quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Onde mora o perigo (Maria Herminia Tavares de Almeida)

A centro-direita se despedaçou. O PSDB perdeu a capacidade de reunir em torno de seu candidato a grande parcela do eleitorado dessa vertente. A cada dia fica mais provável que a disputa se dará entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro.
A migração dos eleitores rumo aos dois candidatos vem dando embalo à interpretação de que caminhamos para um enfrentamento entre forças políticas extremistas, nenhuma delas comprometida com instituições e valores democráticos. Há quem descreva a situação como um embate catastrófico entre duas formas de populismo.
Haddad e Bolsonaro, para além de suas abissais diferenças, seriam igualmente nefastos para a estabilidade e a permanência de democracia. Ela estaria ameaçada qualquer que fosse o resultado das urnas, pois seriam grandes as chances de que sucumbisse a uma variante de chavismo ou a um governo de extrema direita sob permanente tutela militar.
Essa versão do dilema político que nos aflige rende imagens fortes para o horário eleitoral e muita fúria no Facebook. Mas é difícil sustentá-la à luz da experiência dos últimos 30 anos de democracia plena.
Cabe debitar ao PT muitos dos malfeitos que levaram o país à crise presente: a cegueira diante das condições externas que nos permitiram passar quase ilesos pela crise mundial de 2008; o descompromisso com o controle da inflação e com a responsabilidade fiscal; o desenho canhestro e o descontrole na execução de programas sociais em si positivos –como o Fies, o Ciência sem Fronteiras, entre outros.
Por último, porém não menos importante, como atestam o mensalão e o petrolão, há os extremos a que o partido levou as práticas ilícitas de caixa dois, prevaricação, conluio com grandes empresas e corrupção --comuns, de resto, a quase todos as siglas brasileiras.
São verdades inconvenientes que as lideranças petistas insistem em negar. Nesta campanha, traz também muita inquietação a proposta de governo que parece ter sido feita por uma legenda que se preparava para perder e virar oposição e não para enfrentar as responsabilidades de gerir o país.
Isso posto, é impossível ignorar o imenso e bem-sucedido esforço de inclusão promovido pelos governos petistas, que transformou a paisagem social brasileira e trouxe ganhos que vieram para ficar, apesar da profunda crise econômica.
É míope quem atribui o extenso e duradouro apoio a Lula entre a maioria dos pobres à mera ilusão produzida por um prestigitador populista. Tem motivos bem racionais para gostar de Lula o eleitor do município onde a eletricidade só chegou na última década do século passado, com o Luz para Todos, e cujo filho foi o primeiro negro da família a entrar na universidade, graças ao Prouni e à política de cotas, assim como aquele que passou a trabalhar com carteira assinada ou tem a proteção mínima do Bolsa Família.
Da mesma forma, desde a sua fundação, o PT apostou tudo na disputa pelo poder pela via eleitoral –e só por ela. Adotou assim estratégia característica dos partidos reformistas de tipo social-democrata ao redor do mundo.
Derrotado em 1989, 1994 e 1998, aceitou os resultados sem contestá-los. Ao ascender ao Planalto, a agremiação consolidou uma liderança moderada de centro-esquerda e governou rigorosamente dentro das regras democráticas. Não procurou calar a imprensa que lhe fazia oposição, nem controlar o Judiciário que exerceu com liberdade sua vocação antimajoritária.
Não tratou de alterar as instituições em benefício próprio nem quando seus opositores apostaram que Lula tentaria, à semelhança de Chávez, Morales e congêneres, abolir os limites à reeleição. Apeado da Presidência, com dirigentes condenados e presos em consequência da Lava Jato, o partido buscou a via judicial para contestar as penas recebidas e investiu forte nas eleições, reafirmando-as, assim, como a única forma legítima de conquistar o governo.
Nesta hora, a democracia corre risco, mas o perigo vem da extrema-direita.
(*) Maria Herminia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Folha de São Paulo
26 de setembro de 2018

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