A deterioração do ambiente político, decorrente da sucessão de decisões erráticas, intempestivas, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, vem tendo como consequência visível a perda da confiança dos mercados na aprovação de reformas estruturais convincentes, como a previdenciária. Isso decorre da percepção de que o capitão reformado, além de vulgar, ignaro e incompetente, não tem a habilidade necessária para negociar essas reformas com o Congresso Nacional. Os efeitos menos visíveis são a articulação cada vez mais eficiente, porém discreta, das corporações do funcionalismo na defesa de seus interesses e o modo como elas estão tratando o princípio da responsabilidade fiscal.
Essa polêmica envolve o sistema de representação de interesses e de relações entre a sociedade e o Estado. Em que medida esse sistema tem propiciado o estabelecimento de prioridades e metas com base em negociações entre os agentes representativos da sociedade brasileira?
Evidentemente, a resposta é negativa. Mas o que está ocorrendo entre nós não é muito diferente do que aconteceu em outros países em outros períodos históricos, como Portugal, depois da Revolução dos Cravos, a Grécia e a Espanha, após a crise bancária de 2008. São experiências distintas, cujo denominador foi uma reconstrução não só da economia, mas também das instituições políticas. Neste último caso, a reconstrução foi possível graças à substituição de sistemas anacrônicos de representação de interesses por estruturas novas, baseadas em grupos de interesses abrangentes e capilarizados.
Análises dessa substituição feitas por economistas e sociólogos que se debruçaram sobre a disjunção entre racionalidade individual e racionalidade coletiva ajudam a ver aspectos interessantes no momento atual. Um deles diz respeito aos pequenos grupos de representação de interesses, que não levam em conta os efeitos fiscais de suas reivindicações. Por serem pequenos, entendem que suas demandas têm custo baixo para o poder público. O problema é que, à medida que crescem, mais daninhos são, pois maior é a capacidade de verem atendidas suas demandas particulares e maiores são os efeitos nefastos que acarretam para o conjunto da sociedade. Já os grupos com uma base política e social ampla seriam mais cuidadosos, tendendo a refletir sobre o impacto econômico de seus interesses particulares nas finanças públicas.
Entre nós, baixas taxas de crescimento e demandas sociais encaminhadas à União, pressionando as contas governamentais, multiplicaram as dificuldades que o sistema de relações entre o Estado e a sociedade enfrenta para gerir conflitos entre interesses privados e interesses coletivos. Essas dificuldades não se limitam à distribuição de cargos ministeriais entre partidos sem representatividade e programa. Envolvem, também, interesses de sindicatos patronais e trabalhistas, que fazem parte da estrutura burocrático-patrimonialista criada após a década de 1940.
O problema, contudo, não está no presidencialismo de coalizão, sistema em que o Executivo depende do apoio de vários partidos para governar. Formada a coalizão, cargos e recursos são partilhados de modo proporcional com os partidos aliados. Coalizão não é, necessariamente, sinônimo de corrupção. Institucionalmente, ela faz parte das regras do jogo político em regimes presidencialistas com sistema pluripartidário. O problema está no modo como ele tem sido jogado no âmbito de uma Federação concebida para acomodar demandas conflitantes por recursos, dada a desigualdade tributária entre os Estados, e num contexto de grupos de representação de interesses segmentados e fragmentação partidária, no qual siglas de aluguel naturalizaram a lógica do “toma lá dá cá”.
A multiplicidade de grupos de interesse e partidos compromete o equilíbrio das alianças e trava as instituições, pois as prende a demandas conjunturais, levando-as a perder a noção de estratégia e as impedindo de definir objetivos e metas de longo prazo. É por essa razão que o sistema de relações entre o Estado e sociedade não consegue forjar um consenso em torno de um padrão de desenvolvimento. A falta de alianças capazes de propiciar a aprovação de projetos acelera a contaminação da política pelo clientelismo.
Por isso, quando opôs uma nova política à velha política, associando coalizão com corrupção, o capitão reformado mostrou o tamanho de seu despreparo. Seja o que for que quisesse dizer com o adjetivo novo, uma nova política não é necessariamente melhor do que a velha. Se não tivesse aprendido a ler com sopa de letrinhas, saberia que partidos com representatividade surgem da necessidade de organizar o processo político, convertendo-o num mecanismo de gestão de conflitos, e não de amplificação do discurso de ódio. Também não se deixaria levar por uma retórica que desqualifica a política como intrinsecamente podre e teria consciência de que ela só é democrática quando se aceita a existência do adversário. Acusar indistintamente adversários como corruptos é um expediente para afastá-los do espaço público da palavra e da ação, o que amplia a radicalização. Se um lado quer destruir o outro, todos os lados são obrigados a se defender e a apelar para o princípio de que os fins – no caso, a sobrevivência – justificam os meios.
Medidas de ajuste fiscal e reformas estruturais sempre produzem resistências dos que gozam de privilégios corporativos e recebem dinheiro público sob a forma de subsídios e penduricalhos. Só pela negociação, e não pela desqualificação da política e pela mobilização das redes sociais para pressionar o Legislativo, é que o risco de paralisia decisória pode ser afastado e as resistências podem ser vencidas, para que prevaleça o interesse coletivo. Mas como essa negociação pode ser conduzida por um governante que despreza a política e até mesmo as regras democráticas?
O Estado de S.Paulo/19 de outubro de 2019
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