Um dos questionamentos mais recorrentes entre alunos e pesquisadores do sistema político brasileiro se refere aos limites da atuação das organizações de controle no Brasil. Essa preocupação é extremamente relevante em função da escolha da maioria dos legisladores, desde a constituinte de 1988, em delegar amplos poderes para as organizações de justiça, especialmente o Judiciário e o Ministério Público. O temor seria o de que essas organizações teriam ficado tão independentes ao ponto de estarem “fora de controle”.
A exposição quase que visceral de sucessivos escândalos de corrupção e a subsequente atuação das organizações de controle impondo perdas não triviais para os envolvidos nesses escândalos reforçaram ainda mais as justificativas para que essas organizações se fortalecessem e se tornassem cada vez mais independentes.
O ponto de virada para que isso acontecesse parece ter sido o julgamento do mensalão, quando o desempenho do STF punindo envolvidos no escândalo alinhou-se com a preferência da maioria da população. Cristalizou-se a percepção de que ninguém estaria acima da lei, com a imposição de perdas judiciais a políticos, burocratas e empresários ricos e poderosos.
Uma série de inovações institucionais pós mensalão (lei da ficha limpa, lei da transparência, lei anticorrupção, lei da delação premiada, lei da leniência, decisão do STF de implementar a pena após condenação em segunda instância judicial colegiada, etc.) criou condições para o sucesso subsequente da Operação Lava Jato, que, apesar das várias iniciativas para enfraquecê-la, vem conseguindo resistir. Na realidade, a surpresa para muitos reside justamente na grande resiliência organizacional e institucional até o momento.
Após as revelações das conversas entre os procuradores e o então juiz Sérgio Moro, muitos analistas têm preconizado que a Operação Lava Jato estaria melancolicamente com os dias contados. Essas análises não conseguem perceber que a intolerância à corrupção passou a fazer parte da crença dominante da sociedade. A ideia-força é de que o Brasil mudou e, portanto, comportamentos desviantes seriam punidos, independentemente de preferência ideológica, nível de poder, cor da pele, grau de instrução ou de renda.
No dilema entre controle e independência, a sociedade brasileira não teve dúvidas em escolher a segunda alternativa, mesmo correndo riscos da ocorrência de excessos por parte das organizações de controle. Esse equilíbrio, entretanto, não é estático, mas fundamentalmente dinâmico e de longo prazo. Ou seja, a “carta branca” que a sociedade tem conferido às organizações de controle para o combate à corrupção pode sofrer ajustes que venham a qualificá-las e não necessariamente a enfraquecê-las.
Após os avanços já conquistados, a sociedade agora demanda mais transparência e maior monitoramento das ações das organizações de controle no processo de investigação e sanções a corruptos. Procuradores e investigadores precisam perceber esses ajustes como upgrades e não como downgrades.
É muito pouco provável que o combate à corrupção no Brasil sofra retrocessos institucionais que levem o País de volta ao equilíbrio sub ótimo anterior em que brancos, ricos e poderosos raramente eram investigados e sofriam sanções judiciais. Os riscos de ser pego em comportamentos desviantes aumentaram substancialmente e os custos políticos, reputacionais e judiciais, também.
A intolerância à corrupção continua a ser parte da crença dominante da sociedade. O que a sociedade deseja é que esse processo seja qualificado, mas não arrefecido. Enquanto a Lava Jato 1.0 tinha como premissa a quase completa autonomia das organizações de controle, a sua versão 2.0 agrega limites e mais transparência.
O Estado de S.Paulo/7 de outubro de 2019
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