Durante os nove meses do governo Bolsonaro a opinião pública, a mídia e a sociedade civil entraram em contato com um estilo particular de governação, repleto de grosserias, idas e vindas no plano decisório, muito desencontro administrativo, pouca qualidade técnica nas proposições governamentais e um espírito beligerante nas relações internacionais. O discurso presidencial na ONU, terça-feira, foi um exemplo eloquente disso.
As patacoadas e barbaridades ditas por ele, dentro e fora do País, precisam ser postas no devido lugar. Não são o dado mais importante, nem servem para ocultar o que escorre por baixo do pano. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo deixa que eu chuto do presidente são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.
Por trás há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe também se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. Direitismo combinado com ultraliberalismo econômico.
O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade
O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e pela ascensão inesperada do PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como, por exemplo, nas votações da reforma previdenciária.
Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema tem resistido, chegando mesmo em alguns momentos a demonstrar certa capacidade de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera muitas marcas negativas, opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios, como se pode ver nas discussões sobre o fundo eleitoral. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.
Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não propriamente oposição. A polarização política tornou-se inoperante: a sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. Produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que tem dominado a política nacional, a polarização mantém-se graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. É uma inoperância que reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.
A falta de oposição expressa grave crise de pensamento e ação dos democratas. Em se reproduzindo, tem um único resultado possível: o prolongamento do bolsonarismo. A paralisia cobrará um preço mais adiante.
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Vai evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Os portões do paraíso não serão abertos por ele. Somando a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.
Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas, a ideia de uma “frente democrática” não sai do papel.
Em política, as palavras contam. Precisam ser decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros.
Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, servem para mobilizar. Sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem.
Palavras influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas.
É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica, sobretudo, por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.
O Estado de S.Paulo/28 de setembro de 2019
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