boa testemunha disso está no vitorioso processo de modernização que, há décadas, subverte nossa paisagem econômica e social, implicando a emergência ao mundo dos direitos de massas de milhões que antes nem sequer os divisavam. Contudo, por processos inerentes à nossa formação, em que o Estado cumpriu, e segue cumprindo, papel determinante em todas as dimensões da vida social, continuamos prisioneiros de repertórios que nasceram à sombra da sua incontrastável presença em nossa História, em que pese a afirmação de uma já robusta sociedade civil. Assim é que o peronismo e o varguismo - dois casos clássicos de repertórios que nasceram na órbita do Estado, a seu modo e a seu tempo bem-sucedidos - seguem como presenças renitentes na Argentina e no Brasil, no primeiro caso, abertamente e no segundo, de modo dissimulado, sem ceder lugar mesmo diante das novas circunstâncias com que, atualmente, se defrontam.
No Brasil, essa patologia particular que se manifesta na dificuldade de abandonar surrados repertórios conta com antecedentes históricos vetustos. Angela Alonso, em seu importante estudo sobre a chamada geração de 1870 (Ideias em Movimento, Paz e Terra, 2002), argumenta persuasivamente que uma das razões para a queda do Império esteve na incapacidade de suas elites políticas, em meio a mudanças políticas e sociais - em boa parte desencadeadas por elas -, de abrir seu repertório a práticas e aos discursos que vinham à tona a partir da emergência de novos tipos sociais. Mais intrigante ainda, sinal aziago de que pode estar instalada uma caveira de burro em algum lugar da nossa História, é o processo que transcorre diante de nós quando testemunhamos, dia a dia, um repertório novo e promissor, conquistado em dura e longa luta, ter seu sentido contaminado precisamente pelo que visava a substituir.
Esse repertório novo não nos chegou de cima nem por meio de construções intelectuais arbitrárias sem amparo nas correntes de opinião que germinavam na sociedade civil. Ao contrário, é filho do movimento da resistência democrática à ditadura militar, encorpou-se a partir de meados dos anos 1970 e tomou forma no diagnóstico de que na raiz dos nossos males estava um processo de modernização conservadora que, a partir da chamada Revolução de 1930, recorrendo a fórmulas ora puramente repressivas, ora mais brandas - como no período JK -, sujeitava a sociedade a uma modelagem exercida pelo Estado.
Tal diagnóstico, no curso das lutas da resistência, adensou-se e se converteu no programa que serviu de plataforma para a convocação da Assembleia Constituinte de 1986, que, em suas linhas gerais, o adotou. Sua tópica gravitou em torno dos temas da autonomia da sociedade e da vida associativa quanto ao Estado, da descentralização e valorização do poder local e da abertura da esfera pública a uma ampla participação da cidadania. Além disso, aquele programa estava animado pela disposição de conter a discrição da administração pública, pleito que o constituinte reconheceu ao criar um complexo sistema de controle da sua operação, inclusive pelos novos papéis que concedeu ao Ministério Público. Estava aí, disponível para uma sociedade que experimenta notáveis mudanças em sua economia e em sua estrutura social, um novo repertório.
Mas há algo em nossa História, as marcas profundas do seu pathos conservador, que conspira para que velhos repertórios, como as marchinhas de carnaval, nunca saiam de moda, pois não se pode mais ignorar a ressurgência da síndrome típica dos nossos ciclos de modernização autoritária, já visível no retorno às práticas de centralização administrativa, ao modelo de capitalismo politicamente orientado, ao decisionismo que campeia na ação do Executivo e às esdrúxulas manias de grandeza nacional.
Provavelmente, foi esse pathos que atuou em nossa reação à acachapante derrota do Santos pelo Barcelona, que encontrou explicação, na maior parte da crítica especializada, por uma pretensa fidelidade do time catalão ao velho e vitorioso repertório do futebol brasileiro, que teria sido, em má hora, abandonado por nós. Decididamente, não foi assim, eles criaram um repertório novo, e isso, em geral, nos desconcerta.
(O Estado de São Paulo)
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