quarta-feira, 30 de outubro de 2019

'Bolsonaro é o primeiro a governar para só um terço' (Marcos Nobre/entrevista)

Entrevista
Para Marcos Nobre, presidente quer manter a base mais fiel do seu eleitorado
Bernardo Mello
Jair Bolsonaro é o primeiro presidente que governa pensando em apenas um terço do eleitorado , na avaliação do filósofo e cientista político Marcos Nobre . Presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ( Cebrap ), Nobre vê o protagonismo do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) como chave para entender a radicalização do governo no primeiro ano de mandato. O racha alimentado pelo clã Bolsonaro no PSL é, segundo Nobre, a etapa de um projeto político mais amplo para 2022.
• Por que Bolsonaro briga até com o próprio partido?
Bolsonaro, na verdade, antecipou a corrida presidencial em três anos. A verdadeira eleição para ele é a de 2022. Agora ele precisa estar em campanha o tempo todo para transformar em algo orgânico, com substância, a confluência de fatores que o elegeu no ano passado. Seu primeiro mandato, portanto, é de destruição e enfrentamento das instituições.
• O sistema aprendeu a lidar com o presidente?
Bolsonaro surfou uma onda de descrédito institucional partilhada pela base mais fiel do seu eleitorado, que corresponde a 33% da população, segundo as pesquisas. Essa é a base que ele quer manter até 2022. Ele se tornou o primeiro presidente que governa para só um terço do Brasil. O sistema político tenta entrar nos espaços que Bolsonaro deixa em aberto, e ele deixa porque são temas que não mobilizam tanto este terço. A Previdência é um ótimo exemplo disso. Se os espaços são ocupados e Bolsonaro ainda fatura com isso, melhor ainda para ele.
• Esta postura não traz problemas ao governo?
Bolsonaro tem um objetivo eleitoral que não inclui, agora, conquistar a maioria. Isto exime Bolsonaro de governar de fato. Todo mundo reclama que não há articulação política. Mas não é para ter, porque não é este o objetivo. Ele monitora a parte mais ativa de sua base e toma as decisões. Quando algo ataca seus interesses, como a questão da CPMF, ele recua.
• É possível que este se torne o novo normal da política brasileira?
Acho espantoso o sistema político estar disposto a correr um risco desse tamanho. Todo mundo acha que a estratégia do Bolsonaro é insustentável, que a economia não vai andar, e por aí vai. E quem garante que ele perde em 2022? Se o Bolsonaro consegue a reeleição, aí ele tem margem para um governo verdadeiramente conservador ou autoritário.
• Qual é o papel que Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro exercem no projeto liderado pelo pai?
A radicalização do governo passa pelo afastamento do Flávio, por estar sob investigação. Ele é o filho com perfil mais próximo da política tradicional. Sua inutilização deu projeção ao Eduardo e à ideia de criar um movimento conservador no Brasil, inspirado nos EUA. Isso é uma estratégia de hegemonia com verniz de normalidade, mas é algo que não é normalizável.
• Por quê?
Porque não existe comparação possível entre Trump e Bolsonaro. Trump nunca apoiou um regime ditatorial nos Estados Unidos, que simplesmente nunca existiu. Imagine um conservador americano insinuar o fechamento da Suprema Corte, como fazem aqui com o STF? Pode haver uma impressão de que Bolsonaro está sendo contido pelas instituições, mas o que ocorre é uma autocontenção, já que ele só governa para um terço. O próximo passo, para ele, é transformar este terço em um movimento. As eleições de 2020 são uma etapa necessária neste projeto, por isso a ideia é assumir o comando do partido.
• As contradições do governo, por exemplo, no caso das candidaturas laranjas do PSL, podem desgastá-lo com seu eleitorado mais fiel?
É de fato contraditório o discurso de Bolsonaro, mas ele não tem oposição real. A eleição dele, como político antissistema, trouxe a reboque um descrédito da própria ideia de oposição. Quem discorda dele é visto como “sistema”. Ou seja, não tem credibilidade de saída. Há um impasse surgido pelo desenho das eleições de 2018. Diante da crise econômica e institucional que se vivia, as opções oferecidas foram manter as coisas como estavam ou quebrar tudo. O eleitorado resolveu quebrar tudo.
• Os militares perderam espaço no governo?
Os militares tentam fazer o governo funcionar. Só que não são um partido. É muito difícil, portanto, dar uma unidade de políticas de saúde, econômicas, de educação, e por aí vai. Este é o primeiro governo que não se obriga a ser coerente. O ministro Paulo Guedes (Economia) pode se aliar ao (presidente da Câmara, Rodrigo) Maia e brigar com ele na semana seguinte, como já ocorreu. É um governo feudalizado, com disputas por espaço, o que faz com que não tenha uma cara, a não ser o fator antissistema. E isso dialoga justamente com o terço da população mais fiel ao Bolsonaro. Por isso o primeiro mandato é pautado pelo enfrentamento institucional.
• As milícias digitais pró-governo são influentes nesta disputa por narrativas?
Minha preocupação é que as pessoas pensem que a manutenção desses 33% do eleitorado se dá só com mentira, manipulação de pessoas. Claro que existem robôs, tem algo artificial. Mas existe também uma mudança radical de fazer política. Bolsonaro se aproximou de pessoas conectadas no mundo digital, mas que se sentiam excluídas da política há muito tempo. Bolsonaro, o Steve Bannon (marqueteiro que atuou na campanha do americano Donald Trump), eles sabem operar nisso. As pessoas sentem, quando entram nessa corrente, que produzem efeitos reais. Que estão sendo ouvidas pelo líder. É muito importante não subestimar a parte viva dessas redes.
O Globo/28 de outubro de 2019

Prosperidade e protestos (Marcus André Melo)

Alexis de Tocqueville (1805-1859), em análise da Revolução Francesa, argumentou contraintuitivamente que, "à medida que a situação econômica melhorava, os franceses achavam sua posição cada vez mais insuportável". E completava: "Os espíritos parecem mais inseguros e inquietos; o descontentamento público aumenta; o ódio contra todas as antigas instituições cresce".
Sua análise não se restringe às condições materiais da população. No capítulo sugestivamente intitulado "Como sublevaram o povo ao querer aliviá-lo", sustentou que o descontentamento aumentava quando se tinha mais liberdade, e não o contrário: "O mal que se aguentava com paciência como sendo inevitável parece insuportável logo que se concebe a ideia de livrar-se dele".
Tocqueville foca os incentivos e vieses cognitivos e põe a análise marxista de revoltas e revoluções de ponta-cabeça: "Não é sempre indo de mal a pior que se cai numa revolução... O regime que a revolução derruba é sempre melhor que aquele que o antecedeu imediatamente". E explica por que gradualismo deflagra abruptamente protestos: "Acontece, na maioria das vezes, que um povo que aguentou, sem se queixar e como se não as sentisse, as leis mais opressivas resolve repeli-las com violência logo que seu peso diminui".
Revoltas e protestos resultam do descompasso entre aspirações e capacidade para materializá-las ("privação relativa"), que aumenta se as expectativas são constantes, mas a capacidade diminui (um choque econômico); se as expectativas elevam-se, mas a capacidade permanece constante (modernização acelerada); ou quando ambos aumentam, mas a capacidade não acompanha as expectativas na mesma proporção (fim de um boom de commodities).
Estes dois últimos mecanismos são a chave dos protestos em curso no Chile (embora haja fatores contextuais que importam). Muitos se apressarão em contra-argumentar substituindo prosperidade por desigualdade, o leito de Procusto para explicar qualquer fenômeno. Mas ela é uma construção social; importa a desigualdade percebida, não o Gini (a correlação entre as duas é baixa).
Albert Hirschmann, há cerca de 40 anos, analisou o "efeito túnel" na intolerância quanto à concentração de renda durante o processo de industrialização. Em um engarrafamento, os motoristas observam que aqueles na faixa ao lado começam a mover-se, gerando expectativas positivas de que também comecem a fazê-lo. Assim as pessoas estariam dispostas a tolerar a desigualdade quando têm perspectivas de mobilidade social futura, mas ela torna-se intolerável em sua ausência.
A desigualdade só se politiza quando combinada com privação relativa.
Folha de S. Paulo/28 de outubro de 2019

Do cabrito montês aos políticos do Planalto (Bolívar Lamounier)

Acho que nós, brasileiros, temos algum parentesco com o Capra ibex, aquele cabrito montês que se equilibra notavelmente na beira de estreitos penhascos, a centenas de metros de altitude.
De hora em hora ele se detém para deglutir uma moitinha de capim, tudo na maior tranquilidade. Típico das montanhas da Europa, ele de vez em quando dá uma olhada lá para baixo e nem se toca. Na remota hipótese de cair lá embaixo, ele saberá cair com jeito, bastando-lhe sacudir-se um pouco para tirar a poeira.
Como povo, o que nos torna iguaizinhos ao veado montês é a nossa tranquilidade. Nós também não esquentamos a cabeça por pouca coisa. Veja-se a vida em Brasília. Os políticos ficam lá se divertindo com a política, às vezes praticando o saudável esporte do xingamento mútuo ou especulando sobre aquelas formas fósseis que designam como esquerda e direita. Não precisam se preocupar muito com a alimentação, uma vez que no Planalto o capim é farto. E, claro, não temem a vertigem de áreas altas, que lá não existem.
Vertigem sentiriam se o pensamento deles se voltasse intensamente para o futuro, perscrutando-o com atenção. Nas raras ocasiões em que lhes ocorre pensar no longo prazo, esfregam os olhos, botam grossos óculos e nada enxergam que deva preocupá-los. Nada que lhes desvie a atenção das candentes questões da vida brasiliense: quem gravou quem, quem vai acompanhar o presidente da República em sua próxima viagem ao exterior, que cargos podem tentar obter para parentes. Maravilha! Isso é que é país.
Não precisamos perscrutar o futuro e podemos até esquecer o passado, que por definição já passou. Ocasionalmente eles se lembram de que, muitas décadas atrás, a natureza brasiliense apenas abrigava umas inofensivas jiboias. Depois apareceram umas jararacas, e um dia – ah, dessa, todos se lembram, tenho certeza –, bem, um dia apareceu uma enorme sucuri. Um bicho tão grande que até montou um “departamento de operações estruturadas”, uma seção inteira para gerir as suas relações institucionais com o meio político e com as empresas estatais. Mas isso também passou, porque para escalar as instâncias recursais da Justiça basta um advogado bem remunerado.
A placidez brasiliense só começou de fato a mudar no dia em que um grupo teve a genial ideia de criar o Fundo Partidário. Com o fundo, Brasília se transformou num rio repleto de piranhas! Volto a este ponto mais adiante.
Para tentar ver o futuro no poente, vou voltar a um nascente assaz remoto. Meus caros leitores certamente se lembram do Ôtzi, o Homem do Gelo, um tipo famoso que habitava os Alpes italianos. Falecido há 5.300 anos, seu cadáver foi encontrado intacto, preservado pelas baixíssimas temperaturas. A primeira coisa que os cientistas que o encontraram quiseram saber foi o que ele teria comido em sua última refeição. Pesquisaram isso durante anos e, no fim, ficaram um pouco decepcionados. Ôtzi devia ser um homem simples, pois em seu estômago só havia carne e gordura de cabrito montês e um pequeno contorno verde – uma saladinha. Ora, voltar ao Neolítico para descobrir isso?!
Voltemos a Brasília.
Imagine o leitor se uma chuva de meteoros subitamente dizimasse todos os indivíduos atualmente investidos em posições de autoridade nos três Poderes. Com centenas de estômagos à sua disposição para examinar, os cientistas dariam saltos de alegria ao constatar a diversidade e o requinte das refeições servidas no dia anterior à grande catástrofe: camarão, lagosta, filé mignon, frutas vindas de toda parte e, ça va sans dire, vinho francês do bom e do melhor. Refiro-me aqui ao âmbito federal, mas achados igualmente vistosos poderão surgir no âmbito dos outros entes federativos. Sabemos que os sempre precavidos grupos corporativos aninhados no funcionalismo estadual insculpiram na legislação uma extensa coleção de privilégios, pois bobos não são.
Tal exuberância, sem dúvida, levaria os cientistas a fazerem o que os políticos planaltinos se habituaram a não fazer: refletir sobre o que aguarda nosso país num futuro não muito distante. Constatariam, ao fazê-lo, que as camadas de média e baixa renda teriam de se acomodar a uma dieta mais pobre. Prever se a dieta dessas camadas será menos ou mais farta que a do pobre Ötzi é muito difícil, mas de uma coisa podemos estar certos: o Homem do Gelo viveu numa sociedade igualitária, na qual todos os seres humanos eram igualmente miseráveis, igualmente desprovidos de educação e nenhum tinha a mais remota ideia do que hoje queremos dizer quando falamos em aumentar a produtividade do trabalho e retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis. De educação sabiam muito menos que nosso atual ministro.
O próprio patronato político brasiliense talvez seja forçado a moderar o seu apetite. Disso já começamos a discernir alguns sinais. Por enquanto, nossos 32 partidos estão muito felizes com o Fundo Partidário, mas esse número tende a crescer e nada garante que as piranhas do futuro se contentarão com menos.
O espaço disponível não me permitiu inquirir se os políticos planaltinos são todos iguais. Parece que não, pois, bem ou mal, conseguimos avançar nas reformas trabalhista e da Previdência. O grande problema é que, se não quisermos voltar à dieta de Ötzi, precisaremos pisar no acelerador. O momento atual é apenas uma largada, um passo inicial para superarmos o legado nefasto da dra. Dilma Rousseff.
Neste momento, com o sistema político em frangalhos, é imperativo evitar açodamentos. Mas a necessidade de aprofundar as reformas é um problema real. Efetivá-las é a condição sine qua non para esquecermos de vez o velho Ötzi, deixando-o em paz no seu repouso eterno.
O Estado de S.Paulo/27 de outubro de 2019

Da revolução à revolta (Demétrio Magnoli)

Vladimir Putin atribuiu a revolução ucraniana de 2014 a um complô americano. O governo chinês menciona a “mão negra” da Casa Branca quando fala das manifestações em Hong Kong. Segundo Filipe Martins, o sábio assessor internacional do Planalto, “os recentes movimentos de desestabilização de países sul-americanos” derivam de “uma estratégia definida pela ditadura cubana, por sua proxy venezuelana e pela rede de solidariedade que as sustenta”. Quando o temível Foro de São Paulo estala os dedos, milhares erguem barricadas em Quito e Santiago...
A razão conspiratória é o lar compartilhado por regimes ditatoriais e ideólogos primitivos. A agitação social não se restringe à América do Sul. No Líbano e no Iraque, protestos de massa coincidiram com as mobilizações chilenas. Bem antes do Equador, os “coletes amarelos” conflagraram as cidades francesas, motivados também por aumentos nos combustíveis. Há algo aí, além da coincidência temporal.
São histórias singulares, países diferentes, modelos distintos. Numa ponta, a França social-democrata, com desigualdades moderadas e taxas letárgicas de crescimento econômico. Na outra, o Chile liberal, com rápida expansão econômica e fortes contrastes sociais. Porém, em todos os casos, a centelha da revolta são cortes de subsídios de transportes, elevações de preços da gasolina, tributos sobre produtos ou serviços de consumo geral. No Líbano, a faísca foi uma taxa sobre ligações por WhatsApp.
A primeira década do século, um longo ciclo de expansão mundial, deixou um rastro de gastos públicos insustentáveis. Os ajustes em curso, que refletem a redução do crescimento global e se destinam a reequilibrar as contas públicas, são os alvos das manifestações. Não é pelos 20 centavos: o conflito organiza-se em torno de contratos sociais em mutação. Como repartir a conta da austeridade? A pergunta, cedo ou tarde, chegará ao Brasil, como uma mancha de óleo. Tomem nota, Bolsonaro e Guedes.
Os governos nascem das urnas, sob a lógica da dinâmica político-partidária. As revoltas nascem das ruas, na moldura da desintermediação política generalizada. Os partidos declinam, as redes sociais tomam o lugar que foi deles. Nas margens, minorias radicalizadas explodem coquetéis molotov, enfrentam a polícia, desafiam até mesmo soldados. O quebra-quebra carece de respaldo majoritário. Contudo, que ninguém se iluda: os manifestantes contam com extenso apoio popular.
Não são levantes “espontâneos”, algo inexistente no planeta da política. Nas ruas, destacam-se as bandeiras de sindicatos, entidades estudantis, grupos organizados. Mas a desintermediação tem um preço, expresso pela ausência de lideranças definidas e de agendas nítidas de reivindicações.
As redes sociais operam como máquinas de replicação. O recuo de Emmanuel Macron, que anulou o tributo sobre a gasolina, animou mobilizações em terras distantes. A retirada do equatoriano Lenin Moreno ajudou a acender o pavio em Santiago. No fim, sitiado, o chileno Sebastián Piñera desistiu do discurso da “guerra”, ofereceu desculpas ao povo e improvisou um pacote social. Sem um Pinochet (ou um Xi Jinping), o programa ultraliberal converte-se em utopia: uma ideia fora do tempo.
Derrubar o governo —a meta extrema emergiu em todos os lugares, logo depois da conquista inicial. Os “coletes amarelos” pedem nada menos que a renúncia de Macron. A mesma exigência surgiu no Equador e, nesses dias, ecoa no Chile. A revolução, venerável senhora, o maior dos mitos modernos, levantou-se da cadeira de balanço?
Revolução, só com intermediação política. Não basta clamar pela queda do governo: é preciso definir os contornos de um poder alternativo e o desenho de um novo contrato social. A era das redes sociais, esse outono dos partidos, assinala um retrocesso. A revolução política cede à revolta social.
Folha de S. Paulo/26 de outubro de 2019

Tempestade perfeita (Marco Aurélio Nogueira)

A crise que ameaça dizimar o PSL expôs as entranhas do governo de Jair Bolsonaro e de seus filhos, que ao abrirem fogo contra o partido no qual estavam abrigados evidenciaram os desencaixes e atritos que a embriaguez provocada pelo sucesso eleitoral teimava em ocultar.
Até as eleições de 2018 o PSL era um pequeno feudo controlado por Luciano Bivar. A vitória nas urnas foi bombástica e o partido tornou-se a segunda maior bancada da Câmara, repleta de deputados eleitos no embalo de Bolsonaro. Permaneceu como um agregado sem visão de mundo clara, sendo levado a trafegar pela direita para acompanhar as circunstâncias. Insinuou-se como base de um governo que carecia de sustentação parlamentar.
O crescimento não é processo indolor. Nos partidos políticos costuma vir acompanhado da ampliação das disputas internas por espaços de poder e influência, que invariavelmente se traduzem em lutas pelo controle da máquina partidária, a começar do diretório nacional e chegando aos cargos de liderança em âmbito estadual e no Legislativo. As alas mais fortes tendem a subordinar as demais.
Bastou que o clã Bolsonaro apresentasse suas pretensões imperiais, e o fizesse com a delicadeza e a sutileza que o caracterizam, para que o PSL começasse a soltar fumaça por todas as ventas. A sujeira veio para fora de uma só vez.
O atrito repercutiu no heterogêneo território da extrema direita, uma força que crescia desde o governo Dilma Rousseff e foi repentinamente projetada para o primeiro plano da política nacional. De emergente que era, o movimento ganhou musculatura e autoconfiança, ingredientes com os quais passou a se sentir “dono do País”.
Acontece que a extrema direita no Brasil nem de longe se aproxima de suas congêneres europeus e norte-americanos. Faltam-lhe, antes de tudo, uma doutrina, um pensamento, um grupo de intelectuais minimamente qualificados, órgãos de divulgação e formação de quadros. A própria base material em que opera lhe é adversa: não há imigrantes, estrangeiros “perigosos”, ameaças iminentes à “Pátria imaculada”, o supremacismo não casa com a sociedade brasileira, o racismo não provoca orgulho em ninguém. Sua casa são as redes sociais, onde ela deita e rola, os templos evangélicos e os bolsões fanatizados de lealdade ideológica. Seu negócio é a guerra cultural e a retórica agressiva.
A extrema direita brasileira concentrou-se em questões morais – família, religião, valores, tradições, comportamentos, sexualidade – e em apelos apopléticos contra a esquerda, a social-democracia, o demônio, a corrupção, a “velha política”, o ambientalismo, a globalização, temperando tudo com uma mistura esquisita de “autoridade estatal” e ultraliberalismo econômico. Encontrou nesses pontos sua força e seu limite. O mix de temas mostrou-se indigesto demais, dificultando a coesão do movimento, que evoluiu sem rumo à espera do que Bolsonaro faria enquanto “mito”.
A cada mau passo do governo, o movimento estremece. A conduta beligerante do clã Bolsonaro excitou a extrema direita tanto quanto a confundiu. O mal-estar cresceu à medida que a família presidencial apresentou suas pretensões de acúmulo de poder e autoproteção, abandonou a luta contra a corrupção e incorporou as mesmas práticas antes atribuídas à “velha política”, num quadro em que o governo pouco realiza em termos políticos, econômicos e administrativos.
Uma tempestade perfeita começou assim a se formar. O governo governa mal e pouco. Agora, já não dispõe de um partido leal. A falta de coesão da extrema direita é um complicador. O clã Bolsonaro não se mostra com liderança à altura para utilizar de forma adequada os recursos de poder de que dispõe. Quer tudo e mais um pouco. Obriga-se a entrar na “velha política”, mas não sabe nela se mexer: é um elefante na cristaleira. Permanece sem um pensamento, uma proposta. Tem os olhos grandes, mas só enxerga o próprio umbigo.
Flerta com o haraquiri ao comprar briga com o partido que o sustentava na Câmara e deveria ter sido tratado como reserva de valor, seja para o governo conseguir governar, seja para que o clã se saia bem nas eleições municipais de 2020 – base para que possa cogitar de sua reprodução em 2022. Bolsonaro cava uma trincheira para proteger seu crescente isolamento, fato que faz seu governo flertar com a crise institucional. Planta ventos e fogueiras. Poderá levar o País a um beco sem saída.
O PSL apostou em escalar a crise. Ameaçou seguir a ideia do deputado paulista Júnior Bozzella, que declarou que a “missão” do partido seria “salvar o Brasil dos filhos do presidente”. Os bolsonaristas, porém, suaram a camisa e avançaram. Por ora, há um grito parado no ar. Armistícios protocolares, no entanto, não serão suficientes para que se tenha paz duradoura. Inexistindo densidade política ou ideológica na disputa, a guerra se arrastará como uma boa briga de vizinhos para saber quem espalhou a pior fofoca.
Controlar o PSL faz parte de uma manobra maior. Sem ter ideias consistentes, sem conseguir competir com o Congresso na condução de uma agenda reformadora, o clã Bolsonaro precisa exibir suas posses. Dominar um partido despedaçado é sonhar com um simulacro de poder absoluto. Pode servir para intimidar adversários e coagir aliados, mas não será suficiente para dar um eixo à extrema direita ou melhorar o desempenho do governo. É um poder de fancaria. Tanto que a caravana continua a girar, conduzida pelo Congresso, que é de fato o poder que tenta governar o País.
Depois de uma tempestade perfeita, não há certeza de bonança. Sem adequada correção dos estragos, a crise espalhará seus venenos pelo sistema, que já anda bastante abalado. Tempestades desse tipo, porém, podem trazer alguma depuração, como janelas de oportunidade que permitam às pessoas enxergar o mundo com mais generosidade e cuidado.
É para onde devem estar a olhar os democratas.
O Estado de S.Paulo/26 de outubro de 2019

O cárcere do PT (Malu Delgado)

Ficar a reboque de Lula é vantagem ou desvantagem? Enquanto aguardava o resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal, que poderia tirar o ex-presidente da República da prisão, um integrante do PT refletia sobre os efeitos de outro cárcere: o do próprio partido em torno da figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo os petistas que admitem, em privado, incômodo com a paralisia do partido e a dependência cega dos comandos de Lula, há uma constatação realista de que o ex-presidente é, de fato, o melhor candidato à Presidência da República para o PT (isso no quesito competitividade) em qualquer cenário.
Os mais pragmáticos e realistas propõem, porém, outra reflexão: mesmo solto, Lula é inelegível e não é factível pensar em sua candidatura para 2022. Sendo assim, o ex-presidente retornaria às ruas e viajaria pelo país num cenário de continuidade da extrema polarização e sem condições de disputar, por restrições impostas pela Lei da Ficha Limpa. “Vamos ficar esperando o Lula até quando?” é uma pergunta não impensável de se ouvir em debates do PT, ainda que tal lucidez esteja longe de refletir o sentimento da maioria do partido, controlado pela corrente do ex-presidente.
E como imaginar que o homem que está detido há mais de um ano, se considera preso político e se julga vítima de um julgamento parcial e contaminado, agirá politicamente em favor de composições que extrapolem a cantilena da hegemonia petista? A lógica de Lula, encarcerado, é a de um ator político sectário, endossa um petista. Solto, não seria absurdo imaginar que Lula agiria como a jararaca viva e justiceira. Em 2016, quando foi levado em condução coercitiva pela Lava-Jato para prestar depoimento, o ex-presidente avisou: “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo. A jararaca está viva”. Vivíssima.
Malabarismos jurisdicionais brasileiros abririam brechas para se pensar na criação de condições para Lula concorrer em 2022, e ainda há um HC (habeas corpus) no caminho que pode livrar o petista da condenação se o Supremo considerar que houve parcialidade da turma do ex-juiz Sergio Moro.
Um bom exercício para o PT seria projetar uma disputa com Lula hoje. Se essa sondagem é feita com um petista racional, admite-se que possivelmente o partido, isolado, perderia para a direita ou a extrema-direita, porque não aconteceu nenhuma magia em dez meses que tenha apagado a forte rejeição da maioria do eleitorado ao petismo. Ou alguém acredita na conversão repentina do PSDB ao centro se o nome em questão, contra Jair Bolsonaro, for o de Lula? Seguindo o mesmo raciocínio, seria crível imaginar a abnegação de Lula em nome de uma aliança ampla em que ele não seja o líder?
Lula, livre, não é a redenção do PT, e basta olhar para o que pode ser a disputa pela Prefeitura de São Paulo para entender parte do imbróglio político em que se meteu a esquerda brasileira. Com Fernando Haddad fora da disputa municipal, por decisão dele próprio, o PT não tem nenhum nome competitivo na capital. Como Lula, além de vivo, tem sagacidade política ímpar, o ex-presidente já semeou um armistício com Marta Suplicy, que pode ser um nome do PDT. Lula, segundo os entendidos em lulês, não chamou Marta de volta ao PT. “Ele jogou a tarrafa, provocou ebulição nos bastidores e pavimentou o caminho para uma aliança lá na frente se a Marta estiver no segundo turno e o PT não”, traduziu um petista.
O mindset do PT ainda não permite que o partido considere ficar fora da disputa em São Paulo em prol de uma aliança competitiva capaz de abalar a direita. Desde 1988 o PT está no jogo na maior capital do país, vitorioso ou no segundo turno. Só que das oito disputas, o partido só venceu três: Luíza Erundina (1988), Marta Suplicy (2000) e Fernando Haddad (2012). Em 2016 a tradição se quebrou, com a eleição de João Doria (PSDB) logo primeiro turno, numa derrota esmagadora sobre Haddad.
O PT vai começar a definir as alianças eleitorais para 2020 agora. Antes, precisa montar sua Executiva Nacional, um processo delicado e em curso. Havia a ideia de colocar o senador Jaques Wagner (BA) na direção do partido exatamente para facilitar as pontes com outros grupos de centro-esquerda. Ponderado, o baiano assumiria, nos bastidores, o diálogo que institucionalmente caberia à presidente da sigla, reeleita, a deputada Gleisi Hoffmann. Mas até essa saída negociada para ampliar o campo da esquerda está sub judice, na visão de alguns. O senador não é de nenhuma corrente do PT e cada espaço na direção nacional é “milimetricamente disputado”, define um experiente petista. A palavra final será de Lula. Eis o PT, em sua prisão perpétua.
Valor Econômico/24 de outubro de 2019

‘Grupos não estão renovando os partidos’ (Jairo Nicolau/entrevista)

Cientista político diz que movimentos trazem novas ideias para a política, mas não para as legendas, que se tornaram ‘paraestatais’
Adriana Ferraz |O Estado de S.Paulo
Estudioso do sistema eleitoral brasileiro, o cientista político Jairo Nicolau, pesquisador do FGV CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), atribui a ascensão dos chamados grupos de renovação da política à crise enfrentada pelos partidos tradicionais que, segundo ele, estão se transformando em “instituições paraestatais”, tamanha a “dinheirama” que recebem dos cofres públicos.
Autor de livros como Representantes de Quem? Os (Des)caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados, Nicolau lamenta, nesta entrevista ao Estado, que esses movimentos estejam renovando a política, mas não os partidos, imprescindíveis em qualquer democracia.
Confira os principais trechos da entrevista:
• Os grupos de renovação estão ocupando o espaço dos partidos?
Os partidos sempre foram os formadores dos políticos. A carreira clássica de um político se faz pelos canais partidários. Eu não estaria errado em dizer que esses movimentos desconfiam desse processo, que tem formado quadros incompetentes, despreparados. E nós precisamos preparar as pessoas com cursos, bolsas, processos de formação e impulsionar a carreira dessas pessoas. Mas a única forma no Brasil, e em quase todas as democracias, de ser um ator legítimo numa corrida eleitoral é estar filiado a um partido.
• O ideal para esses grupos seria então a candidatura avulsa?
Há muita fantasia em relação a isso. As candidaturas avulsas são totalmente marginais no processo global. Mas aqui acho que o sonho deles era ter as candidaturas avulsas, que resolveriam um problema. Querem cumprir seus mandatos, sendo bons gestores, mas preferencialmente fora dos partidos. Mas os partidos estão aí e não tem jeito. Muitos partidos deram um falso mandato avulso. Emprestou-se a legenda para eles concorrerem, dizendo que dariam autonomia.
• Qual a consequência de se emprestar uma legenda?
Quando esses movimentos não optam por criar uma legenda ou fortalecer um partido que já existe geram um território cinzento em que não está bem definido o que é o espaço de cada um. Se o partido foi só uma barriga de aluguel, emprestou a legenda e deu autonomia. Acho que há um risco, uma visão na praça difundida em certos segmentos de fazer de seu mandato uma espécie de ONG. Eu recruto por concurso, eu consulto os eleitores online, eles decidem onde eu vou botar o dinheiro, daí presto contas a eles.
• Como o senhor classifica esse mandato?
Para mim, isso é um novo tipo de clientelismo. Você tem uma clientela que contorna a relação partidária. É o mesmo que faz um pastor, por exemplo, ou um sindicalista. A ideia de que eu devo o mandato a um segmento dos eleitores e presto conta a eles é uma coisa característica do sistema representativo brasileiro. Mas o ideal é que essas figuras entrem nos partidos e tentem renovar os partidos. Essas figuras estão renovando a política, certamente, mas não estão renovando os partidos. Esse me parece o grande paradoxo.
• Qual o prejuízo a longo prazo?
Estamos num processo em que, no final das contas, os partidos brasileiros estão virando instituições paraestatais, donos de uma dinheirama. Quase R$ 1 bilhão para funcionamento anual (Fundo Partidário), mais quase R$ 2 bilhões para campanhas (Fundo Eleitoral). Os partidos são controlados pelo Estado, são parquinhos, digamos assim. Por outro lado, a renovação dos partidos não acontece.
• Mas aqui, quando há renovação, boa parte dos eleitos é de família de políticos.
Acho natural que uma parte da renovação aconteça por pessoas que têm a profissão dos pais. A questão central para mim é que os jovens estão abandonando as legendas. Estão entrando na política, mas não para a vida partidária. Isso não tem como dar certo. O ideal é que essas pessoas seguissem o exemplo do grupo Momentum, do Reino Unido, que adotaram uma legenda, o Partido Trabalhista. O Livres tentou fazer isso. Pena que, quando largaram o PSL, não optaram por outra legenda.
• Os movimentos deveriam ter as mesmas regras dos partidos?
Não, são organizações. Nesse sentido, não se diferem tanto de igrejas evangélicas ou sindicatos que querem suas lideranças na política. Fantasias de renovação fora dos partidos não prosperam. Mesmo na Espanha, onde os movimentos ganharam força, eles foram para a vida partidária. Lamento que esses grupos tenham uma visão tão negativa da vida partidária.
• A relação do presidente Jair Bolsonaro com o PSL é mais um exemplo da crise dos partidos?
Isso é singular. Grandes líderes populistas têm um grande partido atrás. Aqui, temos um líder sem vontade de organizar uma legenda. Ele não é um homem de partido, nunca foi. O que mais me chama atenção é um presidente da República não conseguir dominar um partido político. Jair Bolsonaro, com a força política dele, está praticamente sendo mandado embora do partido. Seria muito mais simples se ele tivesse feito um esforçozinho para controlar a legenda.
• Isso é reflexo de quê?
Ele nunca foi comprometido com a legenda. Ele é uma pessoa que pouco deve conhecer da vida partidária. Um ano depois da vitória nas urnas, não fez nenhum movimento para fortalecer o PSL nem para dominá-lo com o grupo dele. Deixou na mão de um aliado, em (que) provavelmente ele confiava. Uma situação ambígua. Seria mais fácil o (Luciano) Bivar ser expulso.
• Mas o partido é dele.
O partido era do Bivar quando ele era o único deputado. Agora, quando você tem uma maré, como foi a vitória do Bolsonaro, ele só não dominou o partido porque não quis. Agora está falando em sair porque essa sempre foi a estratégia dele. De todas as legendas com que Bolsonaro não quis se relacionar ele saiu. É sintomático que o presidente queira sair de um partido e não tenha potência para colocar para fora um político, um burocrata, digamos assim. Isso mostra uma fragilidade total do presidente nesse aspecto. /COLABORARAM MATHEUS LARA e PAULO BERALDO
21 de outubro de 2019

Democracia e populismo (Marcus André Melo)

A democracia representativa não é um mecanismo para revelar a voz do povo, da nação ou dos descamisados; a essência da nacionalidade ou da tribo; ou qualquer outro ideal transcendental caro aos populistas. Mas um arranjo institucional para "mandar os pilantras passearem" (a fórmula consagrada em inglês é "throw the rascals out"). As eleições são apenas autorizações para o exercício do poder; não têm conteúdo substantivo ex ante.
Democracia encarna o ideal majoritário que é o princípio ordenador das sociedades contemporâneas: é a maioria, e não um indivíduo ou grupo, que deve prevalecer. E aí começa a confusão da teoria clássica da democracia, em que esta é entendida como vontade geral, uma atualização da fórmula vox populi, vox Dei.
A confusão deriva da transformação, pela via das eleições, das preferências de uma maioria em vontade geral. Mas nas atuais democracias, essa maioria é apenas a maior minoria: a taxa média de comparecimento às urnas é de cerca de 2/3 do eleitorado, e os vencedores obtêm tipicamente menos de 40% dos votos.
Esse é o menor dos problemas da teoria: o principal é a impossibilidade lógica de racionalidade social na agregação de preferência em eleições e/ou votações —problema identificado por Condorcet, lá atrás, e Kenneth Arrow (pelo qual recebeu o Nobel de Economia). Sabemos assim que os resultados de votações são em larga medida arbitrários.
Com isso, ocorreu uma revolução na forma como a teoria política passou a tratar a democracia representativa. Mas as tentativas essencialistas de identificar algo que o mecanismo eleitoral supostamente revela persistem nas suas variantes iliberais à esquerda e direita.
A democracia representativa é uma forma de veto popular contra o abuso. Na famosa definição de William Riker, "o tipo de democracia que assim sobrevive [à devastadora crítica à inconsistência da teoria clássica] não é, no entanto, um tipo de governo popular, mas uma forma —às vezes intermitente, errática e perversa— de veto popular" (Cf. "Liberalism against Populism: a Confrontation Between the Theory of Democracy and the Theory of Social Choice" [Liberalismo contra Populismo: Confronto entre Teoria da Democracia e a Teoria da Escolha Social], 1982).
Por isso, a democracia liberal confunde-se com alternância no poder e certo experimentalismo institucional, e não com implementação de ideais abstratos; com o pluralismo e competição e não o atingimento de algum fim perfeccionista ("descamisados no poder"; "governo de justos"). A saúde da democracia mede-se por sua capacidade de garantir a elusiva tarefa de punição/premiação de governantes. Apenas isso. Mas não é pouco.
Folha de S. Paulo/21 de outubro de 2019

Negociação política e interesse coletivo (José Eduardo Faria)

A deterioração do ambiente político, decorrente da sucessão de decisões erráticas, intempestivas, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, vem tendo como consequência visível a perda da confiança dos mercados na aprovação de reformas estruturais convincentes, como a previdenciária. Isso decorre da percepção de que o capitão reformado, além de vulgar, ignaro e incompetente, não tem a habilidade necessária para negociar essas reformas com o Congresso Nacional. Os efeitos menos visíveis são a articulação cada vez mais eficiente, porém discreta, das corporações do funcionalismo na defesa de seus interesses e o modo como elas estão tratando o princípio da responsabilidade fiscal.
Essa polêmica envolve o sistema de representação de interesses e de relações entre a sociedade e o Estado. Em que medida esse sistema tem propiciado o estabelecimento de prioridades e metas com base em negociações entre os agentes representativos da sociedade brasileira?
Evidentemente, a resposta é negativa. Mas o que está ocorrendo entre nós não é muito diferente do que aconteceu em outros países em outros períodos históricos, como Portugal, depois da Revolução dos Cravos, a Grécia e a Espanha, após a crise bancária de 2008. São experiências distintas, cujo denominador foi uma reconstrução não só da economia, mas também das instituições políticas. Neste último caso, a reconstrução foi possível graças à substituição de sistemas anacrônicos de representação de interesses por estruturas novas, baseadas em grupos de interesses abrangentes e capilarizados.
Análises dessa substituição feitas por economistas e sociólogos que se debruçaram sobre a disjunção entre racionalidade individual e racionalidade coletiva ajudam a ver aspectos interessantes no momento atual. Um deles diz respeito aos pequenos grupos de representação de interesses, que não levam em conta os efeitos fiscais de suas reivindicações. Por serem pequenos, entendem que suas demandas têm custo baixo para o poder público. O problema é que, à medida que crescem, mais daninhos são, pois maior é a capacidade de verem atendidas suas demandas particulares e maiores são os efeitos nefastos que acarretam para o conjunto da sociedade. Já os grupos com uma base política e social ampla seriam mais cuidadosos, tendendo a refletir sobre o impacto econômico de seus interesses particulares nas finanças públicas.
Entre nós, baixas taxas de crescimento e demandas sociais encaminhadas à União, pressionando as contas governamentais, multiplicaram as dificuldades que o sistema de relações entre o Estado e a sociedade enfrenta para gerir conflitos entre interesses privados e interesses coletivos. Essas dificuldades não se limitam à distribuição de cargos ministeriais entre partidos sem representatividade e programa. Envolvem, também, interesses de sindicatos patronais e trabalhistas, que fazem parte da estrutura burocrático-patrimonialista criada após a década de 1940.
O problema, contudo, não está no presidencialismo de coalizão, sistema em que o Executivo depende do apoio de vários partidos para governar. Formada a coalizão, cargos e recursos são partilhados de modo proporcional com os partidos aliados. Coalizão não é, necessariamente, sinônimo de corrupção. Institucionalmente, ela faz parte das regras do jogo político em regimes presidencialistas com sistema pluripartidário. O problema está no modo como ele tem sido jogado no âmbito de uma Federação concebida para acomodar demandas conflitantes por recursos, dada a desigualdade tributária entre os Estados, e num contexto de grupos de representação de interesses segmentados e fragmentação partidária, no qual siglas de aluguel naturalizaram a lógica do “toma lá dá cá”.
A multiplicidade de grupos de interesse e partidos compromete o equilíbrio das alianças e trava as instituições, pois as prende a demandas conjunturais, levando-as a perder a noção de estratégia e as impedindo de definir objetivos e metas de longo prazo. É por essa razão que o sistema de relações entre o Estado e sociedade não consegue forjar um consenso em torno de um padrão de desenvolvimento. A falta de alianças capazes de propiciar a aprovação de projetos acelera a contaminação da política pelo clientelismo.
Por isso, quando opôs uma nova política à velha política, associando coalizão com corrupção, o capitão reformado mostrou o tamanho de seu despreparo. Seja o que for que quisesse dizer com o adjetivo novo, uma nova política não é necessariamente melhor do que a velha. Se não tivesse aprendido a ler com sopa de letrinhas, saberia que partidos com representatividade surgem da necessidade de organizar o processo político, convertendo-o num mecanismo de gestão de conflitos, e não de amplificação do discurso de ódio. Também não se deixaria levar por uma retórica que desqualifica a política como intrinsecamente podre e teria consciência de que ela só é democrática quando se aceita a existência do adversário. Acusar indistintamente adversários como corruptos é um expediente para afastá-los do espaço público da palavra e da ação, o que amplia a radicalização. Se um lado quer destruir o outro, todos os lados são obrigados a se defender e a apelar para o princípio de que os fins – no caso, a sobrevivência – justificam os meios.
Medidas de ajuste fiscal e reformas estruturais sempre produzem resistências dos que gozam de privilégios corporativos e recebem dinheiro público sob a forma de subsídios e penduricalhos. Só pela negociação, e não pela desqualificação da política e pela mobilização das redes sociais para pressionar o Legislativo, é que o risco de paralisia decisória pode ser afastado e as resistências podem ser vencidas, para que prevaleça o interesse coletivo. Mas como essa negociação pode ser conduzida por um governante que despreza a política e até mesmo as regras democráticas?
O Estado de S.Paulo/19 de outubro de 2019

Nova fase do governo Bolsonaro (Fernando Abrucio)

A briga fratricida no PSL e a provável aprovação da reforma da Previdência marcam o fim da primeira fase do governo Bolsonaro. O que virá daqui para diante será uma tentativa de reorganização dos grupos políticos e uma desaceleração da maior parte da agenda de políticas públicas dependente do Congresso, ao menos até o fim das eleições municipais. O presidente vai procurar construir uma base política e social que permita, no mínimo, uma segunda parte de mandato sem sobressaltos e, no máximo, a reeleição. Os demais vão querer se fortalecer para reduzir ainda mais a força do Executivo federal e, quem sabe, assumir o poder em 2022.
A primeira fase do governo não foi uma lua de mel tranquila, tal qual tiveram outros governantes, como FHC e Lula. Houve muitos conflitos com a classe política, com líderes estrangeiros e com setores da sociedade civil. A governabilidade também foi complicada, com o Congresso ganhando um inédito protagonismo e derrotando por algumas vezes o Executivo, inclusive em questões estratégicas. Ademais, a popularidade presidencial caiu bastante - Bolsonaro tem o pior nível entre os presidentes de primeiro mandato desde a redemocratização. Mas, mesmo com todos esses furacões, foram aprovadas medidas difíceis e cerca de um terço da população ainda o apoia.
Só que os atores políticos se preparam agora para uma nova fase, embalada pelas possíveis mudanças de posições e de poder que podem advir das eleições municipais. O primeiro a entrar nessa nova etapa do jogo foi o próprio presidente da República. A disputa no PSL sinaliza que Bolsonaro quer montar uma estrutura mais confiável e totalmente dominada por ele para o pleito de 2020, bem como para a segunda parte do mandato. Cabe lembrar que, para chegar ao poder, o bolsonarismo esteve umbilicalmente ligado a políticos tradicionais, como o laranjal da campanha está revelando.
Agora, Bolsonaro quer fazer três mudanças: livrar-se do lado “sujo” do PSL, marcar mais claramente o viés conservador de seu grupo e ter uma máquina política capaz de enfraquecer seus principais adversários.
Seguindo essa linha de raciocínio, o primeiro passo envolve afastar-se de boa parte dos aliados pesselistas, tentando criar a imagem de um “bolsonarismo purificado” em outro partido ou na recuperação do domínio do PSL. Além disso, o presidente e seus principais aliados pretendem dar uma feição ideológica mais nítida ao seu grupo, intitulado por eles de posição conservadora. Para além das crenças, está aqui em jogo um projeto que busca conquistar eleitores no campo dos valores, algo que será ainda mais estratégico caso as políticas públicas federais tenham um resultado fraco.
E a última tentativa de “aggiornamento” do bolsonarismo está em construir uma máquina política, e não só de redes sociais, para dar suporte à luta contra seus adversários atuais e os prováveis. Neste sentido, as eleições municipais são muito importantes para Bolsonaro, que quer ter soldados fiéis no comando de várias cidades brasileiras. Sem essa guarida, o presidente terá dificuldades políticas em lugares estratégicos, como o Nordeste, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e mesmo o Sul do país, o que poderá, num primeiro momento, afetar o humor dos parlamentares e, num segundo momento, o dos eleitores em 2022.
O plano bolsonarista tem bastante lógica política, porém, não será tão fácil executá-lo. Em primeiro lugar, devido às contradições internas desse movimento. Que a liderança do PSL é clientelista e algo mais todo mundo sabe. Isso não quer dizer que os bolsonaristas “de raiz” sejam anjos da política. E com o acirramento do conflito entre os “amigos”, agora vão aparecer mais podres da família Bolsonaro e seus mais fiéis aliados. Os assessores do tipo Queiroz vão pulular pela imprensa nos próximos dias.
A luta partidária, ademais, vai passar pelo dinheiro do fundo partidário. O PSL já tem direito a centenas de milhões de reais. E quem comandará esses recursos, fundamentais para a disputa local por todo o país será o presidente do partido e seus asseclas. A saída dos bolsonaristas do partido não afetará esse aspecto. É preciso saber quem financiará o bolsonarismo no pleito municipal, quando, ao contrário de 2018, os holofotes estarão todos voltados para investigar de onde vem o dinheiro para financiar as redes sociais e outros gastos de campanha, inclusive o olhar de um TSE pressionado como nunca pelo STF.
O segundo obstáculo que se coloca à estratégia bolsonarista está na reorganização das outras forças políticas. Depois de perderem a eleição de 2018, serem chamados de velha politica e jogados na sarjeta pelos discursos do presidente, os principais partidos agora estão numa situação melhor. Antes de mais nada, porque o posicionamento contrário ao radicalismo bolsonarista congrega dois terços do eleitorado. Afora isso, os resultados das políticas federais ainda não engrenaram e isso pode aumentar a insatisfação popular - quem souber capitalizar isso ao seu favor terá grandes chances nas eleições municipais.
Olhando cada parte do espectro partidário, a esquerda provavelmente continuará forte no Nordeste e terá chances em algumas capitais importantes. Ela poderá ser ainda mais forte se for capaz de fazer alianças em colégios eleitorais estratégicos. Mas aqui entra a grande dúvida: se com um governo marcado por características tão contrárias às visões esquerdistas - quando não aos próprios valores democráticos - as esquerdas continuam batendo boca em entrevistas pela imprensa, será que eleições locais vão unificá-las?
Os partidos mais ao centro estão loucos para se descolar do bolsonarismo e aproveitar um momento em que a economia dificilmente estará a todo vapor. Cabe lembrar que o PT e outras agremiações mais centristas, como o PSDB, o DEM, o MDB e o PP terão bastante dinheiro público para fazer a campanha, afora terem já uma capilaridade grande pelas cidades do país. São mais profissionais em campanhas locais e podem se beneficiar do amadorismo e das brigas viscerais nas hostes mais conservadoras.
No fundo, estas legendas centristas e mesmo as de centro-esquerda já não sentem tanto o efeito 2013 - o grito contra o sistema partidário - e nem o bolsonarismo parece tão inovador hoje para grande parte do eleitorado. Mas isso não quer dizer que o caminho será róseo. Provavelmente o eleitorado não vai querer tanta novidade como em 2018, por conta das decepções em vários lugares, mas também não perdoará quem estiver fortemente ligado à corrupção e afins. Quem poderá se beneficiar desse cenário?
É muito cedo para dar uma resposta a esta pergunta. O que se pode dizer é que gradativamente os principais partidos do Congresso tentarão criar uma identidade própria frente ao bolsonarismo, procurando se posicionar para a eleição de 2020. A velocidade e a intensidade desse processo dependerão de três coisas. A primeira é a liderança do presidente da República nos próximos meses, especialmente o efeito de suas palavras e ações na opinião pública, no Congresso, no STF e nos atores internacionais. Quanto mais ele se isolar, mais rápido e intenso será a mudança em direção a posições contrárias ao governo, com efeitos negativos para as decisões governamentais e na implementação das políticas públicas.
O segundo aspecto diz respeito ao desempenho econômico. Se a economia não decolar, e isso passa pelos indicadores e também pelo pulso das ruas (a percepção das pessoas), os políticos vão se distanciar mais do presidente e usarão o pleito municipal como palanque contra o governo. Mas se a economia ganhar força no fim do primeiro semestre, Bolsonaro poderá no mínimo diminuir o ímpeto de seus críticos ou dividi-los. De todo modo, não se espera uma situação similar à do Plano Real ou do auge do lulismo em 2010. O quanto e de que maneira a economia poderá afetar o humor dos eleitores? Inflação baixa é bom, mas desemprego é mais potente na definição do voto.
As outras políticas públicas federais também serão objeto de debate.
No pleito municipal, temáticas como educação, saúde, transporte, moradia e segurança costumam ganhar um lugar cativo. Aparentemente há uma tentativa de substituir o frágil desempenho dessas políticas, algo que poderia ser justificado pela falta de dinheiro, por um discurso baseado em valores. Que porcentagem de eleitores trocará a falta de vaga em hospital ou de moradia por um país mais cristão e moralista?
O governo Bolsonaro II iniciou-se e há muitas perguntas de difícil resposta no presente momento. O que se sabe é que quanto mais dificuldades o presidente tiver nas eleições municipais, mais a segunda parte do mandato será complicada. Mais do que ganhar de lavada, o bolsonarismo precisará obter um tamanho eleitoral que permita uma boa defesa. E do outro lado, o crescimento dos contrários ao governo, que são de múltiplos tipos, só terá maior dimensão se conseguirem, após o pleito de 2020, fazer alianças, parcerias e projetos conjuntos de país.
Uma última observação: o maior risco do dia seguinte das eleições municipais é o bolsonarismo continuar seu discurso refratário às instituições. Daí que o equilíbrio de poderes, em sentido amplo, ainda é o melhor antídoto para atravessar as várias fases pelas quais o governo Bolsonaro deverá passar.
Valor Econômico/18 de outubro de 2019