Acho que nós, brasileiros, temos algum parentesco com o Capra ibex, aquele cabrito montês que se equilibra notavelmente na beira de estreitos penhascos, a centenas de metros de altitude.
De hora em hora ele se detém para deglutir uma moitinha de capim, tudo na maior tranquilidade. Típico das montanhas da Europa, ele de vez em quando dá uma olhada lá para baixo e nem se toca. Na remota hipótese de cair lá embaixo, ele saberá cair com jeito, bastando-lhe sacudir-se um pouco para tirar a poeira.
Como povo, o que nos torna iguaizinhos ao veado montês é a nossa tranquilidade. Nós também não esquentamos a cabeça por pouca coisa. Veja-se a vida em Brasília. Os políticos ficam lá se divertindo com a política, às vezes praticando o saudável esporte do xingamento mútuo ou especulando sobre aquelas formas fósseis que designam como esquerda e direita. Não precisam se preocupar muito com a alimentação, uma vez que no Planalto o capim é farto. E, claro, não temem a vertigem de áreas altas, que lá não existem.
Vertigem sentiriam se o pensamento deles se voltasse intensamente para o futuro, perscrutando-o com atenção. Nas raras ocasiões em que lhes ocorre pensar no longo prazo, esfregam os olhos, botam grossos óculos e nada enxergam que deva preocupá-los. Nada que lhes desvie a atenção das candentes questões da vida brasiliense: quem gravou quem, quem vai acompanhar o presidente da República em sua próxima viagem ao exterior, que cargos podem tentar obter para parentes. Maravilha! Isso é que é país.
Não precisamos perscrutar o futuro e podemos até esquecer o passado, que por definição já passou. Ocasionalmente eles se lembram de que, muitas décadas atrás, a natureza brasiliense apenas abrigava umas inofensivas jiboias. Depois apareceram umas jararacas, e um dia – ah, dessa, todos se lembram, tenho certeza –, bem, um dia apareceu uma enorme sucuri. Um bicho tão grande que até montou um “departamento de operações estruturadas”, uma seção inteira para gerir as suas relações institucionais com o meio político e com as empresas estatais. Mas isso também passou, porque para escalar as instâncias recursais da Justiça basta um advogado bem remunerado.
A placidez brasiliense só começou de fato a mudar no dia em que um grupo teve a genial ideia de criar o Fundo Partidário. Com o fundo, Brasília se transformou num rio repleto de piranhas! Volto a este ponto mais adiante.
Para tentar ver o futuro no poente, vou voltar a um nascente assaz remoto. Meus caros leitores certamente se lembram do Ôtzi, o Homem do Gelo, um tipo famoso que habitava os Alpes italianos. Falecido há 5.300 anos, seu cadáver foi encontrado intacto, preservado pelas baixíssimas temperaturas. A primeira coisa que os cientistas que o encontraram quiseram saber foi o que ele teria comido em sua última refeição. Pesquisaram isso durante anos e, no fim, ficaram um pouco decepcionados. Ôtzi devia ser um homem simples, pois em seu estômago só havia carne e gordura de cabrito montês e um pequeno contorno verde – uma saladinha. Ora, voltar ao Neolítico para descobrir isso?!
Voltemos a Brasília.
Imagine o leitor se uma chuva de meteoros subitamente dizimasse todos os indivíduos atualmente investidos em posições de autoridade nos três Poderes. Com centenas de estômagos à sua disposição para examinar, os cientistas dariam saltos de alegria ao constatar a diversidade e o requinte das refeições servidas no dia anterior à grande catástrofe: camarão, lagosta, filé mignon, frutas vindas de toda parte e, ça va sans dire, vinho francês do bom e do melhor. Refiro-me aqui ao âmbito federal, mas achados igualmente vistosos poderão surgir no âmbito dos outros entes federativos. Sabemos que os sempre precavidos grupos corporativos aninhados no funcionalismo estadual insculpiram na legislação uma extensa coleção de privilégios, pois bobos não são.
Tal exuberância, sem dúvida, levaria os cientistas a fazerem o que os políticos planaltinos se habituaram a não fazer: refletir sobre o que aguarda nosso país num futuro não muito distante. Constatariam, ao fazê-lo, que as camadas de média e baixa renda teriam de se acomodar a uma dieta mais pobre. Prever se a dieta dessas camadas será menos ou mais farta que a do pobre Ötzi é muito difícil, mas de uma coisa podemos estar certos: o Homem do Gelo viveu numa sociedade igualitária, na qual todos os seres humanos eram igualmente miseráveis, igualmente desprovidos de educação e nenhum tinha a mais remota ideia do que hoje queremos dizer quando falamos em aumentar a produtividade do trabalho e retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis. De educação sabiam muito menos que nosso atual ministro.
O próprio patronato político brasiliense talvez seja forçado a moderar o seu apetite. Disso já começamos a discernir alguns sinais. Por enquanto, nossos 32 partidos estão muito felizes com o Fundo Partidário, mas esse número tende a crescer e nada garante que as piranhas do futuro se contentarão com menos.
O espaço disponível não me permitiu inquirir se os políticos planaltinos são todos iguais. Parece que não, pois, bem ou mal, conseguimos avançar nas reformas trabalhista e da Previdência. O grande problema é que, se não quisermos voltar à dieta de Ötzi, precisaremos pisar no acelerador. O momento atual é apenas uma largada, um passo inicial para superarmos o legado nefasto da dra. Dilma Rousseff.
Neste momento, com o sistema político em frangalhos, é imperativo evitar açodamentos. Mas a necessidade de aprofundar as reformas é um problema real. Efetivá-las é a condição sine qua non para esquecermos de vez o velho Ötzi, deixando-o em paz no seu repouso eterno.
O Estado de S.Paulo/27 de outubro de 2019
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