O jornal Zero Hora, maior diário do RS, traz, nesse domingo, dramática matéria sobre os resultados do sistema socioeducativo no Estado. Falo em resultados porque a política de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei tem objetivos, metas e focos, e dessa forma, tem que ter uma medida que permita quantificar e avaliar os seus resultados. O sucesso ou não de uma política não é medido pelas intenções, valores ou convicções que animam os seus atores, mas sim pelos seus resultados. E medir resultados do sistema socioeducativo é também radiografar o percurso seguido por seus egressos e o destino de adolescentes e jovens que cumpriram medida socioeducativa no sistema.
A manchete de Zero Hora é impactante: "91% de ex-internos da Fase voltam a se envolver em crimes".
A pesquisa se concentrou nos adolescentes e jovens que passaram pela casa da antiga Febem, atual Comunidade Socioeducativa (CSE). Foi realizado também um estudo comparativo entre os anos de 2002 e 2009/10. Os números são reveladores e surpreendentes: dos 167 jovens que saíram da CSE em 2009 e 2010, 91% já voltaram a responder por suspeita de crimes. Passaram por prisões 117 deles, dos quais 72 estão presos. Sete foram assassinados. Dos que foram mortos, seis respondiam a procedimentos policiais, sendo que um tinha condenação por roubo. Do total de 167 ex-internos, apenas 10 não voltaram a ter ocorrência ou inquérito policial.
Comparativamente, esses são os resultados:
___________________________________________________________________
Quadro comparativo 2002 2009 e 2010
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Ex-internos 167 162
___________________________________________________________________
Tiveram ocorrências, inquéritos,
TCs, prisões ou condenações 149 152
___________________________________________________________________
Presos atualmente 55 72
___________________________________________________________________
Mortos 48 7
___________________________________________________________________
Sem procedimentos policiais 2 10
___________________________________________________________________
E, para fechar, a apresentação desses números: dos adolescentes que passaram em 2002 pelo CSE, 48, ou seja, um terço dos internos encontraram na morte o trágico desfecho produzido por um sistema de muito discurso e poucos resultados positivos.
Como fala alguém na matéria,"cada gestão chega dizendo que vai mudar tudo e o novo nunca acontece". Como observa uma magistrada ouvida pelo jornal: "o que falta é uma política de Estado e não de governo, que muda a cada quatro anos". Já a Ministra-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário admite que o sistema de ressocialização não funciona no Brasil. E promete medidas concretas, como o lançamento, até junho, de um plano nacional para o atendimento socioeducativo. Otimista, acredita que com esse sistema nacional fará funcionar uma engrenagem prevista em lei há mais de 20 anos e que nunca se concretizou.
E no Espírito Santo, o que acontece? O que aconteceu com os jovens e adoslescentes que passaram pelas unidades de internação do IASES? Quais são os resultados em termos de sucesso?
Do antigo IESBEM ao IASES, muitas mudanças efetivamente aconteceram : reorganizações institucionais, com mudança no nome das instituições, novas formas de gestão (execução direta e terceirizada), novos prédios, milhares de servidores e gordos orçamentos. Mas os resultados, medidos pelo o que acontece com esses jovens depois que passam pelo sistema sócioeducativo, permanece uma incógnita. É a caixa-preta não aberta do sistema. Se o governo solicitasse, hoje, um mapa sobre o percurso de ex-internos receberia uma folha em branco.
A estratégia de marketing lembra mais a de uma igreja evangélica: pegam-se dois ou tres "casos de sucesso" e, por anos, esses jovens "resgatados", são levados aos quatro cantos para levar o seu "testemunho". Um bom cargo comissionado garante o empenho e dedicação do "convertido". Sobre o destino dos milhares de outros que passaram pelo sistema (quantos reincidiram? quantos morrerram de forma violenta? quantos engrossam hoje as estatísticas das penitenciárias?) nenhuma palavra.
Para o governo é mais comodo fazer vista grossa e fazer de conta que a engrenagem funciona as mil maravilhas. Na mídia local o silencio conivente sobre as entranhas do sistema socioeducativo e seus resultados.
No Espírito Santo, onde, segundo as denúncias do jornal eletrônico Século Diário, seria mais barato manter um aluno em Harvard do que no chamado CSE de Cariacica, gerenciado por uma Organização Social (OS) denominada Acadis(graças a uma lei criada no governo Paulo Hartung, regulamentando as OSs que hoje detém contratos especialmente na área da Saúde), nada se conhece sobre resultados efetivos referente ao destino desses jovens e adolescentes que passaram pelo sistema socioeducativo.Se o governo determinasse um estudo nessa direção talvez viesse a tona um retumbante fracasso de um caro financeiramente e oneroso politicamente sistema de socioeducação.
domingo, 29 de janeiro de 2012
sábado, 28 de janeiro de 2012
Crônica de uma guerra anunciada (Marco Aurélio Nogueira)
O que era para ser festa pelos 458 anos de São Paulo virou vergonha, preocupação e convite à reflexão. O estopim foi aceso no domingo, 22, ao raiar da madrugada, quando a Polícia Militar (PM) paulista removeu à força os moradores de um terreno vazio do município de São José dos Campos, o Pinheirinho, pertencente à massa falida do investidor Naji Nahas. Cerca de 6 mil pessoas viviam na área de 1,3 milhão de metros quadrados. A operação tinha o respaldo de uma decisão judicial estadual, contestada por setores da Justiça Federal.
Decisão judicial emanada, a PM foi a campo. O ambiente era de conflito, pois os ocupantes se organizaram para resistir. E o que era para ser mero ato jurídico se converteu em batalha campal. Os militares expulsaram as pessoas de seus barracos, que foram sucessivamente destruídos por tratores. O confronto foi inevitável. Carros queimados, pessoas feridas, dezenas de presos, choques e pancadaria, cenas que se repetiriam nos dias seguintes. Tudo em doses desproporcionais ao que se tinha de fato no Pinheirinho: 1.500 famílias convencidas de que seria possível ter ali um canto para viver. Não havia exércitos inimigos nem "classes perigosas", mas uma guerra terminou por eclodir.
A ocupação do Pinheirinho ocorreu em 2004. O acampamento proliferou. Converteu o terreno num bairro, com comércio e igrejas. Deu perspectivas de vida e moradia a milhares de pessoas. Ao longo do tempo suas lideranças procuraram negociar a desapropriação pública do terreno e a atenção dos poderes municipais. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, talvez não tenham sabido buscar os apoios e os meios necessários, certamente encontraram resistência, protelação e má vontade. Nos últimos tempos era clara a vontade de se ter uma saída negociada. A solução, porém, foi sendo postergada pelo poder municipal, desprovido de inteligência e de política urbana. Município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali se estava gestando. Tiveram oito anos para isso. Aí, de repente, na calada da noite, decide-se remover à força os ocupantes. Insensatez.
É fácil criticar a PM, mas a ação foi estatal, autorizada. Teria agido a PM à revelia do governador ou a principal autoridade paulista não teve como escapar do fato de que "decisão da Justiça não se discute, cumpre-se"? Tão correta quanto essa máxima é a consideração do modo como uma decisão deve ser cumprida, a avaliação de suas consequências. Não era evidente que a remoção levaria a choques e confrontos? Que milhares de pessoas seriam prejudicadas? Sabia-se disso tudo porque tudo era de conhecimento público. Processos de desocupação à força ferem direitos, produzem vítimas e criam muito mais problemas que soluções.
Apesar disso, não houve uma voz que ponderasse e suspendesse a operação. Que freasse o massacre que se anunciava. A falta de flexibilidade horroriza porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal interrompera a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, estava bem avançado um acordo entre as partes envolvidas. Faltou política com P maiúsculo. Não apareceu ninguém - partidos políticos, lideranças democráticas, poderes públicos - para facilitar o encontro de uma solução negociada. Somente as lideranças do Pinheirinho se mobilizaram, com a ajuda efêmera de alguns ativistas. Deu no que deu.
A repercussão foi imediata. As redes ferveram. A mídia repercutiu os acontecimentos. A Ordem dos Advogados do Brasil classificou como ilegal a reintegração de posse, realizada apesar de ordem da Justiça Federal mandando suspender a ação. Exacerbou-se o conflito de competências federativas. O governador de São Paulo prometeu verificar se houve abusos na operação. Da sociedade civil e de Brasília choveram críticas a ele e ao PSDB. Houve manifestações. A questão politizou-se. O que era para ser ato pontual se converteu em tema nacional, eleitoral, alimentado por uma tragédia social.
Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns "anéis burocráticos"? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB por implicação. Será difícil apagá-la. Ela respingou no sistema político como um todo, chegou a Brasília, ao Ministério das Cidades, e não só a ele. Sempre é fácil apelar para o pacto federativo quando se trata de justificar a ausência de políticas e o abandono dos mais fracos. Também é fácil falar em soluções ex-post facto.
A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho. Mas está em toda parte. Os ambientes atuais estão congestionados de posições referenciadas por princípios que não se compõem com facilidade: o desejo de justiça, igualdade e liberdade versus a exigência de controle. É uma polarização que só tem feito se agravar. Aparece no modo como se pensa e se pratica a política hoje, na tensão despropositada entre representação e participação. Mostra-se na face autoritária e no particularismo dos governos, sempre prontos a defender os mais fortes.
Será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação.
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Decisão judicial emanada, a PM foi a campo. O ambiente era de conflito, pois os ocupantes se organizaram para resistir. E o que era para ser mero ato jurídico se converteu em batalha campal. Os militares expulsaram as pessoas de seus barracos, que foram sucessivamente destruídos por tratores. O confronto foi inevitável. Carros queimados, pessoas feridas, dezenas de presos, choques e pancadaria, cenas que se repetiriam nos dias seguintes. Tudo em doses desproporcionais ao que se tinha de fato no Pinheirinho: 1.500 famílias convencidas de que seria possível ter ali um canto para viver. Não havia exércitos inimigos nem "classes perigosas", mas uma guerra terminou por eclodir.
A ocupação do Pinheirinho ocorreu em 2004. O acampamento proliferou. Converteu o terreno num bairro, com comércio e igrejas. Deu perspectivas de vida e moradia a milhares de pessoas. Ao longo do tempo suas lideranças procuraram negociar a desapropriação pública do terreno e a atenção dos poderes municipais. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, talvez não tenham sabido buscar os apoios e os meios necessários, certamente encontraram resistência, protelação e má vontade. Nos últimos tempos era clara a vontade de se ter uma saída negociada. A solução, porém, foi sendo postergada pelo poder municipal, desprovido de inteligência e de política urbana. Município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali se estava gestando. Tiveram oito anos para isso. Aí, de repente, na calada da noite, decide-se remover à força os ocupantes. Insensatez.
É fácil criticar a PM, mas a ação foi estatal, autorizada. Teria agido a PM à revelia do governador ou a principal autoridade paulista não teve como escapar do fato de que "decisão da Justiça não se discute, cumpre-se"? Tão correta quanto essa máxima é a consideração do modo como uma decisão deve ser cumprida, a avaliação de suas consequências. Não era evidente que a remoção levaria a choques e confrontos? Que milhares de pessoas seriam prejudicadas? Sabia-se disso tudo porque tudo era de conhecimento público. Processos de desocupação à força ferem direitos, produzem vítimas e criam muito mais problemas que soluções.
Apesar disso, não houve uma voz que ponderasse e suspendesse a operação. Que freasse o massacre que se anunciava. A falta de flexibilidade horroriza porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal interrompera a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, estava bem avançado um acordo entre as partes envolvidas. Faltou política com P maiúsculo. Não apareceu ninguém - partidos políticos, lideranças democráticas, poderes públicos - para facilitar o encontro de uma solução negociada. Somente as lideranças do Pinheirinho se mobilizaram, com a ajuda efêmera de alguns ativistas. Deu no que deu.
A repercussão foi imediata. As redes ferveram. A mídia repercutiu os acontecimentos. A Ordem dos Advogados do Brasil classificou como ilegal a reintegração de posse, realizada apesar de ordem da Justiça Federal mandando suspender a ação. Exacerbou-se o conflito de competências federativas. O governador de São Paulo prometeu verificar se houve abusos na operação. Da sociedade civil e de Brasília choveram críticas a ele e ao PSDB. Houve manifestações. A questão politizou-se. O que era para ser ato pontual se converteu em tema nacional, eleitoral, alimentado por uma tragédia social.
Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns "anéis burocráticos"? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB por implicação. Será difícil apagá-la. Ela respingou no sistema político como um todo, chegou a Brasília, ao Ministério das Cidades, e não só a ele. Sempre é fácil apelar para o pacto federativo quando se trata de justificar a ausência de políticas e o abandono dos mais fracos. Também é fácil falar em soluções ex-post facto.
A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho. Mas está em toda parte. Os ambientes atuais estão congestionados de posições referenciadas por princípios que não se compõem com facilidade: o desejo de justiça, igualdade e liberdade versus a exigência de controle. É uma polarização que só tem feito se agravar. Aparece no modo como se pensa e se pratica a política hoje, na tensão despropositada entre representação e participação. Mostra-se na face autoritária e no particularismo dos governos, sempre prontos a defender os mais fortes.
Será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação.
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Oposição sem rumo (Marco Antonio Villa)
Nesta semana fomos surpreendidos por uma entrevista de Fernando Henrique Cardoso. Não pela entrevista, claro, mas pela análise absolutamente equivocada da conjuntura brasileira. Esse tipo de reflexão nunca foi seu forte. Basta recordar alguns fatos.
Em 1985 iniciou a campanha para a Prefeitura paulistana tendo como aliados o governador Franco Montoro e o governo central, que era controlado pelo PMDB, além da própria Prefeitura, sob o comando de Mário Covas. Enfrentava Jânio Quadros, um candidato sem estrutura partidária, sem programa e que entrou na campanha como livre atirador. Fernando Henrique achou que ganharia fácil. Perdeu.
No ano seguinte, três meses após a eleição municipal, propôs, em entrevista, que o PMDB abandonasse o governo, dias antes da implementação do Plano Cruzado, que permitiu aos candidatos da Aliança Democrática vencer as eleições em todos os Estados. Ele, aliás, só foi eleito senador graças ao Cruzado.
Passados seis anos, lutou para que o PSDB fizesse parte do governo Fernando Collor. Ele seria o ministro das Relações Exteriores (e o PSDB receberia mais duas pastas). Graças à intransigência de Covas, o partido não aderiu. Meses depois, foi aprovado o impeachment de Collor.
Em 1993, contra a sua vontade, foi nomeado ministro da Fazenda por Itamar Franco. Não queria, de forma alguma, aceitar o cargo. Só concordou quando soube que a nomeação havia sido publicada no Diário Oficial (estava no exterior quando da designação). E chegou à Presidência justamente por esse fato - e por causa do Plano Real, claro.
Em 2005, no auge da crise do mensalão, capitaneou o movimento que impediu a abertura de processo de impeachment contra o então presidente Lula. Espalhou aos quatro ventos que Lula já era página virada na nossa História e que o PSDB deveria levá-lo, sangrando, às cordas, para vencê-lo facilmente no ano seguinte. Deu no que deu, como sabemos.
Agora resolveu defender a tese de que a oposição tenha um candidato presidencial, com uma antecedência de dois anos e meio do início efetivo do processo eleitoral. É caso único na nossa História. Nem sequer na República Velha alguém chegou a propor tal antecipação. É uma espécie de dedazo, como ocorria no México sob o domínio do PRI. Apontou o dedo e determinou que o candidato tem de ser Aécio Neves.
Não apresentou nenhuma ideia, uma proposta de governo, nada. Disse, singelamente, que Aécio estaria mais de acordo com a tradição política brasileira. Convenhamos que é um argumento pobre. Ao menos deveria ter apresentado alguma proposta defendida por Aécio para poder justificar a escolha.
A ação intempestiva e equivocada de Fernando Henrique demonstra que o principal partido da oposição, o PSDB, está perdido, sem direção, não sabendo para onde ir. O partido está órfão de um ideário, de ao menos um conjunto de propostas sobre questões fundamentais do País. Projeto para o País? Bem, aí seria exigir demais. Em suma, o partido não é um partido, na acepção do termo.
Fernando Henrique falou da necessidade de alianças políticas. Está correto. Nenhum partido sobrevive sem elas. O PSDB é um bom exemplo. Está nacionalmente isolado. Por ser o maior partido oposicionista e não ter definido um rumo para a oposição, acabou estimulando um movimento de adesão ao governo. Para qualquer político fica sempre a pergunta: ser oposição para quê? Oposição precisa ter programa e perspectiva real de poder. Caso contrário, não passa de um ajuntamento de vozes proclamando críticas, como um agrupamento milenarista.
Sem apresentar nenhuma proposta ideológica, a "estratégia" apresentada por Fernando Henrique é de buscar alianças. Presume-se que seja ao estilo petista, tendo a máquina estatal como prêmio. Pois se não são apresentadas ideias, ainda que vagas, sobre o País, a aliança vai se dar com base em qual programa? E com quais partidos? Diz que pretende dividir a base parlamentar oficialista. Como? Quem pretende sair do governo? Não será mais uma das suas análises de conjuntura fadadas ao fracasso?
O medo de assumir uma postura oposicionista tem levado o partido à paralisia. É uma oposição medrosa, envergonhada. Como se a presidente Dilma Rousseff tivesse sido eleita com uma votação consagradora. E no primeiro turno. Ou porque a administração petista estivesse realizando um governo eficiente e moralizador. Nem uma coisa nem outra. As realizações administrativas são pífias e não passa uma semana sem uma acusação de corrupção nos altos escalões.
O silêncio, a incompetência política e a falta de combatividade estão levando à petrificação de um bloco que vai perpetuar-se no poder. É uma cruel associação do grande capital - apoiado pelo governo e dependente dele - com os setores miseráveis sustentados pelos programas assistencialistas. Ou seja, o grande capital se fortalece com o apoio financeiro do Estado, que o brinda com generosos empréstimos, concessões e obras públicas. É a privatização em larga escala dos recursos e bens públicos. Já na base da pirâmide a estratégia é manter milhões de famílias como dependentes de programas que eternizam a disparidade social. Deixam de ser miseráveis. Passam para a categoria da extrema pobreza, para gáudio de alguns pesquisadores. E tudo temperado pelo sufrágio universal sem política.
Em meio a este triste panorama, não temos o contradiscurso, que existe em qualquer democracia. Ao contrário, a omissão e a falta de rumo caracterizam o PSDB. Para romper este impasse é necessário discutir abertamente uma proposta para o País, não temer o debate, o questionamento interno, a polêmica, além de buscar alianças programáticas. É preciso saber o que pensam as principais lideranças. Numa democracia ninguém é líder por imposição superior. Tem de apresentar suas ideias.
Marco Antonio Villa, historiador, é professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Em 1985 iniciou a campanha para a Prefeitura paulistana tendo como aliados o governador Franco Montoro e o governo central, que era controlado pelo PMDB, além da própria Prefeitura, sob o comando de Mário Covas. Enfrentava Jânio Quadros, um candidato sem estrutura partidária, sem programa e que entrou na campanha como livre atirador. Fernando Henrique achou que ganharia fácil. Perdeu.
No ano seguinte, três meses após a eleição municipal, propôs, em entrevista, que o PMDB abandonasse o governo, dias antes da implementação do Plano Cruzado, que permitiu aos candidatos da Aliança Democrática vencer as eleições em todos os Estados. Ele, aliás, só foi eleito senador graças ao Cruzado.
Passados seis anos, lutou para que o PSDB fizesse parte do governo Fernando Collor. Ele seria o ministro das Relações Exteriores (e o PSDB receberia mais duas pastas). Graças à intransigência de Covas, o partido não aderiu. Meses depois, foi aprovado o impeachment de Collor.
Em 1993, contra a sua vontade, foi nomeado ministro da Fazenda por Itamar Franco. Não queria, de forma alguma, aceitar o cargo. Só concordou quando soube que a nomeação havia sido publicada no Diário Oficial (estava no exterior quando da designação). E chegou à Presidência justamente por esse fato - e por causa do Plano Real, claro.
Em 2005, no auge da crise do mensalão, capitaneou o movimento que impediu a abertura de processo de impeachment contra o então presidente Lula. Espalhou aos quatro ventos que Lula já era página virada na nossa História e que o PSDB deveria levá-lo, sangrando, às cordas, para vencê-lo facilmente no ano seguinte. Deu no que deu, como sabemos.
Agora resolveu defender a tese de que a oposição tenha um candidato presidencial, com uma antecedência de dois anos e meio do início efetivo do processo eleitoral. É caso único na nossa História. Nem sequer na República Velha alguém chegou a propor tal antecipação. É uma espécie de dedazo, como ocorria no México sob o domínio do PRI. Apontou o dedo e determinou que o candidato tem de ser Aécio Neves.
Não apresentou nenhuma ideia, uma proposta de governo, nada. Disse, singelamente, que Aécio estaria mais de acordo com a tradição política brasileira. Convenhamos que é um argumento pobre. Ao menos deveria ter apresentado alguma proposta defendida por Aécio para poder justificar a escolha.
A ação intempestiva e equivocada de Fernando Henrique demonstra que o principal partido da oposição, o PSDB, está perdido, sem direção, não sabendo para onde ir. O partido está órfão de um ideário, de ao menos um conjunto de propostas sobre questões fundamentais do País. Projeto para o País? Bem, aí seria exigir demais. Em suma, o partido não é um partido, na acepção do termo.
Fernando Henrique falou da necessidade de alianças políticas. Está correto. Nenhum partido sobrevive sem elas. O PSDB é um bom exemplo. Está nacionalmente isolado. Por ser o maior partido oposicionista e não ter definido um rumo para a oposição, acabou estimulando um movimento de adesão ao governo. Para qualquer político fica sempre a pergunta: ser oposição para quê? Oposição precisa ter programa e perspectiva real de poder. Caso contrário, não passa de um ajuntamento de vozes proclamando críticas, como um agrupamento milenarista.
Sem apresentar nenhuma proposta ideológica, a "estratégia" apresentada por Fernando Henrique é de buscar alianças. Presume-se que seja ao estilo petista, tendo a máquina estatal como prêmio. Pois se não são apresentadas ideias, ainda que vagas, sobre o País, a aliança vai se dar com base em qual programa? E com quais partidos? Diz que pretende dividir a base parlamentar oficialista. Como? Quem pretende sair do governo? Não será mais uma das suas análises de conjuntura fadadas ao fracasso?
O medo de assumir uma postura oposicionista tem levado o partido à paralisia. É uma oposição medrosa, envergonhada. Como se a presidente Dilma Rousseff tivesse sido eleita com uma votação consagradora. E no primeiro turno. Ou porque a administração petista estivesse realizando um governo eficiente e moralizador. Nem uma coisa nem outra. As realizações administrativas são pífias e não passa uma semana sem uma acusação de corrupção nos altos escalões.
O silêncio, a incompetência política e a falta de combatividade estão levando à petrificação de um bloco que vai perpetuar-se no poder. É uma cruel associação do grande capital - apoiado pelo governo e dependente dele - com os setores miseráveis sustentados pelos programas assistencialistas. Ou seja, o grande capital se fortalece com o apoio financeiro do Estado, que o brinda com generosos empréstimos, concessões e obras públicas. É a privatização em larga escala dos recursos e bens públicos. Já na base da pirâmide a estratégia é manter milhões de famílias como dependentes de programas que eternizam a disparidade social. Deixam de ser miseráveis. Passam para a categoria da extrema pobreza, para gáudio de alguns pesquisadores. E tudo temperado pelo sufrágio universal sem política.
Em meio a este triste panorama, não temos o contradiscurso, que existe em qualquer democracia. Ao contrário, a omissão e a falta de rumo caracterizam o PSDB. Para romper este impasse é necessário discutir abertamente uma proposta para o País, não temer o debate, o questionamento interno, a polêmica, além de buscar alianças programáticas. É preciso saber o que pensam as principais lideranças. Numa democracia ninguém é líder por imposição superior. Tem de apresentar suas ideias.
Marco Antonio Villa, historiador, é professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
A primavera encontra o inverno (Mike Davis)
Mike Davis, urbanista, ambientalista e historiador americano de formação marxista, é professor da Universidade da Califórnia. Em 2002 ganhou o book prize por late victorian holocausts, não lançado no Brasil. Entre outros títulos, escreveu “Planeta Favela” (Boitempo Editorial) e Cidades Mortas (Editora Record). Este ensaio foi publicado originalmente na The New Left Review
Segundo ato da leva de protestos de 2011 poderá refletir desaceleração e mesmo colapso do crescimento econômico
Nos grandes levantes, as analogias literalmente explodem no ar. Protestos de 2011 que emocionaram o mundo - a Primavera Árabe, os verões quentes na Espanha e na Grécia, o outono dos movimentos Ocupe nos Estados Unidos - inevitavelmente foram comparados aos anni mirabiles de 1848, 1905, 1968 e 1989. Certamente, algumas coisas fundamentais ainda se aplicam e os padrões clássicos se repetem. Os tiranos tremem, as correntes se partem e os palácios são invadidos. As ruas se tornam laboratórios mágicos onde se criam os conceitos de cidadania e de companheirismo, e ideias radicais adquirem repentinamente um poder telúrico. O Iskra (jornal político redigido por emigrantes russos na Alemanha, de cunho marxista) torna-se o atual Facebook. Mas será que o cometa dos protestos persistirá no céu do inverno ou não passará de uma chuva de meteoros rápida e ofuscante? Como o destino das journées revolutionnaires de outrora nos adverte, a primavera é a estação mais curta, principalmente quando os communards combatem em nome de um "mundo diferente", para o qual não existe projeto concreto nem imagem idealizada.
Mas talvez isso venha mais tarde. Por enquanto, a sobrevivência de novos movimentos sociais exige que eles finquem raízes na resistência das massas à catástrofe econômica global, o que, por sua vez, pressupõe - sejamos honestos - que a disposição atual para a "horizontalidade" possa abranger uma "verticalidade" disciplinada para debater e empreender estratégias de organização. A estrada será assustadoramente longa até alcançar os pontos de partida de tentativas anteriores para a construção de um mundo novo. Entretanto, uma certa geração já iniciou corajosamente a jornada.
Será que o agravamento da crise econômica, que está devorando grande parte do mundo, acelerará uma renovação global da esquerda? Os pontos a seguir são conjeturas minhas. Com a finalidade de instigar o debate, são simplesmente pensamentos em voz alta sobre algumas das especificidades históricas dos acontecimentos de 2011 e os resultados que poderão apresentar nos próximos anos. A premissa subjacente é a de que o segundo ato do drama poderá acarretar cenas hibernais, num cenário de colapso do crescimento econômico baseado em exportações nos países do bloco Brics e também da estagnação persistente na Europa e nos Estados Unidos.
1. Pesadelos do capitalismo
Em primeiro lugar, devemos prestar um tributo ao medo e ao pânico do capitalismo. O que era inconcebível apenas um ano atrás, até mesmo para a maioria dos marxistas, agora é o fantasma que assombra as páginas dos editoriais da imprensa econômica: a iminente destruição de boa parte da estrutura institucional da globalização e a erosão da ordem internacional depois de 1989. Existe uma crescente apreensão de que a crise da zona do euro, seguida por uma recessão mundial sincronizada, possa nos fazer voltar ao mundo dos anos 30 com seus blocos monetários e comerciais semiautárquicos, obcecados por ressentimentos nacionalistas. Nesse cenário, a norma hegemônica do dinheiro e da demanda já não existe: os EUA estão demasiado enfraquecidos; a Europa, demasiado desorganizada; e a China, com pés de barro, demasiado dependente das exportações. Até as potências de segundo escalão gostariam de ter a própria apólice de seguro representada pelo urânio enriquecido; guerras nucleares regionais se tornariam uma possibilidade. Muito distante? Talvez, mas também é bizarra a crença nas viagens no tempo para os anos loucos da década de 90. Nossas mentes analógicas simplesmente não conseguem resolver todas as equações diferenciais geradas pela incipiente fragmentação da zona do euro ou consertar uma pane no motor do crescimento da China. Enquanto a explosão em Wall Street, em 2008, foi antecipada por vários especialistas, com maior ou menor precisão, o que agora se aproxima rapidamente está muito além da capacidade de previsão de qualquer cassandra ou de três Karl Marx.
2. De Saigon a Cabul
Se um apocalipse neoliberal está realmente por perto, Washington e Wall Street serão considerados os principais anjos exterminadores, por explodirem ao mesmo tempo o sistema financeiro do Atlântico Norte e o Oriente Médio (e ainda destruíram qualquer chance de frear o desastre climático). As invasões do Iraque e do Afeganistão ordenadas por Bush poderão ser consideradas, numa retrospectiva histórica, atos ditados pela clássica arrogância desmedida: rápidas vitórias por meio de armas modernas e ilusões de onipotência, seguidas por longas guerras de desgaste e atrocidades que ameaçam acabar quase tão mal para Washington quanto a aventura de Moscou com a travessia do Rio Oxus, um quarto de século atrás. Numa das frentes, os Estados Unidos foram bloqueados pelo Taleban, com o apoio do Paquistão, e na outra, pelos xiitas, com o apoio do Irã. Embora ainda presa a Israel, e capaz de encher os céus de drones assassinos ou coordenar um ataque mortífero da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Washington não conseguiu a garantia de imunidade para as forças americanas no Iraque, limitando o número de tropas num país que constitui o eixo do Oriente Médio. Com os levantes democráticos na Tunísia e no Egito, Obama e Hillary Clinton foram obrigados a aplaudir polidamente a eliminação de dois dos regimes por eles favorecidos.
O óbvio dividendo da retirada - um equilíbrio mais racional do poderio militar e dos objetivos americanos de conformidade com a redução dos recursos fiscais e da influência econômica global - continua refém dos planos mirabolantes de Tel-Aviv ou de uma ameaça mortal ao absolutismo saudita. Embora as vastas reservas de petróleo pesado do Canadá e de xisto betuminoso dos Montes Allegheny possam reduzir diretamente a dependência dos EUA dos campos do Oriente Médio, ainda não são suficientes para libertar a economia americana, como alguns pretendem, dos preços da energia nos mercados mundiais, determinados pela política no Golfo.
3. O 1848 árabe
A revolução política do mundo árabe, que ainda não se concluiu, é de dimensões épicas em sua energia social, uma surpresa histórica comparável a 1848 ou a 1989. A ela se deve a reformulação da geopolítica da África do Norte e do Oriente Médio, que torna Israel um obsoleto posto avançado da Guerra Fria (e portanto mais perigoso e imprevisível do que nunca), permitindo ao mesmo tempo que a Turquia, abandonada pela União Europeia (o que, afinal, não é de todo ruim), reivindique uma influência central em territórios outrora otomanos. No Egito e na Tunísia, os levantes também contribuíram para resgatar o autêntico significado de democracia das versões expurgadas propagadas pela Otan. Paralelos provocadores podem ser traçados com as "revoluções das flores" do passado e do presente. Como em 1848 e 1989, a megaintifada árabe é um levante gerado pela reação contra um sistema autocrático regional, em que o Egito pode ser considerado análogo à França no primeiro caso, e talvez à Alemanha Oriental no segundo. O papel da Rússia contrarrevolucionária é hoje desempenhado pela Arábia Saudita e pelos países do Golfo. A Turquia representa a Inglaterra liberal como modelo regional de parlamentarismo e sucesso econômico moderados, enquanto os palestinos (esticando a analogia até seu ponto de ruptura) constituem uma romântica causa perdida como os poloneses; e os xiitas, indignados forasteiros como eslovacos e sérvios. (O Financial Times aconselhou recentemente Obama a pensar como um "novo Metternich".)
Vale a pena passar rapidamente os olhos pelo volumoso material de Marx e Engels a respeito de 1848 (bem como as interpretações posteriores de Trotski) na tentativa de compreender a mecânica fundamental dessas revoluções. Um exemplo é a convicção de Marx, que acabou cristalizada em dogma, de que na Europa nenhuma revolução - democrática ou socialista - poderia ser bem-sucedida enquanto a Rússia não fosse derrotada numa grande guerra ou passasse por uma revolução interna. Se a substituirmos pela Arábia Saudita, a tese continuará fazendo sentido.
4. Partido do povo
O Islã político está ganhando um mandato popular tão amplo (embora talvez não mais duradouro) quanto o concedido pelos acontecimentos de 1989 aos liberais da Europa Oriental. E nem poderia ser diferente. Nos últimos 50 anos, Israel, os Estados Unidos e a Arábia Saudita - os dois primeiros por meio de invasões e a terceira pelo proselitismo - praticamente destruíram a política secular no mundo árabe. Na realidade, com o fim inevitável do último baatista em seu bunker de Damasco, os grandes movimentos políticos pan-árabes dos anos 50 (nasserismo, comunismo, baatismo, Irmandade Muçulmana) terão sido reduzidos à Irmandade e a seus rivais wahhabis.
A Irmandade, principalmente em seu berço egípcio, é a última solteirona dos movimentos políticos, depois de esperar mais de 75 anos para assumir o poder, apesar do apoio maciço de que desfruta ao longo do Nilo, estimado em vários milhões já no fim dos anos 40. A persistência desse veterano movimento político multinacional em pelo menos cinco países árabes constitui também uma das principais diferenças entre o levante de 2011 e os precedentes europeus. Tanto em 1848 e em 1989, os movimentos democráticos populares possuíam uma organização política apenas embrionária. Na realidade, em 1848 não existia praticamente nenhum partido político de massa no sentido moderno, fora dos Estados Unidos. Por outro lado, em 1989-91 o vácuo deixado pela organização política e pelo conhecimento das relações internacionais foi rapidamente preenchido por um grupo de conservadores alemães e comissários de Wall Street, que afastaram a maior parte das verdadeiras lideranças populares.
Em contraposição, a Irmandade Muçulmana foi aparecendo sem estardalhaço como uma esfinge no cenário egípcio. Suas amplas organizações de fachada, operando na semilegalidade, criaram impressionantes elementos de um Estado alternativo que incluem as redes assistenciais cruciais para os pobres. As listas dos seus mártires (como o "Lênin islâmico" Sayyid Qutb, assassinado por Nasser em 1966) são tão conhecidas entre os egípcios mais observantes quanto as listas dos reis para os ingleses ou dos presidentes para os americanos. Apesar de sua imagem assustadora no Ocidente, ela evoluiu até abraçar aspectos do islamismo mais preocupado com o livre mercado, representado pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento na Turquia.
5. O 18 Brumário do Egito?
Entretanto, como demonstrou vividamente o primeiro turno das eleições parlamentares do Egito, a Irmandade Muçulmana não pode mais declarar-se a representante exclusiva da religiosidade popular. O fato de o Partido salafista Al-Nour provisório obter, ao que se calcula, 24% dos votos (em comparação aos 38% da Irmandade) destaca a turbulência existente nas bases populares da sociedade egípcia. Na realidade, embora os salafistas tenham preferido abster-se inicialmente da revolução de 25 de janeiro, talvez agora constituam a maior organização de quadros do mundo sunita. Seguindo as pegadas da Irmandade Muçulmana, e consideravelmente subsidiados por Riad, eles cultivam um nefasto conflito com os coptas e os sufis. O equilíbrio de poder entre os dois campos islâmicos provavelmente será decidido neste ano pelo preço do pão e pela política do Exército. Se a Irmandade tivesse chegado ao poder mais cedo, na década passada, o crescimento global teria sido fortalecido pelo apelo e pela possibilidade do caminho turco. Mas como todos os sinais apontam agora para a crise, o paradigma de Ancara (como o modelo brasileiro na América do Sul) poderá acabar perdendo seu sucesso econômico e seu considerável apelo regional.
Por outro lado, a imagem pública salafista - incorruptível, antipolítica e sectária - será automaticamente atraída por uma maior miséria e pelas eventuais ameaças ao Islã. Alguns elementos das Forças Armadas egípcias indubitavelmente já analisaram a "opção palestina" de uma tácita ou formal aliança com os salafistas. Existem circunstâncias que podem oferecer de antemão o seguinte cenário: a persistente resistência dos generais a uma transferência substantiva do poder; a incapacidade da Irmandade Muçulmana de atender às mínimas expectativas populares de bem-estar econômico; ou o fato de a coalizão liberal de esquerda tornar-se o árbitro das maiorias parlamentares. (Israel, por sua vez, poderia desestabilizar a democracia egípcia com um único ataque aéreo. Como reagiriam os partidos sunitas a um ataque contra o Irã?)
Nessa eventualidade, a esquerda egípcia estuda o 18 Brumário desde Nasser. Conhece profundamente questões como plebiscitos, lumpenproletariat, governantes napoleônicos e sacos de batatas. Seus grupúsculos e redes, aliados aos trabalhadores e aos jovens de todas as denominações políticas, foram fundamentais para a revolução de 25 de janeiro, e para a nova ocupação da Praça Tahrir, em novembro. Poderá um governo de maioria islâmica garantir o direito da nova esquerda e dos sindicatos independentes de se organizarem? Essa será a prova de fogo da democracia egípcia.
6. Colapso mediterrâneo
Enquanto isso, o sul da Europa enfrenta a mesma devastação por ajuste estrutural que a América Latina experimentou nos anos 80. As ironias são terríveis. Apesar de o centro-norte europeu ter desenvolvido um caso repentino de amnésia aguda, alguns anos atrás a imprensa financeira estava elogiando a Espanha, Portugal e até a Grécia (além da Turquia, fora da UE) por suas competências na redução dos gastos públicos e elevação das taxas de crescimento. Logo em seguida ao colapso de Wall Street, os temores da UE se centraram principalmente na Irlanda, Báltico e Leste Europeu. O Mediterrâneo como um todo era percebido como relativamente bem protegido do tsunami financeiro que cruzava o Atlântico com velocidade supersônica.
De sua parte, o Mediterrâneo árabe teve pouca participação nos circuitos trombóticos de investimento de capital e trading de derivativos, e por isso teve uma exposição direta mínima à crise financeira. O sul da Europa, por sua vez, tinha governos em geral obedientes e, no caso da Espanha, bancos fortes. A Itália era simplesmente grande e rica demais para quebrar, enquanto a Grécia, apesar de incômoda, era uma economia liliputiana (meros 2% do PIB da UE) cujas traquinagens pouco ameaçavam os brobdingnagianos. No entanto, uma defesa mais plausível poderia ser feita de que é o sucesso alemão que está realmente causando a ruína da zona do euro. Com sua mão de obra barata no leste, suas vantagens de produtividade incomparáveis e seu fanatismo de tipo chinês sobre enormes superávits comerciais, a Alemanha compete com vantagens de sobra com seus irmãos de euro no sul da Europa. A UE como um todo, por sua vez, tem seu maior superávit comercial relativo com a Turquia e com Estados norte-africanos não produtores de petróleo (US$ 34 bilhões em 2010), assegurando sua dependência de remessas de fora, turismo e investimento estrangeiro para equilibrar as contas. Por conseguinte, o Mediterrâneo inteiro está agudamente sensível aos movimentos cíclicos da demanda e às taxas de juros na UE, enquanto Alemanha, França, Grã-Bretanha e os outros países ricos do norte fazem mercados secundários servir de amortecedores de choques.
O euro é a caixa de redução dessa economia Grosseuropäische de múltiplas velocidades. Para a Alemanha, o euro funciona como um marco alemão simplificado que, por ser menos vulnerável a uma valorização súbita, assegura uma precificação competitiva para as exportações alemãs enquanto subtrai pouco do poder de veto de facto de Berlim dentro da economia da UE. Para os sul-europeus, por outro lado, ele é uma barganha faustiana que atrai capital nos bons tempos, mas os leva a abdicar do uso de ferramentas monetárias para combater déficits comerciais e desemprego nos tempos ruins.
Agora que a varíola ibérica e helênica infectou a Itália e ameaça a França, uma visão de amor real da Euroeuropa está surgindo de Berlim e Paris: integração fiscal via revisão de tratado. Depois de perderem o controle da política monetária e terem sido obrigados a desfolhar seus setores públicos sob a supervisão de técnicos da UE e do FMI, os países devedores ainda estão sendo solicitados a aceitar um veto permanente franco-alemão sobre seus orçamentos e gastos públicos. No século 19, a Grã-Bretanha enviou com frequência suas canhoneiras para impor essas tutelas a países inadimplentes da América Latina ou da Ásia. Os Aliados sujeitaram a Alemanha da mesma maneira em Versalhes, e com isso semearam o Terceiro Reich.
Seja por submissão a Sarkozy-Merkel ou por default e saída da zona do euro (e, talvez, da UE), as economias mediterrâneas estão sendo sentenciadas a anos de cruel hiperdesemprego. Mas suas populações não vão aceitar mansamente esse boa-noite. Portugal e Grécia, tendo chegado mais perto de verdadeiras revoluções sociais nos anos 70, preservam as culturas de esquerda mais sólidas da Europa. Na Espanha, o novo governo conservador representa um amplo e convidativo alvo para uma renascente esquerda unida e ao muito maior, mas ainda amorfo, movimento de protesto da juventude. Aliás, as brasas do anticapitalismo provavelmente serão reacendidas por toda a Europa. Mas a direita anti-imigrantes e anti-Bruxelas pode ganhar bem mais que a esquerda com a ruptura da zona do euro e a formação de um círculo com os vagões da UE em torno do centro. Como no caso dos salafistas do Egito ou do Tea Party nos Estados Unidos, os partidos da nova direita europeia têm políticas de identidade e furor de criar bodes expiatórios para pronta entrega. Uma ambição extraordinária para a esquerda anticapitalista na Europa Ocidental seria a reocupação do espaço político mantido pelos comunistas por 30 anos após 1945. Os movimentos liderados por Marine Le Pen e Geert Wilders, por outro lado, têm esperanças razoáveis de se mostrarem um sério desafio às muito maiores e mais bem financiadas agremiações conservadoras em suas políticas nacionais. A tomada pela extrema direita do Partido Republicano nos Estados Unidos lhes oferece um modelo inspirador.
7. Motor de revolta
As rebeliões universitárias de 1968 na Europa e nos Estados Unidos foram espiritual e politicamente alimentadas pela Ofensiva do Tet no Vietnã, as insurgências guerrilheiras na América Latina, a Revolução Cultural chinesa e os levantes dos guetos nos EUA. Da mesma maneira, os indignados do ano passado extraíram sua força primordial dos exemplos de Túnis e Cairo (os vários milhões de filhos e netos de imigrantes árabes no sul da Europa tornam essa conexão intimamente vívida e militante). Por conseguinte, jovens passionais na faixa dos 20 anos agora ocupam praças dos dois lados do Mediterrâneo fundamental de Braudel. Em 1968, porém, poucos dos jovens brancos que protestavam na Europa (com a importante exceção da Irlanda do Norte) e nos Estados Unidos compartilhavam as realidades existenciais de seus congêneres em países do Sul. Mesmo se profundamente alienada, a maioria podia esperar transformar sua formação universitária em carreiras afluentes de classe média. Hoje, ao contrário, muitos dos manifestantes em Nova York, Barcelona e Atenas enfrentam perspectivas dramaticamente piores que as de seus pais e mais próximas das de seus congêneres em Casablanca e Alexandria. Alguns dos ocupantes do Parque Zuccotti, se tivessem se formado dez anos antes, poderiam ter saído da universidade direto para salários de US$ 100 mil anuais num fundo de hedge ou banco de investimento. Hoje eles trabalham na Starbucks.
Globalmente, o desemprego de adultos jovens atingiu níveis recordes, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) - entre 25% e 50% na maioria dos países com protestos puxados por jovens. De mais a mais, no cadinho norte-africano da revolução árabe um diploma universitário é inversamente proporcional à probabilidade de emprego. Também em outros países o investimento familiar em educação, quando a dívida assumida é considerada, paga dividendos negativos. Ao mesmo tempo, o acesso à educação superior se tornou mais restrito dramaticamente nos EUA, Grã-Bretanha e Chile.
8. Filas do sopão
A crise econômica combina a deflação de ativos populares (os valores das casas e, com eles, do capital familiar nos EUA, Irlanda, Espanha) com forte inflação de itens essenciais para o custo de vida, em especial, combustíveis e alimentos. Na teoria clássica, quando se espera que tendências de preço amplas caminhem em sincronia com o ciclo econômico, essa é uma bifurcação incomum. Na realidade, ela pode ser ainda mais assustadora. A crise das hipotecas nos Estados Unidos e alhures é parte da crise financeira mais geral e, ou será resolvida por intervenção do governo ou pela simples destruição das pretensões de valorização. O preço básico do petróleo bruto, por sua vez, pode cair à medida que a Ásia industrial desacelere e os níveis de produção aumentem no Iraque. O debate sobre o pico da produção de petróleo me parece indeterminável e interminável. Mas os preços dos alimentos parecem estar subindo como uma tendência secular, determinada por forças em grande parte externas à crise financeira e à desaceleração industrial. Aliás, um coro crescente de vozes de especialistas vem advertindo, desde o início dos anos 2000, que o sistema global de segurança alimentar está em colapso. Causas múltiplas se alimentam e se ampliam mutuamente: desvio de grãos para a produção de carne e biocombustíveis; corte neoliberal de subsídios a alimentos e à sustentação de preços; especulação desenfreada em futuros de safras e terras agrícolas de primeira; subinvestimento em pesquisa agrícola; preços voláteis da energia; exaustão de solos e esgotamento de aquíferos; secas e mudanças climáticas; e assim por diante. Na medida em que um crescimento mais lento reduzirá algumas dessas pressões (chineses comendo menos carne, por exemplo), o puro impeto do aumento populacional - outros 3 bilhões de pessoas no tempo de vida dos manifestantes de hoje - manterá as pressões do lado da demanda (as culturas geneticamente modificadas foram promovidas como uma solução milagrosa, é claro, mas mais provavelmente para os lucros do agronegócio que para colheitas líquidas).
"Pão" foi a primeira reivindicação dos protestos na Praça Tahrir, e a palavra ecoa na Primavera Árabe com quase igual intensidade que no outubro russo. As razões são simples: os egípcios comuns, por exemplo, gastam cerca de 60% de seu orçamento familiar em petróleo bruto (aquecimento, cozinha, transporte), farinha, óleos vegetais e açúcar. Em 2008, os preços desses produtos básicos subiram repentinamente 25%. A taxa de pobreza oficial no Egito aumentou abruptamente em 12%. Aplique-se a mesma proporção a outros países de "renda média" e a inflação dos produtos de consumo básicos eliminará uma fração substancial da "classe média emergente" do Banco Mundial.
9. Esperando a China pousar
Marx culpou a Califórnia - a Corrida do Ouro e seu resultante estímulo monetário ao comércio mundial - pelo encerramento prematuro do ciclo revolucionário dos anos 1840. Logo depois de 2008, os países do chamado Brics se tornaram a nova Califórnia. O dirigível Wall Street caiu do céu e se espatifou na terra, mas a China continuou voando, com Brasil e Sudeste Asiático em formação cerrada. Índia e Rússia também conseguiram manter seus aviões no ar. A levitação resistente dos Brics causou espanto em consultores de investimento, colunistas de economia e astrólogos profissionais - que proclamavam que a China, ou a Índia, agora poderia segurar o mundo com uma mão, ou que o Brasil em breve ficaria mais rico que a Espanha. Sua credulidade eufórica decorria, é claro, de uma ignorância das soberbas técnicas de prestidigitação usadas pelos houdinis do Banco do Povo da China. A própria Pequim, em forte contraste, há muito manifestou temores significativos sobre a excessiva dependência do país de exportações, a ineficiência do poder de compra das famílias e a existência de uma escassez de moradias a preços acessíveis lado a lado com uma imensa bolha imobiliária.
No fim do ano passado, os artigos de fé dos otimistas da China de repente encolheram nas páginas editoriais e o cenário de "pouso acidentado" se tornou o preferido dos apostadores. Ninguém sabe, nem mesmo a liderança chinesa, por quanto tempo mais a economia pode continuar voando em face dos ventos contrários globais. Mas a inevitável lista de baixas de passageiros estrangeiros já foi compilada: América do Sul, Austrália, boa parte da África e a maior parte do Sudeste Asiático. E - de particular interesse - a Alemanha, que hoje comercia mais com a China que com os Estados Unidos. Evidentemente, uma recessão global totalmente triangulada é precisamente aquele pesadelo não linear ao qual aludi no começo. É quase uma tautologia observar que, em países do bloco Brics, onde as expectativas populares de progresso econômico foram recentemente alçadas tão alto, a dor da "repauperização" pode ser intolerável. Milhares de praças públicas podem pedir para ser ocupadas, incluindo uma chamada Tiananmen (da Paz Celestial).
Pós-marxistas ocidentais - vivendo em países em que o tamanho absoluto ou relativo da força de trabalho industrial encolheu dramaticamente na última geração - matutam preguiçosamente sobre se a "agência proletária" está ou não obsoleta agora, obrigando-nos a pensar em termos de "multidões", espontaneidade horizontal, o que for. Mas esse não é um debate na grande sociedade em industrialização que Das Kapital descreve ainda mais precisamente que a Grã-Bretanha vitoriana ou a América do New Deal. Os 200 milhões de operários fabris, mineiros e trabalhadores da construção chineses são a classe sob maior risco do planeta (perguntem ao Conselho de Estado em Pequim). Seu pleno despertar da bolha ainda poderá determinar se uma Terra socialista ainda é possível ou não.
Tradução de Ana Capovilla e Celso Paciornik
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
Segundo ato da leva de protestos de 2011 poderá refletir desaceleração e mesmo colapso do crescimento econômico
Nos grandes levantes, as analogias literalmente explodem no ar. Protestos de 2011 que emocionaram o mundo - a Primavera Árabe, os verões quentes na Espanha e na Grécia, o outono dos movimentos Ocupe nos Estados Unidos - inevitavelmente foram comparados aos anni mirabiles de 1848, 1905, 1968 e 1989. Certamente, algumas coisas fundamentais ainda se aplicam e os padrões clássicos se repetem. Os tiranos tremem, as correntes se partem e os palácios são invadidos. As ruas se tornam laboratórios mágicos onde se criam os conceitos de cidadania e de companheirismo, e ideias radicais adquirem repentinamente um poder telúrico. O Iskra (jornal político redigido por emigrantes russos na Alemanha, de cunho marxista) torna-se o atual Facebook. Mas será que o cometa dos protestos persistirá no céu do inverno ou não passará de uma chuva de meteoros rápida e ofuscante? Como o destino das journées revolutionnaires de outrora nos adverte, a primavera é a estação mais curta, principalmente quando os communards combatem em nome de um "mundo diferente", para o qual não existe projeto concreto nem imagem idealizada.
Mas talvez isso venha mais tarde. Por enquanto, a sobrevivência de novos movimentos sociais exige que eles finquem raízes na resistência das massas à catástrofe econômica global, o que, por sua vez, pressupõe - sejamos honestos - que a disposição atual para a "horizontalidade" possa abranger uma "verticalidade" disciplinada para debater e empreender estratégias de organização. A estrada será assustadoramente longa até alcançar os pontos de partida de tentativas anteriores para a construção de um mundo novo. Entretanto, uma certa geração já iniciou corajosamente a jornada.
Será que o agravamento da crise econômica, que está devorando grande parte do mundo, acelerará uma renovação global da esquerda? Os pontos a seguir são conjeturas minhas. Com a finalidade de instigar o debate, são simplesmente pensamentos em voz alta sobre algumas das especificidades históricas dos acontecimentos de 2011 e os resultados que poderão apresentar nos próximos anos. A premissa subjacente é a de que o segundo ato do drama poderá acarretar cenas hibernais, num cenário de colapso do crescimento econômico baseado em exportações nos países do bloco Brics e também da estagnação persistente na Europa e nos Estados Unidos.
1. Pesadelos do capitalismo
Em primeiro lugar, devemos prestar um tributo ao medo e ao pânico do capitalismo. O que era inconcebível apenas um ano atrás, até mesmo para a maioria dos marxistas, agora é o fantasma que assombra as páginas dos editoriais da imprensa econômica: a iminente destruição de boa parte da estrutura institucional da globalização e a erosão da ordem internacional depois de 1989. Existe uma crescente apreensão de que a crise da zona do euro, seguida por uma recessão mundial sincronizada, possa nos fazer voltar ao mundo dos anos 30 com seus blocos monetários e comerciais semiautárquicos, obcecados por ressentimentos nacionalistas. Nesse cenário, a norma hegemônica do dinheiro e da demanda já não existe: os EUA estão demasiado enfraquecidos; a Europa, demasiado desorganizada; e a China, com pés de barro, demasiado dependente das exportações. Até as potências de segundo escalão gostariam de ter a própria apólice de seguro representada pelo urânio enriquecido; guerras nucleares regionais se tornariam uma possibilidade. Muito distante? Talvez, mas também é bizarra a crença nas viagens no tempo para os anos loucos da década de 90. Nossas mentes analógicas simplesmente não conseguem resolver todas as equações diferenciais geradas pela incipiente fragmentação da zona do euro ou consertar uma pane no motor do crescimento da China. Enquanto a explosão em Wall Street, em 2008, foi antecipada por vários especialistas, com maior ou menor precisão, o que agora se aproxima rapidamente está muito além da capacidade de previsão de qualquer cassandra ou de três Karl Marx.
2. De Saigon a Cabul
Se um apocalipse neoliberal está realmente por perto, Washington e Wall Street serão considerados os principais anjos exterminadores, por explodirem ao mesmo tempo o sistema financeiro do Atlântico Norte e o Oriente Médio (e ainda destruíram qualquer chance de frear o desastre climático). As invasões do Iraque e do Afeganistão ordenadas por Bush poderão ser consideradas, numa retrospectiva histórica, atos ditados pela clássica arrogância desmedida: rápidas vitórias por meio de armas modernas e ilusões de onipotência, seguidas por longas guerras de desgaste e atrocidades que ameaçam acabar quase tão mal para Washington quanto a aventura de Moscou com a travessia do Rio Oxus, um quarto de século atrás. Numa das frentes, os Estados Unidos foram bloqueados pelo Taleban, com o apoio do Paquistão, e na outra, pelos xiitas, com o apoio do Irã. Embora ainda presa a Israel, e capaz de encher os céus de drones assassinos ou coordenar um ataque mortífero da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Washington não conseguiu a garantia de imunidade para as forças americanas no Iraque, limitando o número de tropas num país que constitui o eixo do Oriente Médio. Com os levantes democráticos na Tunísia e no Egito, Obama e Hillary Clinton foram obrigados a aplaudir polidamente a eliminação de dois dos regimes por eles favorecidos.
O óbvio dividendo da retirada - um equilíbrio mais racional do poderio militar e dos objetivos americanos de conformidade com a redução dos recursos fiscais e da influência econômica global - continua refém dos planos mirabolantes de Tel-Aviv ou de uma ameaça mortal ao absolutismo saudita. Embora as vastas reservas de petróleo pesado do Canadá e de xisto betuminoso dos Montes Allegheny possam reduzir diretamente a dependência dos EUA dos campos do Oriente Médio, ainda não são suficientes para libertar a economia americana, como alguns pretendem, dos preços da energia nos mercados mundiais, determinados pela política no Golfo.
3. O 1848 árabe
A revolução política do mundo árabe, que ainda não se concluiu, é de dimensões épicas em sua energia social, uma surpresa histórica comparável a 1848 ou a 1989. A ela se deve a reformulação da geopolítica da África do Norte e do Oriente Médio, que torna Israel um obsoleto posto avançado da Guerra Fria (e portanto mais perigoso e imprevisível do que nunca), permitindo ao mesmo tempo que a Turquia, abandonada pela União Europeia (o que, afinal, não é de todo ruim), reivindique uma influência central em territórios outrora otomanos. No Egito e na Tunísia, os levantes também contribuíram para resgatar o autêntico significado de democracia das versões expurgadas propagadas pela Otan. Paralelos provocadores podem ser traçados com as "revoluções das flores" do passado e do presente. Como em 1848 e 1989, a megaintifada árabe é um levante gerado pela reação contra um sistema autocrático regional, em que o Egito pode ser considerado análogo à França no primeiro caso, e talvez à Alemanha Oriental no segundo. O papel da Rússia contrarrevolucionária é hoje desempenhado pela Arábia Saudita e pelos países do Golfo. A Turquia representa a Inglaterra liberal como modelo regional de parlamentarismo e sucesso econômico moderados, enquanto os palestinos (esticando a analogia até seu ponto de ruptura) constituem uma romântica causa perdida como os poloneses; e os xiitas, indignados forasteiros como eslovacos e sérvios. (O Financial Times aconselhou recentemente Obama a pensar como um "novo Metternich".)
Vale a pena passar rapidamente os olhos pelo volumoso material de Marx e Engels a respeito de 1848 (bem como as interpretações posteriores de Trotski) na tentativa de compreender a mecânica fundamental dessas revoluções. Um exemplo é a convicção de Marx, que acabou cristalizada em dogma, de que na Europa nenhuma revolução - democrática ou socialista - poderia ser bem-sucedida enquanto a Rússia não fosse derrotada numa grande guerra ou passasse por uma revolução interna. Se a substituirmos pela Arábia Saudita, a tese continuará fazendo sentido.
4. Partido do povo
O Islã político está ganhando um mandato popular tão amplo (embora talvez não mais duradouro) quanto o concedido pelos acontecimentos de 1989 aos liberais da Europa Oriental. E nem poderia ser diferente. Nos últimos 50 anos, Israel, os Estados Unidos e a Arábia Saudita - os dois primeiros por meio de invasões e a terceira pelo proselitismo - praticamente destruíram a política secular no mundo árabe. Na realidade, com o fim inevitável do último baatista em seu bunker de Damasco, os grandes movimentos políticos pan-árabes dos anos 50 (nasserismo, comunismo, baatismo, Irmandade Muçulmana) terão sido reduzidos à Irmandade e a seus rivais wahhabis.
A Irmandade, principalmente em seu berço egípcio, é a última solteirona dos movimentos políticos, depois de esperar mais de 75 anos para assumir o poder, apesar do apoio maciço de que desfruta ao longo do Nilo, estimado em vários milhões já no fim dos anos 40. A persistência desse veterano movimento político multinacional em pelo menos cinco países árabes constitui também uma das principais diferenças entre o levante de 2011 e os precedentes europeus. Tanto em 1848 e em 1989, os movimentos democráticos populares possuíam uma organização política apenas embrionária. Na realidade, em 1848 não existia praticamente nenhum partido político de massa no sentido moderno, fora dos Estados Unidos. Por outro lado, em 1989-91 o vácuo deixado pela organização política e pelo conhecimento das relações internacionais foi rapidamente preenchido por um grupo de conservadores alemães e comissários de Wall Street, que afastaram a maior parte das verdadeiras lideranças populares.
Em contraposição, a Irmandade Muçulmana foi aparecendo sem estardalhaço como uma esfinge no cenário egípcio. Suas amplas organizações de fachada, operando na semilegalidade, criaram impressionantes elementos de um Estado alternativo que incluem as redes assistenciais cruciais para os pobres. As listas dos seus mártires (como o "Lênin islâmico" Sayyid Qutb, assassinado por Nasser em 1966) são tão conhecidas entre os egípcios mais observantes quanto as listas dos reis para os ingleses ou dos presidentes para os americanos. Apesar de sua imagem assustadora no Ocidente, ela evoluiu até abraçar aspectos do islamismo mais preocupado com o livre mercado, representado pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento na Turquia.
5. O 18 Brumário do Egito?
Entretanto, como demonstrou vividamente o primeiro turno das eleições parlamentares do Egito, a Irmandade Muçulmana não pode mais declarar-se a representante exclusiva da religiosidade popular. O fato de o Partido salafista Al-Nour provisório obter, ao que se calcula, 24% dos votos (em comparação aos 38% da Irmandade) destaca a turbulência existente nas bases populares da sociedade egípcia. Na realidade, embora os salafistas tenham preferido abster-se inicialmente da revolução de 25 de janeiro, talvez agora constituam a maior organização de quadros do mundo sunita. Seguindo as pegadas da Irmandade Muçulmana, e consideravelmente subsidiados por Riad, eles cultivam um nefasto conflito com os coptas e os sufis. O equilíbrio de poder entre os dois campos islâmicos provavelmente será decidido neste ano pelo preço do pão e pela política do Exército. Se a Irmandade tivesse chegado ao poder mais cedo, na década passada, o crescimento global teria sido fortalecido pelo apelo e pela possibilidade do caminho turco. Mas como todos os sinais apontam agora para a crise, o paradigma de Ancara (como o modelo brasileiro na América do Sul) poderá acabar perdendo seu sucesso econômico e seu considerável apelo regional.
Por outro lado, a imagem pública salafista - incorruptível, antipolítica e sectária - será automaticamente atraída por uma maior miséria e pelas eventuais ameaças ao Islã. Alguns elementos das Forças Armadas egípcias indubitavelmente já analisaram a "opção palestina" de uma tácita ou formal aliança com os salafistas. Existem circunstâncias que podem oferecer de antemão o seguinte cenário: a persistente resistência dos generais a uma transferência substantiva do poder; a incapacidade da Irmandade Muçulmana de atender às mínimas expectativas populares de bem-estar econômico; ou o fato de a coalizão liberal de esquerda tornar-se o árbitro das maiorias parlamentares. (Israel, por sua vez, poderia desestabilizar a democracia egípcia com um único ataque aéreo. Como reagiriam os partidos sunitas a um ataque contra o Irã?)
Nessa eventualidade, a esquerda egípcia estuda o 18 Brumário desde Nasser. Conhece profundamente questões como plebiscitos, lumpenproletariat, governantes napoleônicos e sacos de batatas. Seus grupúsculos e redes, aliados aos trabalhadores e aos jovens de todas as denominações políticas, foram fundamentais para a revolução de 25 de janeiro, e para a nova ocupação da Praça Tahrir, em novembro. Poderá um governo de maioria islâmica garantir o direito da nova esquerda e dos sindicatos independentes de se organizarem? Essa será a prova de fogo da democracia egípcia.
6. Colapso mediterrâneo
Enquanto isso, o sul da Europa enfrenta a mesma devastação por ajuste estrutural que a América Latina experimentou nos anos 80. As ironias são terríveis. Apesar de o centro-norte europeu ter desenvolvido um caso repentino de amnésia aguda, alguns anos atrás a imprensa financeira estava elogiando a Espanha, Portugal e até a Grécia (além da Turquia, fora da UE) por suas competências na redução dos gastos públicos e elevação das taxas de crescimento. Logo em seguida ao colapso de Wall Street, os temores da UE se centraram principalmente na Irlanda, Báltico e Leste Europeu. O Mediterrâneo como um todo era percebido como relativamente bem protegido do tsunami financeiro que cruzava o Atlântico com velocidade supersônica.
De sua parte, o Mediterrâneo árabe teve pouca participação nos circuitos trombóticos de investimento de capital e trading de derivativos, e por isso teve uma exposição direta mínima à crise financeira. O sul da Europa, por sua vez, tinha governos em geral obedientes e, no caso da Espanha, bancos fortes. A Itália era simplesmente grande e rica demais para quebrar, enquanto a Grécia, apesar de incômoda, era uma economia liliputiana (meros 2% do PIB da UE) cujas traquinagens pouco ameaçavam os brobdingnagianos. No entanto, uma defesa mais plausível poderia ser feita de que é o sucesso alemão que está realmente causando a ruína da zona do euro. Com sua mão de obra barata no leste, suas vantagens de produtividade incomparáveis e seu fanatismo de tipo chinês sobre enormes superávits comerciais, a Alemanha compete com vantagens de sobra com seus irmãos de euro no sul da Europa. A UE como um todo, por sua vez, tem seu maior superávit comercial relativo com a Turquia e com Estados norte-africanos não produtores de petróleo (US$ 34 bilhões em 2010), assegurando sua dependência de remessas de fora, turismo e investimento estrangeiro para equilibrar as contas. Por conseguinte, o Mediterrâneo inteiro está agudamente sensível aos movimentos cíclicos da demanda e às taxas de juros na UE, enquanto Alemanha, França, Grã-Bretanha e os outros países ricos do norte fazem mercados secundários servir de amortecedores de choques.
O euro é a caixa de redução dessa economia Grosseuropäische de múltiplas velocidades. Para a Alemanha, o euro funciona como um marco alemão simplificado que, por ser menos vulnerável a uma valorização súbita, assegura uma precificação competitiva para as exportações alemãs enquanto subtrai pouco do poder de veto de facto de Berlim dentro da economia da UE. Para os sul-europeus, por outro lado, ele é uma barganha faustiana que atrai capital nos bons tempos, mas os leva a abdicar do uso de ferramentas monetárias para combater déficits comerciais e desemprego nos tempos ruins.
Agora que a varíola ibérica e helênica infectou a Itália e ameaça a França, uma visão de amor real da Euroeuropa está surgindo de Berlim e Paris: integração fiscal via revisão de tratado. Depois de perderem o controle da política monetária e terem sido obrigados a desfolhar seus setores públicos sob a supervisão de técnicos da UE e do FMI, os países devedores ainda estão sendo solicitados a aceitar um veto permanente franco-alemão sobre seus orçamentos e gastos públicos. No século 19, a Grã-Bretanha enviou com frequência suas canhoneiras para impor essas tutelas a países inadimplentes da América Latina ou da Ásia. Os Aliados sujeitaram a Alemanha da mesma maneira em Versalhes, e com isso semearam o Terceiro Reich.
Seja por submissão a Sarkozy-Merkel ou por default e saída da zona do euro (e, talvez, da UE), as economias mediterrâneas estão sendo sentenciadas a anos de cruel hiperdesemprego. Mas suas populações não vão aceitar mansamente esse boa-noite. Portugal e Grécia, tendo chegado mais perto de verdadeiras revoluções sociais nos anos 70, preservam as culturas de esquerda mais sólidas da Europa. Na Espanha, o novo governo conservador representa um amplo e convidativo alvo para uma renascente esquerda unida e ao muito maior, mas ainda amorfo, movimento de protesto da juventude. Aliás, as brasas do anticapitalismo provavelmente serão reacendidas por toda a Europa. Mas a direita anti-imigrantes e anti-Bruxelas pode ganhar bem mais que a esquerda com a ruptura da zona do euro e a formação de um círculo com os vagões da UE em torno do centro. Como no caso dos salafistas do Egito ou do Tea Party nos Estados Unidos, os partidos da nova direita europeia têm políticas de identidade e furor de criar bodes expiatórios para pronta entrega. Uma ambição extraordinária para a esquerda anticapitalista na Europa Ocidental seria a reocupação do espaço político mantido pelos comunistas por 30 anos após 1945. Os movimentos liderados por Marine Le Pen e Geert Wilders, por outro lado, têm esperanças razoáveis de se mostrarem um sério desafio às muito maiores e mais bem financiadas agremiações conservadoras em suas políticas nacionais. A tomada pela extrema direita do Partido Republicano nos Estados Unidos lhes oferece um modelo inspirador.
7. Motor de revolta
As rebeliões universitárias de 1968 na Europa e nos Estados Unidos foram espiritual e politicamente alimentadas pela Ofensiva do Tet no Vietnã, as insurgências guerrilheiras na América Latina, a Revolução Cultural chinesa e os levantes dos guetos nos EUA. Da mesma maneira, os indignados do ano passado extraíram sua força primordial dos exemplos de Túnis e Cairo (os vários milhões de filhos e netos de imigrantes árabes no sul da Europa tornam essa conexão intimamente vívida e militante). Por conseguinte, jovens passionais na faixa dos 20 anos agora ocupam praças dos dois lados do Mediterrâneo fundamental de Braudel. Em 1968, porém, poucos dos jovens brancos que protestavam na Europa (com a importante exceção da Irlanda do Norte) e nos Estados Unidos compartilhavam as realidades existenciais de seus congêneres em países do Sul. Mesmo se profundamente alienada, a maioria podia esperar transformar sua formação universitária em carreiras afluentes de classe média. Hoje, ao contrário, muitos dos manifestantes em Nova York, Barcelona e Atenas enfrentam perspectivas dramaticamente piores que as de seus pais e mais próximas das de seus congêneres em Casablanca e Alexandria. Alguns dos ocupantes do Parque Zuccotti, se tivessem se formado dez anos antes, poderiam ter saído da universidade direto para salários de US$ 100 mil anuais num fundo de hedge ou banco de investimento. Hoje eles trabalham na Starbucks.
Globalmente, o desemprego de adultos jovens atingiu níveis recordes, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) - entre 25% e 50% na maioria dos países com protestos puxados por jovens. De mais a mais, no cadinho norte-africano da revolução árabe um diploma universitário é inversamente proporcional à probabilidade de emprego. Também em outros países o investimento familiar em educação, quando a dívida assumida é considerada, paga dividendos negativos. Ao mesmo tempo, o acesso à educação superior se tornou mais restrito dramaticamente nos EUA, Grã-Bretanha e Chile.
8. Filas do sopão
A crise econômica combina a deflação de ativos populares (os valores das casas e, com eles, do capital familiar nos EUA, Irlanda, Espanha) com forte inflação de itens essenciais para o custo de vida, em especial, combustíveis e alimentos. Na teoria clássica, quando se espera que tendências de preço amplas caminhem em sincronia com o ciclo econômico, essa é uma bifurcação incomum. Na realidade, ela pode ser ainda mais assustadora. A crise das hipotecas nos Estados Unidos e alhures é parte da crise financeira mais geral e, ou será resolvida por intervenção do governo ou pela simples destruição das pretensões de valorização. O preço básico do petróleo bruto, por sua vez, pode cair à medida que a Ásia industrial desacelere e os níveis de produção aumentem no Iraque. O debate sobre o pico da produção de petróleo me parece indeterminável e interminável. Mas os preços dos alimentos parecem estar subindo como uma tendência secular, determinada por forças em grande parte externas à crise financeira e à desaceleração industrial. Aliás, um coro crescente de vozes de especialistas vem advertindo, desde o início dos anos 2000, que o sistema global de segurança alimentar está em colapso. Causas múltiplas se alimentam e se ampliam mutuamente: desvio de grãos para a produção de carne e biocombustíveis; corte neoliberal de subsídios a alimentos e à sustentação de preços; especulação desenfreada em futuros de safras e terras agrícolas de primeira; subinvestimento em pesquisa agrícola; preços voláteis da energia; exaustão de solos e esgotamento de aquíferos; secas e mudanças climáticas; e assim por diante. Na medida em que um crescimento mais lento reduzirá algumas dessas pressões (chineses comendo menos carne, por exemplo), o puro impeto do aumento populacional - outros 3 bilhões de pessoas no tempo de vida dos manifestantes de hoje - manterá as pressões do lado da demanda (as culturas geneticamente modificadas foram promovidas como uma solução milagrosa, é claro, mas mais provavelmente para os lucros do agronegócio que para colheitas líquidas).
"Pão" foi a primeira reivindicação dos protestos na Praça Tahrir, e a palavra ecoa na Primavera Árabe com quase igual intensidade que no outubro russo. As razões são simples: os egípcios comuns, por exemplo, gastam cerca de 60% de seu orçamento familiar em petróleo bruto (aquecimento, cozinha, transporte), farinha, óleos vegetais e açúcar. Em 2008, os preços desses produtos básicos subiram repentinamente 25%. A taxa de pobreza oficial no Egito aumentou abruptamente em 12%. Aplique-se a mesma proporção a outros países de "renda média" e a inflação dos produtos de consumo básicos eliminará uma fração substancial da "classe média emergente" do Banco Mundial.
9. Esperando a China pousar
Marx culpou a Califórnia - a Corrida do Ouro e seu resultante estímulo monetário ao comércio mundial - pelo encerramento prematuro do ciclo revolucionário dos anos 1840. Logo depois de 2008, os países do chamado Brics se tornaram a nova Califórnia. O dirigível Wall Street caiu do céu e se espatifou na terra, mas a China continuou voando, com Brasil e Sudeste Asiático em formação cerrada. Índia e Rússia também conseguiram manter seus aviões no ar. A levitação resistente dos Brics causou espanto em consultores de investimento, colunistas de economia e astrólogos profissionais - que proclamavam que a China, ou a Índia, agora poderia segurar o mundo com uma mão, ou que o Brasil em breve ficaria mais rico que a Espanha. Sua credulidade eufórica decorria, é claro, de uma ignorância das soberbas técnicas de prestidigitação usadas pelos houdinis do Banco do Povo da China. A própria Pequim, em forte contraste, há muito manifestou temores significativos sobre a excessiva dependência do país de exportações, a ineficiência do poder de compra das famílias e a existência de uma escassez de moradias a preços acessíveis lado a lado com uma imensa bolha imobiliária.
No fim do ano passado, os artigos de fé dos otimistas da China de repente encolheram nas páginas editoriais e o cenário de "pouso acidentado" se tornou o preferido dos apostadores. Ninguém sabe, nem mesmo a liderança chinesa, por quanto tempo mais a economia pode continuar voando em face dos ventos contrários globais. Mas a inevitável lista de baixas de passageiros estrangeiros já foi compilada: América do Sul, Austrália, boa parte da África e a maior parte do Sudeste Asiático. E - de particular interesse - a Alemanha, que hoje comercia mais com a China que com os Estados Unidos. Evidentemente, uma recessão global totalmente triangulada é precisamente aquele pesadelo não linear ao qual aludi no começo. É quase uma tautologia observar que, em países do bloco Brics, onde as expectativas populares de progresso econômico foram recentemente alçadas tão alto, a dor da "repauperização" pode ser intolerável. Milhares de praças públicas podem pedir para ser ocupadas, incluindo uma chamada Tiananmen (da Paz Celestial).
Pós-marxistas ocidentais - vivendo em países em que o tamanho absoluto ou relativo da força de trabalho industrial encolheu dramaticamente na última geração - matutam preguiçosamente sobre se a "agência proletária" está ou não obsoleta agora, obrigando-nos a pensar em termos de "multidões", espontaneidade horizontal, o que for. Mas esse não é um debate na grande sociedade em industrialização que Das Kapital descreve ainda mais precisamente que a Grã-Bretanha vitoriana ou a América do New Deal. Os 200 milhões de operários fabris, mineiros e trabalhadores da construção chineses são a classe sob maior risco do planeta (perguntem ao Conselho de Estado em Pequim). Seu pleno despertar da bolha ainda poderá determinar se uma Terra socialista ainda é possível ou não.
Tradução de Ana Capovilla e Celso Paciornik
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Visibilidade e poder democrático (Roberto Romano)
A luta entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) define uma nova e importante etapa na democratização do Estado brasileiro. Como previsível, os intocáveis do Judiciário aliam-se aos congressistas e políticos do Executivo, ampliando a campanha contra a imprensa. Novamente o erro é atribuído a quem divulga os males institucionais. A publicidade integra a doutrina e a prática do Estado moderno. Como o Brasil só com boa vontade merece o nome de plena democracia (o nome certo do nosso regime é federação oligárquica), até hoje venceram o privilégio e a impunidade. Descobertos os seus erros, os donos dos palácios desejam aplicar viseiras novas no Ministério Público (MP) e na mídia.
"São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o indivíduo não precisa ser justo." A frase vem do sofista Antifonte (século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o que se passa nas casas das pessoas "comuns" (sobretudo nos bolsos) e nos países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais seguidas pelos dirigentes.
O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.
Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão absolutista, "a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (...) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (...) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar" (Jean-Pierre Chrétien-Goni).
A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível responsabilidade política dos governantes. Na "accountability" os operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa. Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.
A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado (força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver Wendell Holmes) e a "genética socialista" (as teses de Trofim Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa "a verdade", em russo).
Como harmonizar o Estado e a vida livre?
A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis - daí a necessária regulamentação do lobby - e, por sua vez, os legisladores e juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina acima do público ("os leigos") atrai, como dizia Immanuel Kant, a desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto Bobbio, "todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome" ("o poder mascarado").
Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar. "Autoridade", na ordem democrática, significa "ser autorizado" pelo povo soberano. Mas os nossos poderosos - no Executivo, no Legislativo, no Judiciário - fingem nada saber sobre o assunto.
O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da cruz.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
"São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o indivíduo não precisa ser justo." A frase vem do sofista Antifonte (século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o que se passa nas casas das pessoas "comuns" (sobretudo nos bolsos) e nos países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais seguidas pelos dirigentes.
O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.
Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão absolutista, "a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (...) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (...) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar" (Jean-Pierre Chrétien-Goni).
A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível responsabilidade política dos governantes. Na "accountability" os operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa. Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.
A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado (força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver Wendell Holmes) e a "genética socialista" (as teses de Trofim Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa "a verdade", em russo).
Como harmonizar o Estado e a vida livre?
A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis - daí a necessária regulamentação do lobby - e, por sua vez, os legisladores e juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina acima do público ("os leigos") atrai, como dizia Immanuel Kant, a desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto Bobbio, "todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome" ("o poder mascarado").
Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar. "Autoridade", na ordem democrática, significa "ser autorizado" pelo povo soberano. Mas os nossos poderosos - no Executivo, no Legislativo, no Judiciário - fingem nada saber sobre o assunto.
O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da cruz.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
E os 11 milhões? (José de Souza Martins)
É generoso defender os desvalidos da cracolândia, mas o verdadeiro compromisso social é com os interesses da maioria da população
O pouco que se viu, nestes dias, do confronto de opiniões sobre a cracolândia, entre o PSDB e o PT, já é suficiente para indicar uma tendência. De um lado, a cidade vista, pelo primeiro, como vítima do uso impróprio de suas ruas pelos viciados. De outro, a população de rua apresentada, pelo segundo, como vítima da administração atual.
Em matéria para a TV Estadão, Bruno Paes Manso chama a atenção para as origens históricas da cracolândia. Nos anos 90, os noias eram ameaçados e mortos nos bairros por grupos de extermínio, fosse de traficantes, fosse de moradores irritados com assaltos e roubos para o dinheiro da droga. Encontraram abrigo na antiga zona do meretrício, nas proximidades da Estação Júlio Prestes. Território do ilícito, porque supostamente protegido por policiais corruptos, abrigou, também, o tráfico livre e deu aos viciados a segurança de que careciam.
Ao perderem de vista a história dos territórios deteriorados dessas repúblicas populares dos socialmente marginalizados, os partidos políticos mostram que estão desprovidos de informações decisivas para solução desse problema, quando no acaso do poder. A recíproca acusação de responsabilidade pelo grave problema social, dos partidos políticos em confronto, acoberta a respectiva omissão e não raro os equívocos que cercam o entendimento de questões como essa. Não só equívocos seus, mas também dos grupos não partidários, com distintas e até opostas motivações, que investem na questão em busca de dividendos morais próprios.
Recuar ao ontem para compreender esse tema problemático pode ser decisivo. Situar o debate partidário fora do cenário de paixões que o cercam é fundamental para o eleitor, que será, no fim das contas, o juiz das providências de governo e dos programas de partidos para solucionar a questão. A cracolândia é constituída por uma população permanente de 400 pessoas e uma população flutuante de 2 mil. Essa é a conta de resto do censo dos cidadãos de meia cidadania que a ocupam e a usam. O censo de 2010 registrou que a população da capital é de mais de 11 milhões de pessoas. Uma proporção alta dessa população ladeia ou atravessa diariamente a cracolândia, enclave num dos mais importantes cenários de equipamentos culturais da cidade, como museus históricos e de arte e sua mais importante sala de concertos, além de ser um dos mais movimentados pontos de junção de linhas de trem e de metrô. A fraqueza política do debate esboçado está na omissão desse confronto decisivo para o eleitor. Com Henri Lefebvre, um dos maiores especialistas em cidades e sociedades urbanas, pode-se defini-lo como confronto entre quem usa a cidade, o cidadão, e quem a consome e preda, o viciado.
É generoso e significativo para a democracia brasileira que exista uma vigorosa opinião pública em defesa dos desvalidos da cracolândia. Ao se tornar um problema social, ela se torna problema de todos. É em nome de todos que são traçadas as políticas públicas, também as dirigidas a essa população. Mas políticas públicas que não levam em conta as carências das maiorias correm o risco de não levarem a lugar nenhum, nem mesmo às urnas. Penso que é desse tipo a decisão do ministro da Saúde, nestes dias em que a cracolândia inscreve-se no debate eleitoral, de criar um programa para a questão das drogas sobretudo um programa para a candidatura federal. Expõe-se o PT à crítica fácil de suas responsabilidades na questão da cracolândia. Não só por improvisos como esse, mas também porque foi em duas administrações petistas, inspiradas pela ideologia da periferização do centro da cidade, que a territorialização dos viciados e da droga se confirmou.
Por seu lado, a fragilidade do PSDB está em não ter construído um vocabulário, como fez o PT, de conversação tanto com a numerosa população da periferia quanto com os setores mais sensíveis ao apelo humanitário na classe média e na elite. O PSDB está em desvantagem com esses grupos dotados de enorme capacidade de multiplicação da opinião partidária. O apenas esboçado debate partidário sobre a cracolândia, embora de conteúdo mais consistente no discurso dos pré-candidatos do PSDB e muito menos consistente na improvisada reação do PT, teve na internet um efeito multiplicador muito maior em favor do PT do que do PSDB. Num momento em que as redes sociais derrubam governos em vários países, esse cenário deveria deixar os tucanos muito preocupados. Não basta falar em nome dos 11 milhões cujos interesses se contrapõem aos interesses dos 2 mil da cracolândia. É preciso mostrar que o verdadeiro compromisso social está também e sobretudo em que os interesses dos 11 milhões estão por trás da política muito positiva de recuperação urgente de um território a que a cidade tem direito. Nessa opção, a civilidade precede o vício. Não basta optar pela cidade e pela maioria. É preciso saber dizê-lo.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da faculdade de filosofia da USP, autor, entre outros livros, de “A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO” (CONTEXTO, 2011)
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
O pouco que se viu, nestes dias, do confronto de opiniões sobre a cracolândia, entre o PSDB e o PT, já é suficiente para indicar uma tendência. De um lado, a cidade vista, pelo primeiro, como vítima do uso impróprio de suas ruas pelos viciados. De outro, a população de rua apresentada, pelo segundo, como vítima da administração atual.
Em matéria para a TV Estadão, Bruno Paes Manso chama a atenção para as origens históricas da cracolândia. Nos anos 90, os noias eram ameaçados e mortos nos bairros por grupos de extermínio, fosse de traficantes, fosse de moradores irritados com assaltos e roubos para o dinheiro da droga. Encontraram abrigo na antiga zona do meretrício, nas proximidades da Estação Júlio Prestes. Território do ilícito, porque supostamente protegido por policiais corruptos, abrigou, também, o tráfico livre e deu aos viciados a segurança de que careciam.
Ao perderem de vista a história dos territórios deteriorados dessas repúblicas populares dos socialmente marginalizados, os partidos políticos mostram que estão desprovidos de informações decisivas para solução desse problema, quando no acaso do poder. A recíproca acusação de responsabilidade pelo grave problema social, dos partidos políticos em confronto, acoberta a respectiva omissão e não raro os equívocos que cercam o entendimento de questões como essa. Não só equívocos seus, mas também dos grupos não partidários, com distintas e até opostas motivações, que investem na questão em busca de dividendos morais próprios.
Recuar ao ontem para compreender esse tema problemático pode ser decisivo. Situar o debate partidário fora do cenário de paixões que o cercam é fundamental para o eleitor, que será, no fim das contas, o juiz das providências de governo e dos programas de partidos para solucionar a questão. A cracolândia é constituída por uma população permanente de 400 pessoas e uma população flutuante de 2 mil. Essa é a conta de resto do censo dos cidadãos de meia cidadania que a ocupam e a usam. O censo de 2010 registrou que a população da capital é de mais de 11 milhões de pessoas. Uma proporção alta dessa população ladeia ou atravessa diariamente a cracolândia, enclave num dos mais importantes cenários de equipamentos culturais da cidade, como museus históricos e de arte e sua mais importante sala de concertos, além de ser um dos mais movimentados pontos de junção de linhas de trem e de metrô. A fraqueza política do debate esboçado está na omissão desse confronto decisivo para o eleitor. Com Henri Lefebvre, um dos maiores especialistas em cidades e sociedades urbanas, pode-se defini-lo como confronto entre quem usa a cidade, o cidadão, e quem a consome e preda, o viciado.
É generoso e significativo para a democracia brasileira que exista uma vigorosa opinião pública em defesa dos desvalidos da cracolândia. Ao se tornar um problema social, ela se torna problema de todos. É em nome de todos que são traçadas as políticas públicas, também as dirigidas a essa população. Mas políticas públicas que não levam em conta as carências das maiorias correm o risco de não levarem a lugar nenhum, nem mesmo às urnas. Penso que é desse tipo a decisão do ministro da Saúde, nestes dias em que a cracolândia inscreve-se no debate eleitoral, de criar um programa para a questão das drogas sobretudo um programa para a candidatura federal. Expõe-se o PT à crítica fácil de suas responsabilidades na questão da cracolândia. Não só por improvisos como esse, mas também porque foi em duas administrações petistas, inspiradas pela ideologia da periferização do centro da cidade, que a territorialização dos viciados e da droga se confirmou.
Por seu lado, a fragilidade do PSDB está em não ter construído um vocabulário, como fez o PT, de conversação tanto com a numerosa população da periferia quanto com os setores mais sensíveis ao apelo humanitário na classe média e na elite. O PSDB está em desvantagem com esses grupos dotados de enorme capacidade de multiplicação da opinião partidária. O apenas esboçado debate partidário sobre a cracolândia, embora de conteúdo mais consistente no discurso dos pré-candidatos do PSDB e muito menos consistente na improvisada reação do PT, teve na internet um efeito multiplicador muito maior em favor do PT do que do PSDB. Num momento em que as redes sociais derrubam governos em vários países, esse cenário deveria deixar os tucanos muito preocupados. Não basta falar em nome dos 11 milhões cujos interesses se contrapõem aos interesses dos 2 mil da cracolândia. É preciso mostrar que o verdadeiro compromisso social está também e sobretudo em que os interesses dos 11 milhões estão por trás da política muito positiva de recuperação urgente de um território a que a cidade tem direito. Nessa opção, a civilidade precede o vício. Não basta optar pela cidade e pela maioria. É preciso saber dizê-lo.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da faculdade de filosofia da USP, autor, entre outros livros, de “A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO” (CONTEXTO, 2011)
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
Ildo Sauer: “O ato mais entreguista da história foi o leilão de petróleo para Eike”
De todas as más notícias recebidas por Eike Batista nos últimos tempos*, esta ("O ato mais entreguista da história foi o leilão de petróleo para Eike ")**, publicada no último nº da revista da Associação de Docentes da USP - que o envolve em mais uma denúncia de relações privilegiadas com autoridades públicas -, é a mais grave.
“O ato mais entreguista
da história foi o leilão
de petróleo para Eike”
O professor Ildo Luís Sauer, diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEEUSP),
se diz um “fruto do programa nuclear brasileiro”, pois, quando estudante, o
regime militar — interessado em formar quadros para tocar as dezenas de usinas
que pretendia construir no país após o acordo com a Alemanha — lhe concedeu
bolsa de iniciação científica, “bolsa para fazer o mestrado e o doutorado em
engenharia nuclear e outras coisas mais”. Ao longo de sua trajetória acadêmica,
porém, Sauer convenceu-se de que a energia nuclear não convém ao Brasil, e
passou a dedicar-se mais à energia elétrica e ao petróleo.
Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007, período que cobriu
o primeiro mandato do presidente Lula e o início do segundo, e no qual tinha a
expectativa de amplas mudanças na área de energia e petróleo. Orgulha-se de haver
participado das decisões que levaram à descoberta das jazidas do Pré-Sal. Mas
frustrou-se ao constatar que, ao invés da reforma que ele e o físico Pinguelli Rosa
propuseram a pedido do próprio Lula, o governo tomou medidas que fortaleciam
os agentes privados, em detrimento das empresas públicas e da sociedade em geral.
Nas páginas a seguir Sauer desfecha contundentes ataques às políticas de energia do
governo, com destaque para a continuidade do modelo do setor elétrico herdado de
Fernando Henrique Cardoso e — em especial — para a realização do leilão de “áreas
de risco” da franja do Pré-Sal que acabaram por ser arrematadas por Eike Batista e
sua OGX, fazendo desse empresário um dos homens mais ricos do mundo. O diretor
do IEE não mede palavras ao opinar sobre o que ocorreu: “O ato mais entreguista
da história brasileira, em termos econômicos. Pior, foi dos processos de acumulação
primitiva mais extraordinários da história do capitalismo mundial. Alguém sai do nada
e em três anos tem uma fortuna de bilhões de dólares”.
Quanto à contestada Belo Monte, Sauer, diferentemente de uma parte dos críticos,
considera que a usina preenche todos os requisitos técnicos de operação. O problema,
afirma incisivamente, “não é técnico, não é econômico, o problema lá é simplesmente
político”, porque, em função dos erros do governo e da falta de planejamento,
“ressuscitou-se um projeto longamente gestado pelo governo militar”, e assim “de certa
forma um governo democrático e popular se serve da espada criada pelos militares para
cravá-la no peito dos índios e camponeses, com métodos que não deixam nada a dever
à ditadura de então, em relação à forma como a usina foi feita, de repente”.
Procuradas pela reportagem, as assessorias de comunicação
da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula informaram
que eles não comentariam as declarações do professor.
A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar
e Thaís Carrança e ao repórter-fotográfico Daniel Garcia
Copie o link abaixo para ler a íntegra da matéria:
www.adusp.org.br/files/revistas/51/r51a01.pdf
“O ato mais entreguista
da história foi o leilão
de petróleo para Eike”
O professor Ildo Luís Sauer, diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEEUSP),
se diz um “fruto do programa nuclear brasileiro”, pois, quando estudante, o
regime militar — interessado em formar quadros para tocar as dezenas de usinas
que pretendia construir no país após o acordo com a Alemanha — lhe concedeu
bolsa de iniciação científica, “bolsa para fazer o mestrado e o doutorado em
engenharia nuclear e outras coisas mais”. Ao longo de sua trajetória acadêmica,
porém, Sauer convenceu-se de que a energia nuclear não convém ao Brasil, e
passou a dedicar-se mais à energia elétrica e ao petróleo.
Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007, período que cobriu
o primeiro mandato do presidente Lula e o início do segundo, e no qual tinha a
expectativa de amplas mudanças na área de energia e petróleo. Orgulha-se de haver
participado das decisões que levaram à descoberta das jazidas do Pré-Sal. Mas
frustrou-se ao constatar que, ao invés da reforma que ele e o físico Pinguelli Rosa
propuseram a pedido do próprio Lula, o governo tomou medidas que fortaleciam
os agentes privados, em detrimento das empresas públicas e da sociedade em geral.
Nas páginas a seguir Sauer desfecha contundentes ataques às políticas de energia do
governo, com destaque para a continuidade do modelo do setor elétrico herdado de
Fernando Henrique Cardoso e — em especial — para a realização do leilão de “áreas
de risco” da franja do Pré-Sal que acabaram por ser arrematadas por Eike Batista e
sua OGX, fazendo desse empresário um dos homens mais ricos do mundo. O diretor
do IEE não mede palavras ao opinar sobre o que ocorreu: “O ato mais entreguista
da história brasileira, em termos econômicos. Pior, foi dos processos de acumulação
primitiva mais extraordinários da história do capitalismo mundial. Alguém sai do nada
e em três anos tem uma fortuna de bilhões de dólares”.
Quanto à contestada Belo Monte, Sauer, diferentemente de uma parte dos críticos,
considera que a usina preenche todos os requisitos técnicos de operação. O problema,
afirma incisivamente, “não é técnico, não é econômico, o problema lá é simplesmente
político”, porque, em função dos erros do governo e da falta de planejamento,
“ressuscitou-se um projeto longamente gestado pelo governo militar”, e assim “de certa
forma um governo democrático e popular se serve da espada criada pelos militares para
cravá-la no peito dos índios e camponeses, com métodos que não deixam nada a dever
à ditadura de então, em relação à forma como a usina foi feita, de repente”.
Procuradas pela reportagem, as assessorias de comunicação
da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula informaram
que eles não comentariam as declarações do professor.
A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar
e Thaís Carrança e ao repórter-fotográfico Daniel Garcia
Copie o link abaixo para ler a íntegra da matéria:
www.adusp.org.br/files/revistas/51/r51a01.pdf
sábado, 21 de janeiro de 2012
PMDB de Vila Velha em busca de novos rumos?
Mudanças no PMDB de Vila Velha: conforme nota publicada na coluna Praça 8 de A Gazeta, o diretor do Procon, Antonio Caldas Brito, vai assumir a direção do partido na Cidade. Boa notícia para uns, péssima para outros.
Do PMDB de Vitória e quadro histórico do partido, Caldas Brito já atuou na política Canela-Verde na condição de Secretário durante certo período da gestão Max Filho. A nomeaçao sinaliza um processo de intervenção da Regional na condução do partido no município. A primeira consequência será deixar ao partido certa margem de autonomia para conversar e articular com os demais candidatos e partidos a eleição de 2012, o que não seria possível sob a liderança do vereador Andinho Almeida que controlou o diretório municipal nesses últimos três anos.
A indicação de Caldas Brito desautoriza, em parte, a política do Vereador Andinho de subordinação do PMDB municipal ao projeto político de Neucimar Fraga e, por consequência, da vinculação automática ao plano de reeleição do Prefeito. Embora permanecendo no governo, o PMDB começa a descolar da via continuísta de Neucimar.
Se perdem o vereador Andinho e Neucimar Fraga, ganham o próprio PMDB e o deputado estadual Hercules Silveira.
O PMDB, como disse, ganha relativa margem de autonomia para discutir seu posicionamento futuro. A subordinação a um governo mal avaliado e com pouca probabilidade de sucesso na reeleição, colocava em uma saia justa um partido que tem como "virtude" a capacidade de sempre estar com o governo, independente de quem seja o governo.
Ganha o deputado Hércules da Silveira que tem uma postura de oposição a Neucimar e tenta, aos trancos e barrancos, viabilizar a sua candidatura a prefeito. Candidatura não apenas de oposição, mas que agregasse aquilo que alguns tentam construir sob a denominação de "3ª via" em Vila Velha. Projeto frustado, até então, dado o controle de Andinho sobre o partido e suas vinculações com Neucimar. Isolado, estava condenado a nadar, nadar e morrer na praia. Com a mudança abrem-se as possibilidades efetivas de viabilizar seu projeto pessoal.
Para os que gostam das teorias conspiratórias, como eu, nesse caso, os dedos que movem as peças no tabuleiro e determinam esse reposicionamento dos peões são os dedos nada sutis de Paulo Hartung.
Dessa forma, o discurso da 3ª via em Vila Velha passa a ser o discurso que pavimenta os caminhos por onde transita o projeto de Paulo Hartung de ter sob controle a eleição no municipio. Se já trabalha para que Rodney Miranda seja um nome que ajude a quebrar a polarização Max Filho/Neucimar, possibilita, agora, as condições para que Hercules Silveira seja o outro nome desse projeto.
Aos outros postulantes a condição de ungidos de PH só resta o ranger dos dentes para compensar a possível frustação.
No mais, até o próximo sábado.
Do PMDB de Vitória e quadro histórico do partido, Caldas Brito já atuou na política Canela-Verde na condição de Secretário durante certo período da gestão Max Filho. A nomeaçao sinaliza um processo de intervenção da Regional na condução do partido no município. A primeira consequência será deixar ao partido certa margem de autonomia para conversar e articular com os demais candidatos e partidos a eleição de 2012, o que não seria possível sob a liderança do vereador Andinho Almeida que controlou o diretório municipal nesses últimos três anos.
A indicação de Caldas Brito desautoriza, em parte, a política do Vereador Andinho de subordinação do PMDB municipal ao projeto político de Neucimar Fraga e, por consequência, da vinculação automática ao plano de reeleição do Prefeito. Embora permanecendo no governo, o PMDB começa a descolar da via continuísta de Neucimar.
Se perdem o vereador Andinho e Neucimar Fraga, ganham o próprio PMDB e o deputado estadual Hercules Silveira.
O PMDB, como disse, ganha relativa margem de autonomia para discutir seu posicionamento futuro. A subordinação a um governo mal avaliado e com pouca probabilidade de sucesso na reeleição, colocava em uma saia justa um partido que tem como "virtude" a capacidade de sempre estar com o governo, independente de quem seja o governo.
Ganha o deputado Hércules da Silveira que tem uma postura de oposição a Neucimar e tenta, aos trancos e barrancos, viabilizar a sua candidatura a prefeito. Candidatura não apenas de oposição, mas que agregasse aquilo que alguns tentam construir sob a denominação de "3ª via" em Vila Velha. Projeto frustado, até então, dado o controle de Andinho sobre o partido e suas vinculações com Neucimar. Isolado, estava condenado a nadar, nadar e morrer na praia. Com a mudança abrem-se as possibilidades efetivas de viabilizar seu projeto pessoal.
Para os que gostam das teorias conspiratórias, como eu, nesse caso, os dedos que movem as peças no tabuleiro e determinam esse reposicionamento dos peões são os dedos nada sutis de Paulo Hartung.
Dessa forma, o discurso da 3ª via em Vila Velha passa a ser o discurso que pavimenta os caminhos por onde transita o projeto de Paulo Hartung de ter sob controle a eleição no municipio. Se já trabalha para que Rodney Miranda seja um nome que ajude a quebrar a polarização Max Filho/Neucimar, possibilita, agora, as condições para que Hercules Silveira seja o outro nome desse projeto.
Aos outros postulantes a condição de ungidos de PH só resta o ranger dos dentes para compensar a possível frustação.
No mais, até o próximo sábado.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Os limites do adesismo (Cláudio Gonçalves Couto)
Se há algo que notabiliza como político o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, é a sua habilidade como articulador. Antes mesmo de ser guindado por José Serra à condição de alcaide da maior metrópole brasileira, Kassab já havia se destacado como o principal construtor do PFL paulista, organizando o partido pelo interior. Foi essa capacidade como negociador político, mais do que eventuais sucessos administrativos, que lhe renderam o posto de vice-prefeito na chapa demo-tucana e, depois, a reeleição, cindindo o PSDB. Seguiu nessa senda ao deflagrar uma defecção em massa do DEM, que teve como subproduto substancial a oportunidade de migração sem custos ou riscos para insatisfeitos de todos os matizes, tanto os desconfortáveis no barco da oposição como os incomodados em agremiações do campo governista. Nada mais fácil, já que o PSD não seria "de direita, de esquerda, nem de centro", apenas oportunista.
A última cartada desta raposa foi a oferta ao PT de uma aliança nas eleições municipais paulistanas. O fato de seu partido ser um invertebrado ideológico, disposto a negociar com quem quer que seja, em princípio facilita as coisas. Mas isto não seria exatamente algo indispensável, já que a lógica coalicional do multipartidarismo brasileiro facilita todas as aproximações, a despeito de quaisquer origens programáticas que as agremiações possam ter tido. Isto fica evidente tanto pelo apoio do PP (partido do capitão Bolsonaro e sucessor da Arena da ditadura militar) ao governo da ex-guerrilheira Dilma Rousseff, quanto pela presença do PCdoB na administração kassabista em São Paulo. Nessa festa partidária brasileira, ninguém é de ninguém e todos são de todos; ou quase. Um dos limites mais claros para isto está nas alianças eleitorais entre os dois partidos polares do sistema nacional, PT e PSDB. Para esses dois, são interditadas as alianças nacionais, estaduais ou em municípios de primeira grandeza, embora sejam liberadas as coligações pelo interiorzão afora, onde a lógica da política nacional não faz sentido e a ideologia é uma língua estranha.
Aliança entre PSD e PT só interessa ao primeiro
Ao acenar publicamente com seu possível apoio ao PT no pleito paulistano, Kassab aumenta seu cacife numa negociação com os tucanos, seus parceiros de primeira hora. De quebra, facilita sua amizade com o governo federal. Contudo, para que tal proposta matreira seja politicamente levada a sério, é preciso considerar se tal aliança é proveitosa para o PT, já que o casamento não sai sem a anuência das partes. Fazendo-se as contas, faz muito pouco sentido, pois o prefeito paulistano não tem muito a oferecer, mas pode causar prejuízos. Vejamos.
Em primeiro lugar, o PSD não carreia tempo de TV para seus aliados (não mais do que 30 segundos), pois tendo sido criado após as últimas eleições congressuais, não obteve votos para deputado federal e, consequentemente, não pontua no critério de distribuição do tempo no horário eleitoral gratuito. Em segundo lugar, a administração de Kassab é mal avaliada pela população, como demonstram todas as pesquisas. Assim, contar com seu apoio mais tira do que atrai votos - como também foi demonstrado em recente pesquisa do Datafolha. Em terceiro lugar, o PT faz uma forte oposição à administração Kassab na Câmara Municipal e em outras instâncias, de modo que uma aliança obrigaria o partido a moderar seu discurso e, no limite, defender o aliado. Como explicar ao eleitor tal mudança de posição? E, se como afirmou Fernando Haddad ao Valor de ontem, candidatos não devem esconder seus aliados, seria muito difícil jogar Kassab para baixo do tapete.
Em quarto lugar, poder-se-ia alegar que Kassab barganharia a aliança eleitoral em troca do eventual apoio dos vereadores de sua base ao futuro prefeito petista, se eleito. Ora, mas há quem duvide que os vereadores que hoje apoiam o prefeito na Câmara, sejam ou não de seu partido, apoiarão qualquer um que for eleito, desde que recebam algo em troca? Portanto, uma oferta como essa apenas enganaria a ingênuos, que se dispõem a pagar por algo que já têm. Em quinto lugar, Kassab poderia barganhar o apoio do PSD à presidenta Dilma em troca da aliança em São Paulo. Mas vale aqui a mesma lógica dos vereadores: o PSD e seus deputados se dispõem a apoiar qualquer governo que atenda a seus pleitos no Legislativo.
O único ganho a ser auferido pelos petistas no caso de uma aliança com o PSD seria o isolamento de José Serra em relação a um de seus maiores aliados. Contudo, tal ganho é largamente sopesado pelos prejuízos que traz (como nas segunda e terceira razões aduzidas acima). Ademais, Serra já passa por um processo de isolamento dentro de seu próprio partido, tanto na frente nacional (com Aécio à frente), como na estadual (com Alckmin à frente). Para quê, então, gastar cartuchos importantes na aceleração de um processo que já está em curso por questões internas à disputa tucana? Faz mais sentido buscar uma aliança com o principal parceiro nacional, o PMDB, eliminando um adversário que também é ligado à educação, jovem e com forte potencial de crescimento (Gabriel Chalita). Ou então, repetir a tradicional aliança com o PCdoB, que possui um candidato bem situado nas pesquisas (Netinho de Paula) e que reforçaria a candidatura petista na periferia da cidade, oferecendo um contraponto à imagem de moço de classe média escolarizada de Haddad (apesar de sofrer forte rejeição).
Em suma, embora o assédio de Kassab ao PT seja um ato de esperteza política, ela faz muito mais sentido para o prefeito de São Paulo do que para o partido de Lula. Entretanto, como ele, apesar de engenheiro e muito matreiro, não é o único que sabe fazer contas, é pouco provável que tal aliança prospere.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
A última cartada desta raposa foi a oferta ao PT de uma aliança nas eleições municipais paulistanas. O fato de seu partido ser um invertebrado ideológico, disposto a negociar com quem quer que seja, em princípio facilita as coisas. Mas isto não seria exatamente algo indispensável, já que a lógica coalicional do multipartidarismo brasileiro facilita todas as aproximações, a despeito de quaisquer origens programáticas que as agremiações possam ter tido. Isto fica evidente tanto pelo apoio do PP (partido do capitão Bolsonaro e sucessor da Arena da ditadura militar) ao governo da ex-guerrilheira Dilma Rousseff, quanto pela presença do PCdoB na administração kassabista em São Paulo. Nessa festa partidária brasileira, ninguém é de ninguém e todos são de todos; ou quase. Um dos limites mais claros para isto está nas alianças eleitorais entre os dois partidos polares do sistema nacional, PT e PSDB. Para esses dois, são interditadas as alianças nacionais, estaduais ou em municípios de primeira grandeza, embora sejam liberadas as coligações pelo interiorzão afora, onde a lógica da política nacional não faz sentido e a ideologia é uma língua estranha.
Aliança entre PSD e PT só interessa ao primeiro
Ao acenar publicamente com seu possível apoio ao PT no pleito paulistano, Kassab aumenta seu cacife numa negociação com os tucanos, seus parceiros de primeira hora. De quebra, facilita sua amizade com o governo federal. Contudo, para que tal proposta matreira seja politicamente levada a sério, é preciso considerar se tal aliança é proveitosa para o PT, já que o casamento não sai sem a anuência das partes. Fazendo-se as contas, faz muito pouco sentido, pois o prefeito paulistano não tem muito a oferecer, mas pode causar prejuízos. Vejamos.
Em primeiro lugar, o PSD não carreia tempo de TV para seus aliados (não mais do que 30 segundos), pois tendo sido criado após as últimas eleições congressuais, não obteve votos para deputado federal e, consequentemente, não pontua no critério de distribuição do tempo no horário eleitoral gratuito. Em segundo lugar, a administração de Kassab é mal avaliada pela população, como demonstram todas as pesquisas. Assim, contar com seu apoio mais tira do que atrai votos - como também foi demonstrado em recente pesquisa do Datafolha. Em terceiro lugar, o PT faz uma forte oposição à administração Kassab na Câmara Municipal e em outras instâncias, de modo que uma aliança obrigaria o partido a moderar seu discurso e, no limite, defender o aliado. Como explicar ao eleitor tal mudança de posição? E, se como afirmou Fernando Haddad ao Valor de ontem, candidatos não devem esconder seus aliados, seria muito difícil jogar Kassab para baixo do tapete.
Em quarto lugar, poder-se-ia alegar que Kassab barganharia a aliança eleitoral em troca do eventual apoio dos vereadores de sua base ao futuro prefeito petista, se eleito. Ora, mas há quem duvide que os vereadores que hoje apoiam o prefeito na Câmara, sejam ou não de seu partido, apoiarão qualquer um que for eleito, desde que recebam algo em troca? Portanto, uma oferta como essa apenas enganaria a ingênuos, que se dispõem a pagar por algo que já têm. Em quinto lugar, Kassab poderia barganhar o apoio do PSD à presidenta Dilma em troca da aliança em São Paulo. Mas vale aqui a mesma lógica dos vereadores: o PSD e seus deputados se dispõem a apoiar qualquer governo que atenda a seus pleitos no Legislativo.
O único ganho a ser auferido pelos petistas no caso de uma aliança com o PSD seria o isolamento de José Serra em relação a um de seus maiores aliados. Contudo, tal ganho é largamente sopesado pelos prejuízos que traz (como nas segunda e terceira razões aduzidas acima). Ademais, Serra já passa por um processo de isolamento dentro de seu próprio partido, tanto na frente nacional (com Aécio à frente), como na estadual (com Alckmin à frente). Para quê, então, gastar cartuchos importantes na aceleração de um processo que já está em curso por questões internas à disputa tucana? Faz mais sentido buscar uma aliança com o principal parceiro nacional, o PMDB, eliminando um adversário que também é ligado à educação, jovem e com forte potencial de crescimento (Gabriel Chalita). Ou então, repetir a tradicional aliança com o PCdoB, que possui um candidato bem situado nas pesquisas (Netinho de Paula) e que reforçaria a candidatura petista na periferia da cidade, oferecendo um contraponto à imagem de moço de classe média escolarizada de Haddad (apesar de sofrer forte rejeição).
Em suma, embora o assédio de Kassab ao PT seja um ato de esperteza política, ela faz muito mais sentido para o prefeito de São Paulo do que para o partido de Lula. Entretanto, como ele, apesar de engenheiro e muito matreiro, não é o único que sabe fazer contas, é pouco provável que tal aliança prospere.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Eliana Calmon para o STF (Cláudio Gonçalves Couto)
Dentre os três Poderes clássicos do Estado democrático de direito (Executivo, Legislativo e Judiciário), apenas este último não é essencialmente democrático - já que não submetido ao escrutínio do "demos" (o povo) na definição de sua composição. Antes, o recrutamento de seus membros se dá com base noutro princípio, o meritocrático - já que seus membros são escolhidos com base numa demonstração de mérito técnico, ou profissional, mediante concursos públicos. Assim, enquanto no Executivo e no Legislativo os detentores do poder decisório principal são políticos eleitos, no Judiciário este papel cabe a funcionários concursados - os juízes.
Por isto, do ponto de vista da fonte de sua legitimidade como agente público, o juiz não é diferente de qualquer outro funcionário público - seja ele um policial, um professor, um médico, um oficial de justiça ou um simples atendente de balcão. Todos estão ali porque prestaram um concurso e nele foram aprovados, tendo demonstrado méritos profissionais suficientes para exercer a função que exercem. Se, por um lado, a meritocracia que caracteriza a burocracia de Estado é um trunfo para o desempenho de tarefas que requerem antes a competência profissional específica do que a representatividade com relação à sociedade, por outro ela torna tais profissionais menos sujeitos ao controle dos cidadãos aos quais servem (ou deveriam servir). E, na falta de controle pelos afetados, há o risco de que os funcionários utilizem de seu poder (o "kratos" da burocracia) em proveito próprio e em detrimento dos demais.
Judiciário é um espaço aristocrático na democracia
Assim, policiais podem se tornar truculentos ou corruptos, professores podem se tornar preguiçosos ou autoritários, médicos podem se tornar indiferentes e pouco assíduos, oficiais de justiça podem se acovardar ou acomodar, atendentes de balcão podem se tornar desatenciosos ou rudes. Por que com juízes seria diferente?
Enquanto políticos ineficazes ou corruptos são submetidos ao escrutínio popular e podem não voltar a ser eleitos, funcionários concursados gozam de estabilidade no emprego. No caso de juízes, desfrutam de vitaliciedade e inamovibilidade. Certamente estas são condições necessárias ao bom exercício de suas funções, pois juízes receosos de uma eventual demissão, ou de uma transferência involuntária do Rio Grande do Sul para Rondônia, correriam o risco de não proferir decisões acordes com a justiça. Contudo, se por um lado tais proteções viabilizam bons julgamentos, por outro criam uma categoria profissional insulada dos anseios sociais. Isto é particularmente grave por se tratar de funcionários do Estado que, diferentemente dos demais burocratas públicos, tomam decisões de especial gravidade para os cidadãos - afinal, são os detentores de um "poder político de Estado", e não apenas seus servidores administrativos.
É esta importância política que confere aos juízes uma aura distinta dos demais servidores públicos, elevando-os do patamar de uma mera burocracia ("governo do escritório") para o de uma aristocracia ("governo dos melhores"). E, como toda aristocracia, os juízes tendem a se perceber como distinguidos dos demais cidadãos - afinal, são melhores que eles. A consequência da distinção é o privilégio: férias de dois meses; auxílio moradia para quem reside na própria cidade em que trabalha; punições premiadas, como as aposentadorias antecipadas para delinquentes togados etc.. O problema é que, como estamos num Estado "democrático" de direito, e a democracia supõe um governo de iguais, privilégios aristocráticos são ilegítimos, o que sempre torna necessário que porta-vozes da magistratura venham a público dar-nos desculpas esfarrapadas sobre as suas razões. Na democracia não há lugar para aristocracias; todas se convertem em oligarquias.
A democratização do Judiciário, de modo a torná-lo consentâneo à ordem democrática, requer a anulação do caráter aristocrático da magistratura. A parte mais simples da solução deste problema é a extinção das distinções privilegiadas (como as férias duplas). A parte mais complexa é a criação de mecanismos institucionais que tornem os juízes mais responsáveis perante o resto da sociedade, obrigando-lhes a prestar contas e impondo-lhes controles (como o CNJ). Um mecanismo possível, que opera verticalmente, é a eleição de juízes, como já ocorre há séculos em tradições jurídicas diferentes da nossa (tradições mais democráticas que a nossa, entenda-se).
Outra possibilidade são os mecanismos horizontais, de controle dos demais Poderes sobre as Cortes. Em parte isto já ocorre na cúpula do Judiciário, pois (felizmente) a nomeação de seus membros está sujeita a autoridades políticas eleitas - indicação pelo chefe do Executivo e sabatina pelo Legislativo. O problema é que tais processos são rápidos demais (inviabilizando uma ampla deliberação pública sobre os nomes) e recebem pouca atenção da imprensa e dos cidadãos. O desejável seria que recebessem uma atenção pública similar à conferida a processos eleitorais - afinal, trata-se de algo equivalente. Essa é uma oportunidade também de arejar a cúpula do Judiciário com juristas oriundos de fora da magistratura - e, portanto, menos propensos aos seus pendores oligárquicos.
Em processos de nomeação mais visíveis para a sociedade, com mais tempo para o debate e com ampla cobertura de imprensa (ao contrário do que se viu recentemente, na nomeação da ministra Rosa Weber), forçar-se-ia uma maior abertura do Judiciário à sociedade, enfraquecendo o corporativismo. Uma maior participação cidadã na nomeação de juízes aumentaria o grau de democracia no Judiciário, reduzindo seu teor aristocrático; renderia magistrados com um perfil mais parecido com o de Eliana Calmon, e menos com o de Cezar Peluso.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Por isto, do ponto de vista da fonte de sua legitimidade como agente público, o juiz não é diferente de qualquer outro funcionário público - seja ele um policial, um professor, um médico, um oficial de justiça ou um simples atendente de balcão. Todos estão ali porque prestaram um concurso e nele foram aprovados, tendo demonstrado méritos profissionais suficientes para exercer a função que exercem. Se, por um lado, a meritocracia que caracteriza a burocracia de Estado é um trunfo para o desempenho de tarefas que requerem antes a competência profissional específica do que a representatividade com relação à sociedade, por outro ela torna tais profissionais menos sujeitos ao controle dos cidadãos aos quais servem (ou deveriam servir). E, na falta de controle pelos afetados, há o risco de que os funcionários utilizem de seu poder (o "kratos" da burocracia) em proveito próprio e em detrimento dos demais.
Judiciário é um espaço aristocrático na democracia
Assim, policiais podem se tornar truculentos ou corruptos, professores podem se tornar preguiçosos ou autoritários, médicos podem se tornar indiferentes e pouco assíduos, oficiais de justiça podem se acovardar ou acomodar, atendentes de balcão podem se tornar desatenciosos ou rudes. Por que com juízes seria diferente?
Enquanto políticos ineficazes ou corruptos são submetidos ao escrutínio popular e podem não voltar a ser eleitos, funcionários concursados gozam de estabilidade no emprego. No caso de juízes, desfrutam de vitaliciedade e inamovibilidade. Certamente estas são condições necessárias ao bom exercício de suas funções, pois juízes receosos de uma eventual demissão, ou de uma transferência involuntária do Rio Grande do Sul para Rondônia, correriam o risco de não proferir decisões acordes com a justiça. Contudo, se por um lado tais proteções viabilizam bons julgamentos, por outro criam uma categoria profissional insulada dos anseios sociais. Isto é particularmente grave por se tratar de funcionários do Estado que, diferentemente dos demais burocratas públicos, tomam decisões de especial gravidade para os cidadãos - afinal, são os detentores de um "poder político de Estado", e não apenas seus servidores administrativos.
É esta importância política que confere aos juízes uma aura distinta dos demais servidores públicos, elevando-os do patamar de uma mera burocracia ("governo do escritório") para o de uma aristocracia ("governo dos melhores"). E, como toda aristocracia, os juízes tendem a se perceber como distinguidos dos demais cidadãos - afinal, são melhores que eles. A consequência da distinção é o privilégio: férias de dois meses; auxílio moradia para quem reside na própria cidade em que trabalha; punições premiadas, como as aposentadorias antecipadas para delinquentes togados etc.. O problema é que, como estamos num Estado "democrático" de direito, e a democracia supõe um governo de iguais, privilégios aristocráticos são ilegítimos, o que sempre torna necessário que porta-vozes da magistratura venham a público dar-nos desculpas esfarrapadas sobre as suas razões. Na democracia não há lugar para aristocracias; todas se convertem em oligarquias.
A democratização do Judiciário, de modo a torná-lo consentâneo à ordem democrática, requer a anulação do caráter aristocrático da magistratura. A parte mais simples da solução deste problema é a extinção das distinções privilegiadas (como as férias duplas). A parte mais complexa é a criação de mecanismos institucionais que tornem os juízes mais responsáveis perante o resto da sociedade, obrigando-lhes a prestar contas e impondo-lhes controles (como o CNJ). Um mecanismo possível, que opera verticalmente, é a eleição de juízes, como já ocorre há séculos em tradições jurídicas diferentes da nossa (tradições mais democráticas que a nossa, entenda-se).
Outra possibilidade são os mecanismos horizontais, de controle dos demais Poderes sobre as Cortes. Em parte isto já ocorre na cúpula do Judiciário, pois (felizmente) a nomeação de seus membros está sujeita a autoridades políticas eleitas - indicação pelo chefe do Executivo e sabatina pelo Legislativo. O problema é que tais processos são rápidos demais (inviabilizando uma ampla deliberação pública sobre os nomes) e recebem pouca atenção da imprensa e dos cidadãos. O desejável seria que recebessem uma atenção pública similar à conferida a processos eleitorais - afinal, trata-se de algo equivalente. Essa é uma oportunidade também de arejar a cúpula do Judiciário com juristas oriundos de fora da magistratura - e, portanto, menos propensos aos seus pendores oligárquicos.
Em processos de nomeação mais visíveis para a sociedade, com mais tempo para o debate e com ampla cobertura de imprensa (ao contrário do que se viu recentemente, na nomeação da ministra Rosa Weber), forçar-se-ia uma maior abertura do Judiciário à sociedade, enfraquecendo o corporativismo. Uma maior participação cidadã na nomeação de juízes aumentaria o grau de democracia no Judiciário, reduzindo seu teor aristocrático; renderia magistrados com um perfil mais parecido com o de Eliana Calmon, e menos com o de Cezar Peluso.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
sábado, 14 de janeiro de 2012
Da arte de engolir sapos, cobras e lagartos
Coisas da política. Engolindo sapos, cobras e lagartos. E, de quebra , outras cositas más. É a versão brasileira do chamado "centralismo democrático" que o camarada Trotsky descreveu tão bem. Mais ou menos assim: primeiro, o partido pensa e decide em nome da sociedade; depois, o comitê central substitui o partido e passa a falar e decidir em nome do partido e da sociedade; e, finalmente, o secretário-geral passa a decidir sozinho em nome do comitê central, do partido e da sociedade.
E onde termina tudo isso? Bem a versão brasileira não vai repetir a matriz da experiência, até porque os processos partidários e essas "vontades coletivas" estão condicionadas por uma institucionalidade democrática, imprensa livre e, queiram ou não queiram, uma opinião pública.
E por que essa digressão, estilo "masturbação" sociológica (prá remeter ao finado Sérgio Motta)?
Pela ironia do que saiu nos jornais de hoje, mais ou menos na seguinte linha: o ex-presidente Lula determinou à direção do PT em São Paulo que marque uma reunião com o prefeito Gilberto Kassab (PSD) e leve a sério a sua proposta de indicar o vice na chapa do pré-candidato Fernando Haddad na sucessão municipal.
Ou seja, com seu inigualável faro político, Lula já definiu e passa a comandar o processo de renovação e rejuvenescimento do PT na cidade de SP e outros estados e capitais.
Agora, que a aproximação constrange os vereadores petistas, com toda a certeza, constrange. Afinal, o partido e a bancada na Câmara fazem fazem dura oposição ao prefeito desde o início da sua gestão, em 2006, e, por consequência, temem sofrer prejuízo eleitoral em caso de uma eventual aliança.
Lula, da sua posição de figura sagrada e quase canonizada no Partido, pode se dar ao luxo de tratorar e entubar os perplexos edis paulistanos. Ditak que estabelece: esqueçam o que falaram e rasguem o que escreveram.
E, isso, torna-se o paradigma que define as relações entre líder e partido. E rebate diretamente nos estados e cidades. E isso, pode ter rebatimentos nas definições que passam pelas candidaturas em Vitória. Não nos esqueçamos que o ex-governador Paulo Hartung sacrificou a candidatura de Ricardo Ferraço, quase imediatamente após um jantar na casa da Praia da Costa com o ex-deputado José Dirceu em uma nebulosa e meteórica passagem pelo ES.
No mais, é aguardar os efeitos da digestão do velho cardápio de répteis, comumente servido por aqueles quem fazem política estabelecendo a métrica do enquadramento e da subordinação.
Roberto Beling
E onde termina tudo isso? Bem a versão brasileira não vai repetir a matriz da experiência, até porque os processos partidários e essas "vontades coletivas" estão condicionadas por uma institucionalidade democrática, imprensa livre e, queiram ou não queiram, uma opinião pública.
E por que essa digressão, estilo "masturbação" sociológica (prá remeter ao finado Sérgio Motta)?
Pela ironia do que saiu nos jornais de hoje, mais ou menos na seguinte linha: o ex-presidente Lula determinou à direção do PT em São Paulo que marque uma reunião com o prefeito Gilberto Kassab (PSD) e leve a sério a sua proposta de indicar o vice na chapa do pré-candidato Fernando Haddad na sucessão municipal.
Ou seja, com seu inigualável faro político, Lula já definiu e passa a comandar o processo de renovação e rejuvenescimento do PT na cidade de SP e outros estados e capitais.
Agora, que a aproximação constrange os vereadores petistas, com toda a certeza, constrange. Afinal, o partido e a bancada na Câmara fazem fazem dura oposição ao prefeito desde o início da sua gestão, em 2006, e, por consequência, temem sofrer prejuízo eleitoral em caso de uma eventual aliança.
Lula, da sua posição de figura sagrada e quase canonizada no Partido, pode se dar ao luxo de tratorar e entubar os perplexos edis paulistanos. Ditak que estabelece: esqueçam o que falaram e rasguem o que escreveram.
E, isso, torna-se o paradigma que define as relações entre líder e partido. E rebate diretamente nos estados e cidades. E isso, pode ter rebatimentos nas definições que passam pelas candidaturas em Vitória. Não nos esqueçamos que o ex-governador Paulo Hartung sacrificou a candidatura de Ricardo Ferraço, quase imediatamente após um jantar na casa da Praia da Costa com o ex-deputado José Dirceu em uma nebulosa e meteórica passagem pelo ES.
No mais, é aguardar os efeitos da digestão do velho cardápio de répteis, comumente servido por aqueles quem fazem política estabelecendo a métrica do enquadramento e da subordinação.
Roberto Beling
Problemas de repertório, o Barcelona e nós (Luiz Werneck Vianna)
Os repertórios constituem um conjunto articulado de conhecimentos e de práticas, selecionados pela experiência, que se tornam dominantes quando amplamente compartilhados, tornando-se, assim, um instrumento de uso generalizado para os diferentes modos do agir social. Tanto podem assumir uma forma simples como, no caso das regras de etiqueta, se revestir da alta complexidade, do tipo das que se manifestam, por exemplo, na ciência, na música erudita e na política. Repertórios mudam, sempre contingenciados pelas alterações do gosto, pela emergência de novas necessidades ou de novos desafios, mas há sociedades e culturas que os protegem dos riscos da obsolescência, envolvendo-os numa aura mística, e até levantam muralhas, como na antiga China, a fim de garantir a permanência de princípios que sustentem dever existir harmonia entre o cosmo e a vida dos homens.
No Ocidente, sob a influência do Século das Luzes, temia-se a síndrome da imobilidade chinesa como um fim do mundo em que as rodas da História parariam de girar, como em Tocqueville, Marx, Nietzsche e Weber. A opção ocidental, decerto num processo que conheceu lutas sociais prolongadas e revoluções, foi a da permanente busca pela inovação do seu repertório cognitivo em todos os ramos da atividade humana, com o que se abriu passagem para o moderno, e desde então, nas conhecidas palavras de um grande autor, tudo o que antes parecia sólido estava condenado a se dissolver no ar, inclusive na China.
Somos filhos, neste extremo Ocidente ibérico em que nos encontramos, dessa mesma cultura, e uma boa testemunha disso está no vitorioso processo de modernização que, há décadas, subverte nossa paisagem econômica e social, implicando a emergência ao mundo dos direitos de massas de milhões que antes nem sequer os divisavam. Contudo, por processos inerentes à nossa formação, em que o Estado cumpriu, e segue cumprindo, papel determinante em todas as dimensões da vida social, continuamos prisioneiros de repertórios que nasceram à sombra da sua incontrastável presença em nossa História, em que pese a afirmação de uma já robusta sociedade civil. Assim é que o peronismo e o varguismo - dois casos clássicos de repertórios que nasceram na órbita do Estado, a seu modo e a seu tempo bem-sucedidos - seguem como presenças renitentes na Argentina e no Brasil, no primeiro caso, abertamente e no segundo, de modo dissimulado, sem ceder lugar mesmo diante das novas circunstâncias com que, atualmente, se defrontam.
No Brasil, essa patologia particular que se manifesta na dificuldade de abandonar surrados repertórios conta com antecedentes históricos vetustos. Angela Alonso, em seu importante estudo sobre a chamada geração de 1870 (Ideias em Movimento, Paz e Terra, 2002), argumenta persuasivamente que uma das razões para a queda do Império esteve na incapacidade de suas elites políticas, em meio a mudanças políticas e sociais - em boa parte desencadeadas por elas -, de abrir seu repertório a práticas e aos discursos que vinham à tona a partir da emergência de novos tipos sociais. Mais intrigante ainda, sinal aziago de que pode estar instalada uma caveira de burro em algum lugar da nossa História, é o processo que transcorre diante de nós quando testemunhamos, dia a dia, um repertório novo e promissor, conquistado em dura e longa luta, ter seu sentido contaminado precisamente pelo que visava a substituir.
Esse repertório novo não nos chegou de cima nem por meio de construções intelectuais arbitrárias sem amparo nas correntes de opinião que germinavam na sociedade civil. Ao contrário, é filho do movimento da resistência democrática à ditadura militar, encorpou-se a partir de meados dos anos 1970 e tomou forma no diagnóstico de que na raiz dos nossos males estava um processo de modernização conservadora que, a partir da chamada Revolução de 1930, recorrendo a fórmulas ora puramente repressivas, ora mais brandas - como no período JK -, sujeitava a sociedade a uma modelagem exercida pelo Estado.
Tal diagnóstico, no curso das lutas da resistência, adensou-se e se converteu no programa que serviu de plataforma para a convocação da Assembleia Constituinte de 1986, que, em suas linhas gerais, o adotou. Sua tópica gravitou em torno dos temas da autonomia da sociedade e da vida associativa quanto ao Estado, da descentralização e valorização do poder local e da abertura da esfera pública a uma ampla participação da cidadania. Além disso, aquele programa estava animado pela disposição de conter a discrição da administração pública, pleito que o constituinte reconheceu ao criar um complexo sistema de controle da sua operação, inclusive pelos novos papéis que concedeu ao Ministério Público. Estava aí, disponível para uma sociedade que experimenta notáveis mudanças em sua economia e em sua estrutura social, um novo repertório.
Mas há algo em nossa História, as marcas profundas do seu pathos conservador, que conspira para que velhos repertórios, como as marchinhas de carnaval, nunca saiam de moda, pois não se pode mais ignorar a ressurgência da síndrome típica dos nossos ciclos de modernização autoritária, já visível no retorno às práticas de centralização administrativa, ao modelo de capitalismo politicamente orientado, ao decisionismo que campeia na ação do Executivo e às esdrúxulas manias de grandeza nacional.
Provavelmente, foi esse pathos que atuou em nossa reação à acachapante derrota do Santos pelo Barcelona, que encontrou explicação, na maior parte da crítica especializada, por uma pretensa fidelidade do time catalão ao velho e vitorioso repertório do futebol brasileiro, que teria sido, em má hora, abandonado por nós. Decididamente, não foi assim, eles criaram um repertório novo, e isso, em geral, nos desconcerta.
(O Estado de São Paulo)
No Ocidente, sob a influência do Século das Luzes, temia-se a síndrome da imobilidade chinesa como um fim do mundo em que as rodas da História parariam de girar, como em Tocqueville, Marx, Nietzsche e Weber. A opção ocidental, decerto num processo que conheceu lutas sociais prolongadas e revoluções, foi a da permanente busca pela inovação do seu repertório cognitivo em todos os ramos da atividade humana, com o que se abriu passagem para o moderno, e desde então, nas conhecidas palavras de um grande autor, tudo o que antes parecia sólido estava condenado a se dissolver no ar, inclusive na China.
Somos filhos, neste extremo Ocidente ibérico em que nos encontramos, dessa mesma cultura, e uma boa testemunha disso está no vitorioso processo de modernização que, há décadas, subverte nossa paisagem econômica e social, implicando a emergência ao mundo dos direitos de massas de milhões que antes nem sequer os divisavam. Contudo, por processos inerentes à nossa formação, em que o Estado cumpriu, e segue cumprindo, papel determinante em todas as dimensões da vida social, continuamos prisioneiros de repertórios que nasceram à sombra da sua incontrastável presença em nossa História, em que pese a afirmação de uma já robusta sociedade civil. Assim é que o peronismo e o varguismo - dois casos clássicos de repertórios que nasceram na órbita do Estado, a seu modo e a seu tempo bem-sucedidos - seguem como presenças renitentes na Argentina e no Brasil, no primeiro caso, abertamente e no segundo, de modo dissimulado, sem ceder lugar mesmo diante das novas circunstâncias com que, atualmente, se defrontam.
No Brasil, essa patologia particular que se manifesta na dificuldade de abandonar surrados repertórios conta com antecedentes históricos vetustos. Angela Alonso, em seu importante estudo sobre a chamada geração de 1870 (Ideias em Movimento, Paz e Terra, 2002), argumenta persuasivamente que uma das razões para a queda do Império esteve na incapacidade de suas elites políticas, em meio a mudanças políticas e sociais - em boa parte desencadeadas por elas -, de abrir seu repertório a práticas e aos discursos que vinham à tona a partir da emergência de novos tipos sociais. Mais intrigante ainda, sinal aziago de que pode estar instalada uma caveira de burro em algum lugar da nossa História, é o processo que transcorre diante de nós quando testemunhamos, dia a dia, um repertório novo e promissor, conquistado em dura e longa luta, ter seu sentido contaminado precisamente pelo que visava a substituir.
Esse repertório novo não nos chegou de cima nem por meio de construções intelectuais arbitrárias sem amparo nas correntes de opinião que germinavam na sociedade civil. Ao contrário, é filho do movimento da resistência democrática à ditadura militar, encorpou-se a partir de meados dos anos 1970 e tomou forma no diagnóstico de que na raiz dos nossos males estava um processo de modernização conservadora que, a partir da chamada Revolução de 1930, recorrendo a fórmulas ora puramente repressivas, ora mais brandas - como no período JK -, sujeitava a sociedade a uma modelagem exercida pelo Estado.
Tal diagnóstico, no curso das lutas da resistência, adensou-se e se converteu no programa que serviu de plataforma para a convocação da Assembleia Constituinte de 1986, que, em suas linhas gerais, o adotou. Sua tópica gravitou em torno dos temas da autonomia da sociedade e da vida associativa quanto ao Estado, da descentralização e valorização do poder local e da abertura da esfera pública a uma ampla participação da cidadania. Além disso, aquele programa estava animado pela disposição de conter a discrição da administração pública, pleito que o constituinte reconheceu ao criar um complexo sistema de controle da sua operação, inclusive pelos novos papéis que concedeu ao Ministério Público. Estava aí, disponível para uma sociedade que experimenta notáveis mudanças em sua economia e em sua estrutura social, um novo repertório.
Mas há algo em nossa História, as marcas profundas do seu pathos conservador, que conspira para que velhos repertórios, como as marchinhas de carnaval, nunca saiam de moda, pois não se pode mais ignorar a ressurgência da síndrome típica dos nossos ciclos de modernização autoritária, já visível no retorno às práticas de centralização administrativa, ao modelo de capitalismo politicamente orientado, ao decisionismo que campeia na ação do Executivo e às esdrúxulas manias de grandeza nacional.
Provavelmente, foi esse pathos que atuou em nossa reação à acachapante derrota do Santos pelo Barcelona, que encontrou explicação, na maior parte da crítica especializada, por uma pretensa fidelidade do time catalão ao velho e vitorioso repertório do futebol brasileiro, que teria sido, em má hora, abandonado por nós. Decididamente, não foi assim, eles criaram um repertório novo, e isso, em geral, nos desconcerta.
(O Estado de São Paulo)
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Dilma falhou no que se dizia melhor ( Rosângela Bittar)
Apagões pequenos, médios e grandes, do Oiapoque ao Chuí; epidemia grave de dengue; mortes novamente por catástrofes da natureza esperadas mas não prevenidas por governos municipais, estaduais e sobretudo federal, a quem compete muito; caos aéreo persistente, resultado de incipientes medidas; erros repetidos na administração da Educação; baixa execução de PACs I ou II; reforma agrária sem resultados; invisível avanço em desempenho na área de segurança. Problemas, esses e muitos outros, do primeiro ano do governo Dilma, todos, de gestão.
A presidente da República gastou seis meses iniciais na montagem do governo e os seis meses finais na desmontagem. Perdeu, na tessitura, dois pilares, Antonio Palocci, chefe da Casa Civil, e Nelson Jobim, ministro da Defesa, dois mais importantes colaboradores. Titubeou, demorou, negaceou, até trocar ministros política e administrativamente inviabilizados nos cargos, levando o governo à paralisia. Quando tomou providências o fez de forma acanhada - pois ainda há áreas no vácuo -, e já era o fim da primeira etapa.
Isso não influiu na popularidade, na capacidade de reeleição, no apoio popular, como citam governistas profissionais, a provar que a aceitação é prova de que o governo foi bom. Não se pode dizer, porém, para o bem do realismo, que se o mau governo não atingiu o voto, não existiu. Com altos índices de aprovação no último Ibope do ano, maior até que seus antecessores no mesmo período, Dilma seria reeleita gloriosamente se o pleito fosse hoje. Mas não poderá dizer que recebeu, para isso, contribuição decisiva de sua performance de gestora, fama que adquiriu já na equipe de transição do governo Lula, antes até de ser ministra.
O governo começa o segundo ano no mesmo ponto que começou o primeiro: tendo que ser remontado, exigindo nomeação de ministros que possam ter competência para executar programas que a presidente venha a apontar como seu projeto de Brasil. Em janeiro de 2012 estão todos no ponto do janeiro de 2011: à espera de que ela diga a que veio e para onde vai.
Dilma terminou em empate, inclusive, no quesito de preservação da democracia e das instituições, ainda necessitadas de cuidados especiais no Brasil. Para cada avanço, houve um retrocesso. Iniciativas como a criação da Comissão da Verdade, ou mudanças dos princípios de política externa para preservar o respeito aos direitos humanos, por exemplo, tiveram seu contraponto na censura a programas de TV e peças de propaganda ensaiadas sem pudores pela ministra da Mulher, Iriny Lopes, e na pressão do partido presidencial, o PT, para que promova o controle da imprensa. Houve outras ameaças que não chegaram a configurar risco real, mas promessas de autoritarismo, como o abuso do governo por medidas provisórias, o que anula o contraditório do Congresso, e renovadas tentativas de eliminar controles do Tribunal de Contas da União.
A timidez administrativa da presidente inibiu até mesmo o grupo criado para ajudá-la a romper o imobilismo da gestão do Estado, a Comissão de Gestão Pública. Jorge Gerdau, empresário coordenador do grupo que levaria para o governo os instrumentos modernos de administração na iniciativa privada, não logrou resultados. O grupo não deu respostas sobre como melhorar a gestão de áreas de administração difícil e, às vezes, dramática, como a da saúde e, principalmente, dos hospitais públicos. Nem da educação, uma gestão perdida entre erros administrativos repetidos, por exemplo, na aplicação de exames nacionais, e equívocos da política universitária expansionista que criou instituições fantasmas pelo interior afora.
O problema é que esses setores de gestão em colapso têm se tornado numerosos, a eles se somando a segurança, o combate ao uso de drogas, a prevenção de desastres ambientais, o abastecimento de energia.
A oposição, se disse neste espaço ao fim de 2011, foi um fracasso retumbante no ano em que deveria se renovar e reafirmar um projeto alternativo para o eleitorado. O governo não ficou à frente, embora, ao contrário da oposição, que nem número teve, contasse com os instrumentos para fazer e acontecer.
O ministério foi formado para atender ao projeto do ex-presidente Lula de preparar candidatos de cara nova para o PT disputar eleições municipais e estaduais. Deu errado no federal, e pode continuar nessa má trilha a julgar-se pelas especulações que cercam a substituição dos ministros candidatos. A troca de Fernando Haddad por Aloizio Mercadante - e não vai aqui nenhum lobby das corporações que lotearam o MEC a favor do secretário-executivo (Henrique Paim) e candidato preferencial de Haddad - continua dentro do projeto de formação de candidatos do PT a eleições traçado por Lula.
As corporações, que governam por intermédio de conferências, ONGs e greves, por sinal, tomaram mais de uma das áreas fundamentais para o sucesso do projeto deste governo. Na saúde tentou-se estabelecer base de alguns programas novos, voltados para a classe média, segundo orientação expressa da presidente, mas foi incipiente. Exemplo de fim de linha nesse setor acontece na porta do governo federal. Brasília, governada pelo PT, que tem na saúde o problema mais grave entre tantos, continua mergulhada na incompetência e falta de perspectiva de soluções. A última do governador Agnelo Queiroz foi criar o ciclo-socorro, as "bikelâncias" que, como o nome indica, são isso mesmo, ambulâncias em bicicleta. Não se tem notícia de reações de perplexidade, terror ou providências no Ministério da Saúde.
O governo parece amarrado, impedido. Com esse fraco e pouco criativo desempenho, Dilma está no topo das pesquisas de popularidade, apoio e aceitação do eleitorado, repetem como um mantra seus acólitos. O ex-presidente Lula já disse, nos idos do pós-mensalão, que um governo começa mesmo no terceiro ano, portanto, esse início não conta. O pior dos mundos será a marquetagem convencer Dilma da desnecessidade de reações firmes neste segundo ano.
Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Valor Econômico (11/01/12)
A presidente da República gastou seis meses iniciais na montagem do governo e os seis meses finais na desmontagem. Perdeu, na tessitura, dois pilares, Antonio Palocci, chefe da Casa Civil, e Nelson Jobim, ministro da Defesa, dois mais importantes colaboradores. Titubeou, demorou, negaceou, até trocar ministros política e administrativamente inviabilizados nos cargos, levando o governo à paralisia. Quando tomou providências o fez de forma acanhada - pois ainda há áreas no vácuo -, e já era o fim da primeira etapa.
Isso não influiu na popularidade, na capacidade de reeleição, no apoio popular, como citam governistas profissionais, a provar que a aceitação é prova de que o governo foi bom. Não se pode dizer, porém, para o bem do realismo, que se o mau governo não atingiu o voto, não existiu. Com altos índices de aprovação no último Ibope do ano, maior até que seus antecessores no mesmo período, Dilma seria reeleita gloriosamente se o pleito fosse hoje. Mas não poderá dizer que recebeu, para isso, contribuição decisiva de sua performance de gestora, fama que adquiriu já na equipe de transição do governo Lula, antes até de ser ministra.
O governo começa o segundo ano no mesmo ponto que começou o primeiro: tendo que ser remontado, exigindo nomeação de ministros que possam ter competência para executar programas que a presidente venha a apontar como seu projeto de Brasil. Em janeiro de 2012 estão todos no ponto do janeiro de 2011: à espera de que ela diga a que veio e para onde vai.
Dilma terminou em empate, inclusive, no quesito de preservação da democracia e das instituições, ainda necessitadas de cuidados especiais no Brasil. Para cada avanço, houve um retrocesso. Iniciativas como a criação da Comissão da Verdade, ou mudanças dos princípios de política externa para preservar o respeito aos direitos humanos, por exemplo, tiveram seu contraponto na censura a programas de TV e peças de propaganda ensaiadas sem pudores pela ministra da Mulher, Iriny Lopes, e na pressão do partido presidencial, o PT, para que promova o controle da imprensa. Houve outras ameaças que não chegaram a configurar risco real, mas promessas de autoritarismo, como o abuso do governo por medidas provisórias, o que anula o contraditório do Congresso, e renovadas tentativas de eliminar controles do Tribunal de Contas da União.
A timidez administrativa da presidente inibiu até mesmo o grupo criado para ajudá-la a romper o imobilismo da gestão do Estado, a Comissão de Gestão Pública. Jorge Gerdau, empresário coordenador do grupo que levaria para o governo os instrumentos modernos de administração na iniciativa privada, não logrou resultados. O grupo não deu respostas sobre como melhorar a gestão de áreas de administração difícil e, às vezes, dramática, como a da saúde e, principalmente, dos hospitais públicos. Nem da educação, uma gestão perdida entre erros administrativos repetidos, por exemplo, na aplicação de exames nacionais, e equívocos da política universitária expansionista que criou instituições fantasmas pelo interior afora.
O problema é que esses setores de gestão em colapso têm se tornado numerosos, a eles se somando a segurança, o combate ao uso de drogas, a prevenção de desastres ambientais, o abastecimento de energia.
A oposição, se disse neste espaço ao fim de 2011, foi um fracasso retumbante no ano em que deveria se renovar e reafirmar um projeto alternativo para o eleitorado. O governo não ficou à frente, embora, ao contrário da oposição, que nem número teve, contasse com os instrumentos para fazer e acontecer.
O ministério foi formado para atender ao projeto do ex-presidente Lula de preparar candidatos de cara nova para o PT disputar eleições municipais e estaduais. Deu errado no federal, e pode continuar nessa má trilha a julgar-se pelas especulações que cercam a substituição dos ministros candidatos. A troca de Fernando Haddad por Aloizio Mercadante - e não vai aqui nenhum lobby das corporações que lotearam o MEC a favor do secretário-executivo (Henrique Paim) e candidato preferencial de Haddad - continua dentro do projeto de formação de candidatos do PT a eleições traçado por Lula.
As corporações, que governam por intermédio de conferências, ONGs e greves, por sinal, tomaram mais de uma das áreas fundamentais para o sucesso do projeto deste governo. Na saúde tentou-se estabelecer base de alguns programas novos, voltados para a classe média, segundo orientação expressa da presidente, mas foi incipiente. Exemplo de fim de linha nesse setor acontece na porta do governo federal. Brasília, governada pelo PT, que tem na saúde o problema mais grave entre tantos, continua mergulhada na incompetência e falta de perspectiva de soluções. A última do governador Agnelo Queiroz foi criar o ciclo-socorro, as "bikelâncias" que, como o nome indica, são isso mesmo, ambulâncias em bicicleta. Não se tem notícia de reações de perplexidade, terror ou providências no Ministério da Saúde.
O governo parece amarrado, impedido. Com esse fraco e pouco criativo desempenho, Dilma está no topo das pesquisas de popularidade, apoio e aceitação do eleitorado, repetem como um mantra seus acólitos. O ex-presidente Lula já disse, nos idos do pós-mensalão, que um governo começa mesmo no terceiro ano, portanto, esse início não conta. O pior dos mundos será a marquetagem convencer Dilma da desnecessidade de reações firmes neste segundo ano.
Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Valor Econômico (11/01/12)
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Do Movimento de estudantes e do direito de reivindicar (Roberto Beling)
Querer comparar o Movimento Estudantil dos "anos de chumbo" com o Movimento Estudantil dos dias de hoje é começar falsificando uma historia que ainda está sendo escrita.
O post acima, que "tuitei" hoje, apenas quer lembrar que não se deve misturar alhos com bugalhos, nem ...... Querer confundir gestos e palavras, atos e fatos, conceitos e valores de contextos diferentes não passa de puro estelionato intelectual e político. Manipulação grosseira da história e tentativa de instrumentalização de contextos passados para legitimar o contexto presente.
Querer usar categorias únicas para realidades distintas é coisa de quem conhece a luta política dos anos 60 e 70 apenas pela literatura, e, pior, literatura de qualidade questionável ou, talvez, pelas novelas de "época" do SBT. Não se pode confundir, sob pena de falsidade ideológica, o contexto de uma ditadura com supressão do Estado de Direito e domínio fundado na violência como forma de governo, com o regime democrático, por contraposição, fundado no Estado de Direito e no livre exercício das liberdades políticas.
Para a geração que hoje faz o movimento estudantil, a ditadura é coisa do passado, conhecida pelos livros e relatos. É coisa que terminou há 20 anos atrás, portanto, quando quase todos não eram nem nascidos. É experiência vivida para a maioria pelos seus avós, ou seja, quem já é sessentão e já carrega a carteira de idoso no carro para usar estacionamento preferencial (coisa, álias,que já providenciei).
Para contextualizar: referência a dois autores. Contexto: governo Médici. Caracterização: anos de chumbo.
Segundo Bóris Fausto, um dos maiores historiadores brasileiros, o governo Médici foi "um dos períodos mais repressivos, se não o mais repressivo da história brasileira". Segundo Élio Gaspari, autor de uma das maiores obras de cunho jornalísitico sobre o período, no seu antológico "A Ditadura Escancarada", abordando a questão das organizações que optaram pela luta armada, "no final de junho de 1970, estavam desestruturadas todas as organizações que algum dia chegaram a ter mais de cem militantes. Restava apenas um líder de destaque, o Capitão Lamarca, que se embrenhara no interior da Bahia e cedo ou tarde seria capturado. Questão de tempo".
Dá de comparar a cenas e cenários dos contextos do hoje?
Goste-se ou não, situação ou oposição, contra ou a favor, nada elide o fato de o governo Casagrande, - assim como qualquer um dos governos constituidos após 1982 -, é um governo legalmente estabelecido, legitimamente eleito pela população. Governo fundado no Estado de Direito, nas disposições constitucionais de uma sociedade democrática e não no arbítrio e na violação das liberdades fundamentais. Comparar atos e fatos do presente (governo Casagrande) a cenas e cenários do passado (regime militar) é produto de mente fantasiosa ou desinformada ou, o que é pior, mera leviandade intelectual.
As situações vividas no presente, - resultado do legítimo direito do movimento de estudantes contra o aumento das tarifas do transporte coletivo -, tem que ser trabalhadas no seu devido contexto, e o que temos nesse contexto é uma situação de impasse derivada do confronto entre dois Direitos.
Isso existe? Existe.
Temos de um lado, o Direito a livre manifestação de reivindicações políticas, sindicais, econômicas ou sociais; de outro, a responsabilidade e obrigação do Estado de assegurar os direitos difusos do conjunto da população, traduzidos no direito de ir e vir, no direito de chegar ao seu local de trabalho, de ter acesso a equipamentos de educação e saúde ou, simplesmente, chegar em casa depois de um dia exaustivo de trabalho.
Como se resolve esse aparente paradoxo do contrato democrático? Resposta óbvia e ululante: pela via dos procedimentos que configuram a ordem democrática. A democracia é um conjunto de procedimentos que regulam e institucionalizam os conflitos. E por que? Para que não sejamos presa do Estado Hobesiano, do todos contra todos, do homem como o lobo do próprio homem. E a institucionalização e regulação dos conflitos pressupõe a existência do confronto mas também diálogo e negociação. E o produto desse processo pode ser exatamente a negociação dos espaços públicos para o exercício desses direitos.
A democracia é a expressão da vontade da maioria na esfera da escolha dos governantes. No campo das relações sociais é o direito a existência e a expressão das minorias, sejam políticas, étnicas, de genero e opção sexual, religiosas e assim por diante. Nessas minorias, a expressão de determinadas categorias sociais que são parte e não o todo. O que não se pode conceber é transformar a expressão do direito de reivindicar de determinados grupos ou setores em rotinas e persistência de atos que representam o cerceamento dos direitos dos outros que constituem a maioria.
Qual a dificuldade do governo, partidos e movimentos sociais institucionalizarem espaços das manifestações democráticas?
E, finalmente, aquilo que é, tem que ser chamado por aquilo que é. Incendiar ônibus, colocando em risco a integridade física ou a vida de inocentes, é apenas uma coisa, e coisa pelo que tem que ser chamada: VANDALISMO.
Roberto Beling
O post acima, que "tuitei" hoje, apenas quer lembrar que não se deve misturar alhos com bugalhos, nem ...... Querer confundir gestos e palavras, atos e fatos, conceitos e valores de contextos diferentes não passa de puro estelionato intelectual e político. Manipulação grosseira da história e tentativa de instrumentalização de contextos passados para legitimar o contexto presente.
Querer usar categorias únicas para realidades distintas é coisa de quem conhece a luta política dos anos 60 e 70 apenas pela literatura, e, pior, literatura de qualidade questionável ou, talvez, pelas novelas de "época" do SBT. Não se pode confundir, sob pena de falsidade ideológica, o contexto de uma ditadura com supressão do Estado de Direito e domínio fundado na violência como forma de governo, com o regime democrático, por contraposição, fundado no Estado de Direito e no livre exercício das liberdades políticas.
Para a geração que hoje faz o movimento estudantil, a ditadura é coisa do passado, conhecida pelos livros e relatos. É coisa que terminou há 20 anos atrás, portanto, quando quase todos não eram nem nascidos. É experiência vivida para a maioria pelos seus avós, ou seja, quem já é sessentão e já carrega a carteira de idoso no carro para usar estacionamento preferencial (coisa, álias,que já providenciei).
Para contextualizar: referência a dois autores. Contexto: governo Médici. Caracterização: anos de chumbo.
Segundo Bóris Fausto, um dos maiores historiadores brasileiros, o governo Médici foi "um dos períodos mais repressivos, se não o mais repressivo da história brasileira". Segundo Élio Gaspari, autor de uma das maiores obras de cunho jornalísitico sobre o período, no seu antológico "A Ditadura Escancarada", abordando a questão das organizações que optaram pela luta armada, "no final de junho de 1970, estavam desestruturadas todas as organizações que algum dia chegaram a ter mais de cem militantes. Restava apenas um líder de destaque, o Capitão Lamarca, que se embrenhara no interior da Bahia e cedo ou tarde seria capturado. Questão de tempo".
Dá de comparar a cenas e cenários dos contextos do hoje?
Goste-se ou não, situação ou oposição, contra ou a favor, nada elide o fato de o governo Casagrande, - assim como qualquer um dos governos constituidos após 1982 -, é um governo legalmente estabelecido, legitimamente eleito pela população. Governo fundado no Estado de Direito, nas disposições constitucionais de uma sociedade democrática e não no arbítrio e na violação das liberdades fundamentais. Comparar atos e fatos do presente (governo Casagrande) a cenas e cenários do passado (regime militar) é produto de mente fantasiosa ou desinformada ou, o que é pior, mera leviandade intelectual.
As situações vividas no presente, - resultado do legítimo direito do movimento de estudantes contra o aumento das tarifas do transporte coletivo -, tem que ser trabalhadas no seu devido contexto, e o que temos nesse contexto é uma situação de impasse derivada do confronto entre dois Direitos.
Isso existe? Existe.
Temos de um lado, o Direito a livre manifestação de reivindicações políticas, sindicais, econômicas ou sociais; de outro, a responsabilidade e obrigação do Estado de assegurar os direitos difusos do conjunto da população, traduzidos no direito de ir e vir, no direito de chegar ao seu local de trabalho, de ter acesso a equipamentos de educação e saúde ou, simplesmente, chegar em casa depois de um dia exaustivo de trabalho.
Como se resolve esse aparente paradoxo do contrato democrático? Resposta óbvia e ululante: pela via dos procedimentos que configuram a ordem democrática. A democracia é um conjunto de procedimentos que regulam e institucionalizam os conflitos. E por que? Para que não sejamos presa do Estado Hobesiano, do todos contra todos, do homem como o lobo do próprio homem. E a institucionalização e regulação dos conflitos pressupõe a existência do confronto mas também diálogo e negociação. E o produto desse processo pode ser exatamente a negociação dos espaços públicos para o exercício desses direitos.
A democracia é a expressão da vontade da maioria na esfera da escolha dos governantes. No campo das relações sociais é o direito a existência e a expressão das minorias, sejam políticas, étnicas, de genero e opção sexual, religiosas e assim por diante. Nessas minorias, a expressão de determinadas categorias sociais que são parte e não o todo. O que não se pode conceber é transformar a expressão do direito de reivindicar de determinados grupos ou setores em rotinas e persistência de atos que representam o cerceamento dos direitos dos outros que constituem a maioria.
Qual a dificuldade do governo, partidos e movimentos sociais institucionalizarem espaços das manifestações democráticas?
E, finalmente, aquilo que é, tem que ser chamado por aquilo que é. Incendiar ônibus, colocando em risco a integridade física ou a vida de inocentes, é apenas uma coisa, e coisa pelo que tem que ser chamada: VANDALISMO.
Roberto Beling
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Catástrofes vergonhosas e gastanças obscenas (Roberto DaMatta)
O início de cada ano-novo nos apresenta as mesmas imagens das catástrofes causados pelas secas e chuvas. Acidentes ocorrem em todos os lugares e são hoje agravados pela incômoda presença de uma não prevista "razão planetária" dentro do nosso mundinho individualista, construído debaixo do pressuposto de que somos motivados por uma racionalidade de interesses e desejos ilimitados. Alguém já disse que o individualismo só existe para ser perseguido pelo seu contrário. E o oposto de um individualismo consumista que beira a irresponsabilidade e o crime contra plantas, animais e clima é essa Terra que nos pariu, como diziam nossos esquecidos ancestrais, e que reage como uma totalidade na forma daquilo que chamamos de catástrofes porque a nossa cosmologia (fundada numa paradoxal fé científica) nos impede de concebê-la como uma pessoa.
Mas se todos os lugares estão sujeitos a acidentes nem todos respondem aos imprevistos de modo tão catastrófico como ocorre no Brasil. Para tanto, basta olhar o Japão ou qualquer país consciente de sua honra nacional. Pois se há acaso, deve haver prevenção, exceto no caso paradoxal desse nosso país abençoado por Deus, cuidado pelo lulo-petismo, e bonito por natureza. Somente aqui as chuvas nos mesmos lugares e períodos resultam no vergonhoso desamparo de suas vítimas. Esses dependentes de larápios que não têm o menor pudor em embolsar os recursos destinados a reparar o seu sofrimento. O que os acidentes revelam no Brasil é uma gastança obscena e clientelisticamente direcionada. Elas expõem a gulodice eleitoral cujo alvo é enriquecer e permanecer no poder. Seu traço típico é distribuir pelo parentesco e pelos elos partidários. E assim jamais conseguimos sair do reagir para o proagir. As catástrofes desmascaram uma obscena gastança.
* * *
Elas também exibem a nossa profunda alergia ao republicanismo, pois os atingidos são sempre os "pobres": os que vivem na passividade cívica e que, graças a autoridades irresponsáveis, vivem em locais arriscados. Eles são o espelho de nossa alergia a igualdade que - levada a sério - nos obrigaria a optar por planejamentos urbanos destinados a todos. É ofensivo descobrir que "conjuntos populares" são construídos sem infraestrutura! Insulta testemunhar a ladainha dos aflitos conformados com a "vontade de Deus", sem a revolta contra os que foram eleitos para administrar a sua cidade e o seu Estado. Esse conformismo de raiz, mostra quanto somos penetrados por valores hierárquicos que constroem o mundo como sendo feito por superiores e inferiores - aqueles mandando em tudo; estes, destinados ao sofrimento e à dor.
* * *
No Brasil, até a ideologia política moderna que, a partir da Revolução Francesa dividiu o mundo, como mostra o desconhecido estudo de J. A. Laponce entre "direita e esquerda", dentro de um projeto igualitário, foi desmantelada pelas hierarquias que desintegram ministérios inventados para integrar a nação. Tudo em nome do povo, mas, de fato, operando vertical e pessoalmente: em favor do partido X ou de Sicrano ou Beltrano. Mas, eis que surgem as catástrofes naturais para mostrar como as antigas verticalizações, que Laponce situa como típicas dos sistemas tradicionais (divididos entre os que lutam e governam, os que rezam e salvam e os que trabalham; entre irmão, parente, compadre, amigo e o resto), retornam e canibalizam as orientações de índole mais igualitária que estão nas leis e organogramas republicanos, mas que jamais foram inscritas no coração dos que mandam. Daí o absurdo quando se descobre que o ministério destinado a socorrer o País, apenas ajuda a região à qual pertence o seu ministro. E a vergonhosa revelação de que tudo o que foi construído - barragens, estradas, diques, etc... - se desmantelam nas primeiras chuvas porque foram malfeitas e sem dúvida (com as notáveis exceções de praxe) hiperfaturadas e construídas por empresários amigos de infância.
* * *
A despeito de toda enxurrada modernizadora que tem corrido debaixo da ponte brasileira, continuamos a viver o dilema de construir uma sociedade coerente com uma nação republicana (como está no papel) ou de deformar a igualdade numa perversa hierarquia, na qual - como naquele famoso livro de Orwell, certos cargos são mais iguais do que outros. E, mais que isso, certos papéis sociais se confundem com seus ocupantes de modo que qualquer planejamento a longo prazo é impossível. O critério de nomeação é a família e a confiança; jamais a competência. Essa é a chave mestra - em que pese as ideologias - da administração pública à brasileira. O chamado nepotismo é o maior inimigo das rotinas administrativas responsáveis pelos ideais de justiça social. E sem rotinas, não há como ter instituições. Pois as instituições são animadas e dirigidas por meros mortais que passam, mas elas, como o Brasil, não devem morrer.
fonte: O Estado de São Paulo
Mas se todos os lugares estão sujeitos a acidentes nem todos respondem aos imprevistos de modo tão catastrófico como ocorre no Brasil. Para tanto, basta olhar o Japão ou qualquer país consciente de sua honra nacional. Pois se há acaso, deve haver prevenção, exceto no caso paradoxal desse nosso país abençoado por Deus, cuidado pelo lulo-petismo, e bonito por natureza. Somente aqui as chuvas nos mesmos lugares e períodos resultam no vergonhoso desamparo de suas vítimas. Esses dependentes de larápios que não têm o menor pudor em embolsar os recursos destinados a reparar o seu sofrimento. O que os acidentes revelam no Brasil é uma gastança obscena e clientelisticamente direcionada. Elas expõem a gulodice eleitoral cujo alvo é enriquecer e permanecer no poder. Seu traço típico é distribuir pelo parentesco e pelos elos partidários. E assim jamais conseguimos sair do reagir para o proagir. As catástrofes desmascaram uma obscena gastança.
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Elas também exibem a nossa profunda alergia ao republicanismo, pois os atingidos são sempre os "pobres": os que vivem na passividade cívica e que, graças a autoridades irresponsáveis, vivem em locais arriscados. Eles são o espelho de nossa alergia a igualdade que - levada a sério - nos obrigaria a optar por planejamentos urbanos destinados a todos. É ofensivo descobrir que "conjuntos populares" são construídos sem infraestrutura! Insulta testemunhar a ladainha dos aflitos conformados com a "vontade de Deus", sem a revolta contra os que foram eleitos para administrar a sua cidade e o seu Estado. Esse conformismo de raiz, mostra quanto somos penetrados por valores hierárquicos que constroem o mundo como sendo feito por superiores e inferiores - aqueles mandando em tudo; estes, destinados ao sofrimento e à dor.
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No Brasil, até a ideologia política moderna que, a partir da Revolução Francesa dividiu o mundo, como mostra o desconhecido estudo de J. A. Laponce entre "direita e esquerda", dentro de um projeto igualitário, foi desmantelada pelas hierarquias que desintegram ministérios inventados para integrar a nação. Tudo em nome do povo, mas, de fato, operando vertical e pessoalmente: em favor do partido X ou de Sicrano ou Beltrano. Mas, eis que surgem as catástrofes naturais para mostrar como as antigas verticalizações, que Laponce situa como típicas dos sistemas tradicionais (divididos entre os que lutam e governam, os que rezam e salvam e os que trabalham; entre irmão, parente, compadre, amigo e o resto), retornam e canibalizam as orientações de índole mais igualitária que estão nas leis e organogramas republicanos, mas que jamais foram inscritas no coração dos que mandam. Daí o absurdo quando se descobre que o ministério destinado a socorrer o País, apenas ajuda a região à qual pertence o seu ministro. E a vergonhosa revelação de que tudo o que foi construído - barragens, estradas, diques, etc... - se desmantelam nas primeiras chuvas porque foram malfeitas e sem dúvida (com as notáveis exceções de praxe) hiperfaturadas e construídas por empresários amigos de infância.
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A despeito de toda enxurrada modernizadora que tem corrido debaixo da ponte brasileira, continuamos a viver o dilema de construir uma sociedade coerente com uma nação republicana (como está no papel) ou de deformar a igualdade numa perversa hierarquia, na qual - como naquele famoso livro de Orwell, certos cargos são mais iguais do que outros. E, mais que isso, certos papéis sociais se confundem com seus ocupantes de modo que qualquer planejamento a longo prazo é impossível. O critério de nomeação é a família e a confiança; jamais a competência. Essa é a chave mestra - em que pese as ideologias - da administração pública à brasileira. O chamado nepotismo é o maior inimigo das rotinas administrativas responsáveis pelos ideais de justiça social. E sem rotinas, não há como ter instituições. Pois as instituições são animadas e dirigidas por meros mortais que passam, mas elas, como o Brasil, não devem morrer.
fonte: O Estado de São Paulo
Entrevista: Luiz Werneck Vianna: "Dilma será constrangida à infidelidade"
Cristian Klein
RIO - Raros analistas, transcorrido apenas um ano de observação, afirmam de modo tão categórico que a presidente Dilma Rousseff conduz um governo essencialmente diferente ao de seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva. Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, de 73 anos, professor da PUC-Rio, Dilma realiza mudanças profundas que abrem novos caminhos na prometida marcha de continuidade à era Lula. Dilma separa-se do padrinho nos direitos humanos, na relação com os sindicatos - "a armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída" - e será cada vez mais impelida à infidelidade. Montará um governo com cara própria e o tocará sob a égide da racionalidade; e não para atender aos caprichos dos amigos e aliados. Dilma, afirma o pesquisador, já está introduzindo uma guinada no presidencialismo de coalizão brasileiro, com ministérios sem "porteira fechada". A tendência, prevê, é de uma coalizão mais programática.
A "estatolatria" de Lula, que significou uma volta ao varguismo e ao regime militar, dá espaço a uma presidente sintonizada com a agenda internacional de uma nova época em emergência, onde o Estado-nação perde força. Dilma é, e será, diferente de Lula, em primeiro lugar, por chegar ao poder em circunstâncias distintas - num mundo em mutação e em crise financeira - e, em segundo lugar, por estar dotada, com sua formação universitária em economia, da capacidade de calcular os riscos por ela mesma.
Ex-militante do Partidão, o PCB, quando foi aluno de curso de formação de quadros comunistas internacionais na então União Soviética, em 1974, Luiz Werneck Vianna mantém a posição em causas consideradas polêmicas. Defende as férias de 60 dias dos magistrados e critica o acerto de contas com o regime autoritário, nos moldes realizados pelos vizinhos sul-americanos: "Os direitos humanos dizem respeito aos vivos", afirma o sociólogo, que considera o empresário Eike Batista e a senadora Kátia Abreu (PSD-TO) símbolos do capitalismo brasileiro em expansão. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Werneck Vianna ao Valor:
Valor: Qual é a sua avaliação do primeiro ano de Dilma Rousseff?
Luiz Werneck Vianna: Mudou em relação ao governo anterior, em que pese a própria Dilma.
Valor: Como assim?
Werneck Vianna: Independentemente de querer ser fiel ao patrono, ela vai ser constrangida à infidelidade. Já está montando um governo com cara própria. Caíram seis ministros, por denúncias de corrupção, sendo que o sétimo, o Nelson Jobim [ex-ministro da Defesa], era absolutamente chave. Foi uma perda imensa. Os outros significavam bem essa política do presidencialismo de coalizão do Lula. E essa é uma inflexão importante. A Dilma está introduzindo uma mudança de fundo na arquitetura do presidencialismo de coalizão no Brasil: [o ministério] não vai ser de porteira fechada. Tende a ser uma coalizão programática, o que nunca ocorreu no Lula. Era "Vem cá meu bem, que para você tem" e com isso você pode atender seu partido, seus amigos. A primeira implicação é uma mudança no sentido de partidos que parecem mais estruturados do que nossa filosofia admite. Para que o presidencialismo de coalizão programático funcione é preciso que os partidos estejam mais estruturados do que estão.
Valor: Quais são as evidências?
Werneck Vianna: Ela está conversando mais com os secretários-executivos sobre a realização de programas de governo. Na reforma ministerial, isso vai aparecer de forma mais definida.
Valor: A reforma vai ser importante para dar a cara dela.
Werneck Vianna: Vai definir qual será a natureza do presidencialismo de coalizão. Porque não há sociedade que tolere, com esse sistema de freios e contrapesos, e porque não há recursos para esses gastos perdulários. Tende a enxugar, tende a racionalizar. Essa é uma tendência do governo Dilma: racionalização.
Valor: O desafio é encontrar uma fórmula que não desagrade tanto a classe política, como a contenção de emendas parlamentares.
Werneck Vianna: E nem [desagrade] embaixo. Dependendo de como ela manobre, podemos ter turbulências. Politicamente, ela não tem ninguém relevante do lado dela. Perdeu o [Antonio] Palocci [ex-ministro da Casa Civil] e o Nelson Jobim. São quadros que ela não tem como recuperar.
Valor: O senhor critica uma certa "estatolatria" que haveria no Brasil. Dilma mudou em relação a Lula?
Werneck Vianna: Com ela, tende a diminuir. Se eu estiver certo, nós vamos ver nos próximos meses um progressivo distanciamento dos sindicatos e dos movimentos sociais em relação ao governo. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] já começou.
Valor: Isso é bom?
Werneck Vianna: Dá mais autonomia para a sociedade.
Valor: Por que Dilma abriria mão do arranjo político que foi tão bem sucedido com Lula?
Werneck Vianna: Porque ela está vivendo um outro mundo, onde terá que fechar o cofre. E porque nós estamos vivendo uma mudança de época. O mundo mudou. Sabemos do que estamos nos afastando, mas ainda não pressentimos para onde vamos.
Valor: De que nos afastamos?
Werneck Vianna: Do que se poderia caracterizar, como no diagnóstico da [filósofa] Nancy Fraser, de um paradigma keynesiano-westfaliano. Estamos indo para um mundo onde temas centrais da vida moderna são tratados por organismos que exercem jurisdição internacional, por exemplo os que mexem com economia, meio ambiente e terrorismo. Exemplo forte é o da Justiça internacional, com o Tribunal Penal, acima dos Estados nacionais. É uma época de inovação, de criação.
Valor: O Brasil, com o recente fortalecimento do peso do Estado, não seria um contraponto à tendência?
Werneck Vianna: Esse deslizamento está acontecendo numa escala mundial. O Estado-nação perde força. E as ideologias, comportamentos e atitudes que vieram com ele vêm se esmaecendo. Mas no segundo mandato de Lula, houve uma mirada no retrovisor. Foi um momento de forte adesão ao paradigma keynesiano-westfaliano, no momento em que esse paradigma no mundo perde força.
Valor: Como isso se deu?
Werneck Vianna: Houve um retorno a um repertório dos anos 30, do Estado Novo, do regime militar, do "Brasil país grande potência". O tema [westfaliano] da grandeza nacional foi um retorno quanto à política do regime militar, especialmente a do governo Geisel. Esse eixo Getulio-JK-regime militar se projetou inteiro no segundo mandato de Lula. Isso envolvendo políticas e valores do nacional-desenvolvimentismo. [O economista] Celso Furtado [1920-2004] foi guindado a uma figura ícone do governo. Agora mesmo, um navio importante recebeu o nome dele. Na política externa, teve acompanhamento, especialmente, nas relações com o mundo árabe, América Latina... Para não falar da forte "estatalização" do movimento sindical.
Valor: A relação com os sindicatos mudou muito?
Werneck Vianna: A Dilma herda esse eixo, mas só que o mundo deslizou, vem deslizando. A armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída. Este sindicalismo não tem mais o velho lugar, quando sentava com o presidente da República e deliberava como ia ser o salário mínimo futuro - tanto de produtividade, tanto de inflação - e que virou lei agora. Isso foi feito com Lula e eles. Não tem mais Dilma e eles.
Valor: Ter os sindicatos por perto não seria uma medida mais racional para Dilma?
Werneck Vianna: Mas a conta também é alta. Passa pela Previdência, pelo salário mínimo, ajuste fiscal, custo Brasil, não dá mais. Essa crise está limpando a névoa, está obrigando a que o argumento econômico seja mais respeitado. Há exemplos de fora: Itália, Espanha. As medidas dela não terão como objeto os que estão em cima, as elites econômicas, mas quem está embaixo. Você continua a viver num condomínio entre governo e elites econômicas do país. Sempre disse isso.
Valor: O combate à pobreza e a ascensão de uma nova classe média não contradizem essa ideia?
Werneck Vianna: Está sendo importante. Mas são processos que requerem muita maturação.
Valor: Que outras diferenças marcam o estilo Dilma?
Werneck Vianna: Há uma diferença irremovível: ela tem formação universitária e numa área determinada, em economia. Alguma coisa de economia ela entende. O Lula, não. Delegava. A crise chega com a presidente no olho do furacão, sabendo ler, interpretar e calcular os riscos por ela mesma.
Valor: O país está em boas mãos?
Werneck Vianna: Não estou avaliando se é melhor ou pior. Só sei que quando os sindicatos chegam, com as suas pretensões, ela tem objeções a fazer, como fez na época da votação do salário mínimo. "Isso eu não posso dar". Ela sabe que não pode dar. E em outras coisas, como Previdência, saúde, ela é obrigada a se adaptar a uma agenda mais racional-legal do que Lula, por razões econômicas e por razões de fortalecimento de um sistema de freios e contrapesos que foi se tornando cada vez mais importante, além da mídia.
Valor: Nestes termos weberianos, Dilma busca legitimar seu poder no mundo da técnica enquanto a fonte de Lula era o carisma?
Werneck Vianna: Pode-se dizer. Mas, independentemente desse cálculo, há constrangimentos que fazem com que ela seja orientada para esta direção, e não outra. Não tem como não aderir a este movimento. A cognição política pode ser a mesma, o que muda é a circunstância, é a "fortuna", para ficar na imagem cediça do Maquiavel. E, aí, a "virtù" tem que mudar também. O tema dos direitos humanos ganhou uma projeção no governo Dilma, que não teve no governo Lula. O movimento sindical sofreu - a meu ver foi uma ferida funda - um abalo, com a saída desse ministro [Carlos Lupi, do PDT], que vinha do atraso sindical.
Valor: Qual é a consequência?
Werneck Vianna: O movimento sindical vai conhecer a divisão real entre as centrais, por exemplo, entre CUT, Força...
Valor: Mais competitividade?
Werneck Vianna: Sim, e também mais independência em relação ao governo. Com o Lupi, houve a ampliação da vida sindical em torno dos projetos governamentais. O sindicalismo foi se expandindo, com todos os sindicatos se arregimentando ao governo.
Valor: Fora o acesso aos recursos do imposto sindical.
Werneck Vianna: E Lupi dando carta sindical para todo mundo e tudo isso aparelhado com ONGs. Mas, independentemente disso, o Lupi não caiu por causa da Dilma.
Valor: Por que ele caiu?
Werneck Vianna: Porque as instituições democráticas se reforçaram no país.
Valor: A Comissão de Ética da Presidência da República ganhou um peso que não tinha.
Werneck Vianna: A Comissão de Ética era para ter um outro papel, mais dócil. E não teve.
Valor: A recomendação de saída do ministro deixou a presidente numa saia-justa.
Werneck Vianna: Para ela, destituir a Comissão seria um desastre, nem poderia fazer. A Comissão teve uma importância inesperada. E mais: deixou uma raiz, um sedimento, deixou, digamos, uma jurisprudência.
Valor: Foi o nascimento de uma nova instituição de controle?
Werneck Vianna: Isso ao lado da Controladoria Geral da União e desses mecanismos todos que foram criados pela Constituinte ou depois dela, para que a sociedade pudesse fiscalizar o Executivo. Era tudo nominal, no papel. A esquerda em 1988 - consideradas as forças que mais tarde fundaram o PSDB e o PT, que já existia - não tinha a menor ideia do papel que essa institucionalidade iria ter. A presença dessas instituições e do Judiciário na vida política brasileira não foi algo que surgisse daquela intelligentsia e daquela esquerda. Isso não estava na cabeça do Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente], não estava na do Lula, do Ulysses [Guimarães, ex-presidente da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte].
Valor: Estava em quem?
Werneck Vianna: Parece que foi uma associação entre juristas e [o ex-governador de São Paulo] Mário Covas, especialmente o José Afonso da Silva [constitucionalista, ex-secretário de Segurança Pública de 1995 a 1999 e principal assessor jurídico de Covas quando ele era senador, na Constituinte].
Valor: Como deve ser a sucessão no Ministério do Trabalho?
Werneck Vianna: É difícil. Porque também não dá para entregar para um petista, que vem com a agenda prontinha lá daquele fórum de 2004 [o Fórum Nacional do Trabalho], com uma carga doutrinária sobre o assunto e a defesa da pluralidade sindical. Não pode entregar a um [Ricardo] Berzoini [ex-ministro do Trabalho, do PT, entre 2004 e 2005].
Valor: O PT no Ministério do Trabalho é um complicador?
Werneck Vianna: Acho impossível [a nomeação de um petista]. Ele é obrigado a fazer reforma. O Berzoini tentou. Fez uma emenda constitucional.
Valor: O senhor costuma mencionar em suas análises o processo de expansão do capitalismo no país. Quem o lidera e para onde ele vai?
Werneck Vianna: Vai sem projeto, politicamente desarmado. Mas tem sua energia, é voraz. Esse Eike Batista [presidente do grupo EBX e oitavo homem mais rico do mundo] pode ser considerado uma figura emblemática. Tem essa ética, com uma vida de monge, não é um homem de consumo conspícuo. Vive para servir à riqueza, à acumulação, como se fosse um herói calvinista. Ele é bem representativo. E os homens do agronegócio também. A [senadora] Kátia Abreu [do PSD de Tocantins e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)] é outra. São os novos personagens do capitalismo brasileiro. Vigorosos, sem fraquezas, sem ostentação. Os Matarazzo [de São Paulo] tinham uma vida mais aristocrática.
Valor: Seu trabalhos sobre judicialização da política são referência. Como o senhor avalia as críticas às tentativas de se podar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?
Werneck Vianna: Isso vai na esteira do mesmo processo de intensificação do mecanismo de controle [das instituições brasileiras].
Valor: O CNJ é importante?
Werneck Vianna: Freios e contrapesos fazem parte de uma dinâmica que tem funcionado cada vez mais.
Valor: Prerrogativas dos magistrados, como férias de 60 dias, são justificáveis?
Werneck Vianna: É uma atividade terrível. Há determinadas profissões que também têm férias mais extensas, escafandristas, esse tipo de coisa. A sociedade é que tem que estabelecer isso.
Valor: A Comissão da Verdade não chega tardiamente?
Werneck Vianna: A minha posição não acompanha as posições majoritárias aí na intelligentsia. Acho que a gente deve recuperar a história, mas o passado passou. Página virada. Cada país fez, em circunstâncias diferentes. Você, à esta altura, rasgar a Lei da Anistia, seria jogar o país numa crise, não sei para quê.
Valor: E para conhecer as circunstâncias das mortes, sem punição, como aprovado?
Werneck Vianna: Isso deve existir, com estes limites.
Valor: Os militares recorrem sempre à acusação de revanchismo.
Werneck Vianna: Mas, vem cá, as grandes lideranças que nos trouxeram à democracia tiveram muito clara essa questão: anistia real, geral e irrestrita. As forças derrotadas, ou seja, a luta armada, querem reabrir esta questão? Não foram elas que nos trouxeram à democracia. Nos momentos capitais, ela não estava à frente, na luta eleitoral, na luta política, na Constituinte. Era um outro projeto.
Valor: Por isso ela é menos legítima para reivindicar investigações sobre o período?
Werneck Vianna: É politicamente anacrônica. O país foi para frente. Tem uma ex-prisioneira política na Presidência da República. Altos dignitários da administração têm a mesma origem que ela.
Valor: Os direitos humanos não deveriam estar além do conflito entre projetos à esquerda ou à direita?
Werneck Vianna: Os direitos humanos dizem respeito aos vivos. Aos mortos, o velho direito de serem enterrados como Antígona [protagonista da tragédia grega de Sófocles] quis enterrar o irmão em solo pátrio. É o que esta Comissão da Verdade está fazendo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO, 10/1/2012
RIO - Raros analistas, transcorrido apenas um ano de observação, afirmam de modo tão categórico que a presidente Dilma Rousseff conduz um governo essencialmente diferente ao de seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva. Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, de 73 anos, professor da PUC-Rio, Dilma realiza mudanças profundas que abrem novos caminhos na prometida marcha de continuidade à era Lula. Dilma separa-se do padrinho nos direitos humanos, na relação com os sindicatos - "a armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída" - e será cada vez mais impelida à infidelidade. Montará um governo com cara própria e o tocará sob a égide da racionalidade; e não para atender aos caprichos dos amigos e aliados. Dilma, afirma o pesquisador, já está introduzindo uma guinada no presidencialismo de coalizão brasileiro, com ministérios sem "porteira fechada". A tendência, prevê, é de uma coalizão mais programática.
A "estatolatria" de Lula, que significou uma volta ao varguismo e ao regime militar, dá espaço a uma presidente sintonizada com a agenda internacional de uma nova época em emergência, onde o Estado-nação perde força. Dilma é, e será, diferente de Lula, em primeiro lugar, por chegar ao poder em circunstâncias distintas - num mundo em mutação e em crise financeira - e, em segundo lugar, por estar dotada, com sua formação universitária em economia, da capacidade de calcular os riscos por ela mesma.
Ex-militante do Partidão, o PCB, quando foi aluno de curso de formação de quadros comunistas internacionais na então União Soviética, em 1974, Luiz Werneck Vianna mantém a posição em causas consideradas polêmicas. Defende as férias de 60 dias dos magistrados e critica o acerto de contas com o regime autoritário, nos moldes realizados pelos vizinhos sul-americanos: "Os direitos humanos dizem respeito aos vivos", afirma o sociólogo, que considera o empresário Eike Batista e a senadora Kátia Abreu (PSD-TO) símbolos do capitalismo brasileiro em expansão. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Werneck Vianna ao Valor:
Valor: Qual é a sua avaliação do primeiro ano de Dilma Rousseff?
Luiz Werneck Vianna: Mudou em relação ao governo anterior, em que pese a própria Dilma.
Valor: Como assim?
Werneck Vianna: Independentemente de querer ser fiel ao patrono, ela vai ser constrangida à infidelidade. Já está montando um governo com cara própria. Caíram seis ministros, por denúncias de corrupção, sendo que o sétimo, o Nelson Jobim [ex-ministro da Defesa], era absolutamente chave. Foi uma perda imensa. Os outros significavam bem essa política do presidencialismo de coalizão do Lula. E essa é uma inflexão importante. A Dilma está introduzindo uma mudança de fundo na arquitetura do presidencialismo de coalizão no Brasil: [o ministério] não vai ser de porteira fechada. Tende a ser uma coalizão programática, o que nunca ocorreu no Lula. Era "Vem cá meu bem, que para você tem" e com isso você pode atender seu partido, seus amigos. A primeira implicação é uma mudança no sentido de partidos que parecem mais estruturados do que nossa filosofia admite. Para que o presidencialismo de coalizão programático funcione é preciso que os partidos estejam mais estruturados do que estão.
Valor: Quais são as evidências?
Werneck Vianna: Ela está conversando mais com os secretários-executivos sobre a realização de programas de governo. Na reforma ministerial, isso vai aparecer de forma mais definida.
Valor: A reforma vai ser importante para dar a cara dela.
Werneck Vianna: Vai definir qual será a natureza do presidencialismo de coalizão. Porque não há sociedade que tolere, com esse sistema de freios e contrapesos, e porque não há recursos para esses gastos perdulários. Tende a enxugar, tende a racionalizar. Essa é uma tendência do governo Dilma: racionalização.
Valor: O desafio é encontrar uma fórmula que não desagrade tanto a classe política, como a contenção de emendas parlamentares.
Werneck Vianna: E nem [desagrade] embaixo. Dependendo de como ela manobre, podemos ter turbulências. Politicamente, ela não tem ninguém relevante do lado dela. Perdeu o [Antonio] Palocci [ex-ministro da Casa Civil] e o Nelson Jobim. São quadros que ela não tem como recuperar.
Valor: O senhor critica uma certa "estatolatria" que haveria no Brasil. Dilma mudou em relação a Lula?
Werneck Vianna: Com ela, tende a diminuir. Se eu estiver certo, nós vamos ver nos próximos meses um progressivo distanciamento dos sindicatos e dos movimentos sociais em relação ao governo. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] já começou.
Valor: Isso é bom?
Werneck Vianna: Dá mais autonomia para a sociedade.
Valor: Por que Dilma abriria mão do arranjo político que foi tão bem sucedido com Lula?
Werneck Vianna: Porque ela está vivendo um outro mundo, onde terá que fechar o cofre. E porque nós estamos vivendo uma mudança de época. O mundo mudou. Sabemos do que estamos nos afastando, mas ainda não pressentimos para onde vamos.
Valor: De que nos afastamos?
Werneck Vianna: Do que se poderia caracterizar, como no diagnóstico da [filósofa] Nancy Fraser, de um paradigma keynesiano-westfaliano. Estamos indo para um mundo onde temas centrais da vida moderna são tratados por organismos que exercem jurisdição internacional, por exemplo os que mexem com economia, meio ambiente e terrorismo. Exemplo forte é o da Justiça internacional, com o Tribunal Penal, acima dos Estados nacionais. É uma época de inovação, de criação.
Valor: O Brasil, com o recente fortalecimento do peso do Estado, não seria um contraponto à tendência?
Werneck Vianna: Esse deslizamento está acontecendo numa escala mundial. O Estado-nação perde força. E as ideologias, comportamentos e atitudes que vieram com ele vêm se esmaecendo. Mas no segundo mandato de Lula, houve uma mirada no retrovisor. Foi um momento de forte adesão ao paradigma keynesiano-westfaliano, no momento em que esse paradigma no mundo perde força.
Valor: Como isso se deu?
Werneck Vianna: Houve um retorno a um repertório dos anos 30, do Estado Novo, do regime militar, do "Brasil país grande potência". O tema [westfaliano] da grandeza nacional foi um retorno quanto à política do regime militar, especialmente a do governo Geisel. Esse eixo Getulio-JK-regime militar se projetou inteiro no segundo mandato de Lula. Isso envolvendo políticas e valores do nacional-desenvolvimentismo. [O economista] Celso Furtado [1920-2004] foi guindado a uma figura ícone do governo. Agora mesmo, um navio importante recebeu o nome dele. Na política externa, teve acompanhamento, especialmente, nas relações com o mundo árabe, América Latina... Para não falar da forte "estatalização" do movimento sindical.
Valor: A relação com os sindicatos mudou muito?
Werneck Vianna: A Dilma herda esse eixo, mas só que o mundo deslizou, vem deslizando. A armação que Lula concebeu e fez funcionar está destruída. Este sindicalismo não tem mais o velho lugar, quando sentava com o presidente da República e deliberava como ia ser o salário mínimo futuro - tanto de produtividade, tanto de inflação - e que virou lei agora. Isso foi feito com Lula e eles. Não tem mais Dilma e eles.
Valor: Ter os sindicatos por perto não seria uma medida mais racional para Dilma?
Werneck Vianna: Mas a conta também é alta. Passa pela Previdência, pelo salário mínimo, ajuste fiscal, custo Brasil, não dá mais. Essa crise está limpando a névoa, está obrigando a que o argumento econômico seja mais respeitado. Há exemplos de fora: Itália, Espanha. As medidas dela não terão como objeto os que estão em cima, as elites econômicas, mas quem está embaixo. Você continua a viver num condomínio entre governo e elites econômicas do país. Sempre disse isso.
Valor: O combate à pobreza e a ascensão de uma nova classe média não contradizem essa ideia?
Werneck Vianna: Está sendo importante. Mas são processos que requerem muita maturação.
Valor: Que outras diferenças marcam o estilo Dilma?
Werneck Vianna: Há uma diferença irremovível: ela tem formação universitária e numa área determinada, em economia. Alguma coisa de economia ela entende. O Lula, não. Delegava. A crise chega com a presidente no olho do furacão, sabendo ler, interpretar e calcular os riscos por ela mesma.
Valor: O país está em boas mãos?
Werneck Vianna: Não estou avaliando se é melhor ou pior. Só sei que quando os sindicatos chegam, com as suas pretensões, ela tem objeções a fazer, como fez na época da votação do salário mínimo. "Isso eu não posso dar". Ela sabe que não pode dar. E em outras coisas, como Previdência, saúde, ela é obrigada a se adaptar a uma agenda mais racional-legal do que Lula, por razões econômicas e por razões de fortalecimento de um sistema de freios e contrapesos que foi se tornando cada vez mais importante, além da mídia.
Valor: Nestes termos weberianos, Dilma busca legitimar seu poder no mundo da técnica enquanto a fonte de Lula era o carisma?
Werneck Vianna: Pode-se dizer. Mas, independentemente desse cálculo, há constrangimentos que fazem com que ela seja orientada para esta direção, e não outra. Não tem como não aderir a este movimento. A cognição política pode ser a mesma, o que muda é a circunstância, é a "fortuna", para ficar na imagem cediça do Maquiavel. E, aí, a "virtù" tem que mudar também. O tema dos direitos humanos ganhou uma projeção no governo Dilma, que não teve no governo Lula. O movimento sindical sofreu - a meu ver foi uma ferida funda - um abalo, com a saída desse ministro [Carlos Lupi, do PDT], que vinha do atraso sindical.
Valor: Qual é a consequência?
Werneck Vianna: O movimento sindical vai conhecer a divisão real entre as centrais, por exemplo, entre CUT, Força...
Valor: Mais competitividade?
Werneck Vianna: Sim, e também mais independência em relação ao governo. Com o Lupi, houve a ampliação da vida sindical em torno dos projetos governamentais. O sindicalismo foi se expandindo, com todos os sindicatos se arregimentando ao governo.
Valor: Fora o acesso aos recursos do imposto sindical.
Werneck Vianna: E Lupi dando carta sindical para todo mundo e tudo isso aparelhado com ONGs. Mas, independentemente disso, o Lupi não caiu por causa da Dilma.
Valor: Por que ele caiu?
Werneck Vianna: Porque as instituições democráticas se reforçaram no país.
Valor: A Comissão de Ética da Presidência da República ganhou um peso que não tinha.
Werneck Vianna: A Comissão de Ética era para ter um outro papel, mais dócil. E não teve.
Valor: A recomendação de saída do ministro deixou a presidente numa saia-justa.
Werneck Vianna: Para ela, destituir a Comissão seria um desastre, nem poderia fazer. A Comissão teve uma importância inesperada. E mais: deixou uma raiz, um sedimento, deixou, digamos, uma jurisprudência.
Valor: Foi o nascimento de uma nova instituição de controle?
Werneck Vianna: Isso ao lado da Controladoria Geral da União e desses mecanismos todos que foram criados pela Constituinte ou depois dela, para que a sociedade pudesse fiscalizar o Executivo. Era tudo nominal, no papel. A esquerda em 1988 - consideradas as forças que mais tarde fundaram o PSDB e o PT, que já existia - não tinha a menor ideia do papel que essa institucionalidade iria ter. A presença dessas instituições e do Judiciário na vida política brasileira não foi algo que surgisse daquela intelligentsia e daquela esquerda. Isso não estava na cabeça do Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente], não estava na do Lula, do Ulysses [Guimarães, ex-presidente da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte].
Valor: Estava em quem?
Werneck Vianna: Parece que foi uma associação entre juristas e [o ex-governador de São Paulo] Mário Covas, especialmente o José Afonso da Silva [constitucionalista, ex-secretário de Segurança Pública de 1995 a 1999 e principal assessor jurídico de Covas quando ele era senador, na Constituinte].
Valor: Como deve ser a sucessão no Ministério do Trabalho?
Werneck Vianna: É difícil. Porque também não dá para entregar para um petista, que vem com a agenda prontinha lá daquele fórum de 2004 [o Fórum Nacional do Trabalho], com uma carga doutrinária sobre o assunto e a defesa da pluralidade sindical. Não pode entregar a um [Ricardo] Berzoini [ex-ministro do Trabalho, do PT, entre 2004 e 2005].
Valor: O PT no Ministério do Trabalho é um complicador?
Werneck Vianna: Acho impossível [a nomeação de um petista]. Ele é obrigado a fazer reforma. O Berzoini tentou. Fez uma emenda constitucional.
Valor: O senhor costuma mencionar em suas análises o processo de expansão do capitalismo no país. Quem o lidera e para onde ele vai?
Werneck Vianna: Vai sem projeto, politicamente desarmado. Mas tem sua energia, é voraz. Esse Eike Batista [presidente do grupo EBX e oitavo homem mais rico do mundo] pode ser considerado uma figura emblemática. Tem essa ética, com uma vida de monge, não é um homem de consumo conspícuo. Vive para servir à riqueza, à acumulação, como se fosse um herói calvinista. Ele é bem representativo. E os homens do agronegócio também. A [senadora] Kátia Abreu [do PSD de Tocantins e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)] é outra. São os novos personagens do capitalismo brasileiro. Vigorosos, sem fraquezas, sem ostentação. Os Matarazzo [de São Paulo] tinham uma vida mais aristocrática.
Valor: Seu trabalhos sobre judicialização da política são referência. Como o senhor avalia as críticas às tentativas de se podar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?
Werneck Vianna: Isso vai na esteira do mesmo processo de intensificação do mecanismo de controle [das instituições brasileiras].
Valor: O CNJ é importante?
Werneck Vianna: Freios e contrapesos fazem parte de uma dinâmica que tem funcionado cada vez mais.
Valor: Prerrogativas dos magistrados, como férias de 60 dias, são justificáveis?
Werneck Vianna: É uma atividade terrível. Há determinadas profissões que também têm férias mais extensas, escafandristas, esse tipo de coisa. A sociedade é que tem que estabelecer isso.
Valor: A Comissão da Verdade não chega tardiamente?
Werneck Vianna: A minha posição não acompanha as posições majoritárias aí na intelligentsia. Acho que a gente deve recuperar a história, mas o passado passou. Página virada. Cada país fez, em circunstâncias diferentes. Você, à esta altura, rasgar a Lei da Anistia, seria jogar o país numa crise, não sei para quê.
Valor: E para conhecer as circunstâncias das mortes, sem punição, como aprovado?
Werneck Vianna: Isso deve existir, com estes limites.
Valor: Os militares recorrem sempre à acusação de revanchismo.
Werneck Vianna: Mas, vem cá, as grandes lideranças que nos trouxeram à democracia tiveram muito clara essa questão: anistia real, geral e irrestrita. As forças derrotadas, ou seja, a luta armada, querem reabrir esta questão? Não foram elas que nos trouxeram à democracia. Nos momentos capitais, ela não estava à frente, na luta eleitoral, na luta política, na Constituinte. Era um outro projeto.
Valor: Por isso ela é menos legítima para reivindicar investigações sobre o período?
Werneck Vianna: É politicamente anacrônica. O país foi para frente. Tem uma ex-prisioneira política na Presidência da República. Altos dignitários da administração têm a mesma origem que ela.
Valor: Os direitos humanos não deveriam estar além do conflito entre projetos à esquerda ou à direita?
Werneck Vianna: Os direitos humanos dizem respeito aos vivos. Aos mortos, o velho direito de serem enterrados como Antígona [protagonista da tragédia grega de Sófocles] quis enterrar o irmão em solo pátrio. É o que esta Comissão da Verdade está fazendo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO, 10/1/2012
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