domingo, 21 de outubro de 2018

O mal-estar eleitoral (Roberto DaMatta)

É normal que o período eleitoral apaixone. Não é, porém, normal que se transforme numa batalha bíblica entre anjos e demônios
Sendo seres rigorosamente da casa e “de família”, todos temos, além de um nome a zelar, uma enorme ambivalência pela “política”, sobretudo quando ela não pode mais esconder o meio-termo e exige voto e escolha. Criados para aceitar, fingir e não reclamar do que temos e somos (pois há gente pior que nós...), temos um desconforto amigável com os confrontos eleitorais.
Com seu exagero ianque, o professor Moneygrand me assegura que o sistema político brasileiro foi desenhado para não escolher e que, para nós, brasileiros, o inferno é ser obrigado a tomar partido. Neste sentido, diz ele, somos sem querer o país no futuro, já que, na sua percepção, uma “ética da dúvida” será dominante neste planeta canibalizado pelo consumismo...
Não seria um paradoxo sermos apaixonados pela “política” — esse domínio no qual o público e não previsto se manifesta abertamente —quando somos criados para sermos obedientes e honestos em casa, mas treinados par esconder, mentir e ocultar na rua?
Quando foi que o falar (mal) dos outros deixou de ser o assunto mais importante do Brasil? Americanos falam de coisas; nós, de pessoas, aprendi numa América mais para Alexis de Tocqueville do que para Joseph McCarthy.
De fato, em casa tudo nos é atribuído: somos pais, filhos, irmãos, sobrinhos, netos, cunhados... Nela, nada é escolhido, e o comportamento segue a velha e inconsciente hierarquia inibidora do nosso lado público, cidadão e individualista que surge com os amigos que escolhemos no mundo público quando (altamente culpados) estamos livres dos controles da nossa poderosa rede de carne e de sangue.
Em casa somos “educados” e, sobretudo, obedientes — quase reacionários, diz meu amigo Levy... Mas na “rua” assustamos (e escandalizamos) quando nossos “responsáveis” descobrem como um latejar de liberdade combinado a um grama de igualdade nos torna “moleques de rua” e “revolucionários”, desafiando não apenas “tudo isso que aí está” (o que é fácil de dizer e até hoje impossível de fazer), mas igualmente os sofridos corações maternos...
Criados para não discordar, a polarização eleitoral causa mal-estar quando legitima diabolizar adversários políticos mesmo quando eles são da nossa família. A repressão do dissenso em casa revela uma negação absurda da realidade na rua. Ela legitima classificar genitores, professores e amigos como nazistas e como apoiadores do fim do mundo —caso “ele” ou o “outro” seja eleito.
É normal que o período eleitoral apaixone. Não é, porém, normal que se transforme numa batalha bíblica entre anjos e demônios.
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O que estou sugerindo aqui não é novidade para quem leu meus livros. Neles eu reitero que, para termos uma vida pública palatável, é fundamental dirimir a distância entre a casa e a rua. Só assim iremos entender as suas conjunções injuriosas, quando pedimos ao parente instalado no governo ou quando concebemos os presidenciáveis como as figuras paternas a quem queremos entregar o país quando, na verdade, o nosso papel mais básico como cidadãos não é o de continuar sendo “filhos” obedientes e seguidores, mas de governar o governo.
Algo complicado quando o domínio da casa é situado fora do mundo e quando se vive num planeta cada vez menor e mais dividido. Até onde tal divisão vai também permear a nossa intensidade afetuosa em casa e a nossa relativa indiferença na rua é — a meu ver — uma das questões centrais deste momento político.
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Se não é cabível esquecer a linguagem violenta; também não é possível descartar a chocante denúncia de uma política de corrupção em nome do povo. Eis um dilema complexo numa sociedade onde se aprende, repito, a estar de acordo com os erros do pai e os exageros da mãe; e, no mundo político, adotou-se o vergonhoso lema de que os fins justificam os meios. Mas posso lhes assegurar que, por baixo de todas as discórdias, jaz um Brasil cujas razões conhecemos sempre parcialmente.
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Repito que não estamos no fim do mundo. Estamos, sim, vivendo uma inesperada e imensa renovação. Dizem que é conservadora. Se Marx vivo estivesse e brasileiro fosse, diria que o certo seria chamá-la de revolucionária.

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