As eleições da semana passada definiram uma nova composição para o poder Legislativo, que nada tem a ver com a que vigorou nos últimos 24 anos da República, dominada pela tríade PSDB, PT e PMDB. Ocorre agora uma fragmentação inédita, uma ascensão do baixo clero e uma mudança de agenda e de rumos, com 30 partidos ocupando pelo menos uma vaga na Câmara e nove deles tendo entre 28 e 37 representantes. Dois deles têm mais de 50 deputados, o PT (56) e o PSL (52), partido de Jair Bolsonaro. O desafio para o novo presidente será compor uma maioria robusta que lhe garanta a sustentação no poder. Em entrevista para a ISTOÉ, o cientista político Sérgio Abranches, 69 anos, que acaba de lançar o livro “Presidencialismo de Coalizão — raízes e evolução do modelo político brasileiro” (Companhia das Letras), explica como isso poderá ser feito. Para Abranches, “presidencialismo de coalizão” é o tipo de regime em que há uma diluição do poder parlamentar em vários partidos. “O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso a lógica mudou porque não há mais um partido estruturador”, afirma.
• O que caracteriza o presidencialismo de coalizão?
É o modelo político brasileiro desde 1946. A primeira versão dele entrou em colapso em 1964, com o golpe militar. Foi retomado em 1988, com a promulgação da nova Constituição democrática. Caracteriza-se pelo fato de combinar uma série de traços, de elementos estruturais ou institucionais que o tornam muito diferente do modelo presidencialista norte-americano. A principal diferença é que lá o presidente pode governar em minoria. É frequente na história política dos Estados Unidos o que eles chamam de governo dividido — o Congresso com a maioria de um partido e o Executivo com um presidente de outro partido. Aqui no Brasil tem se mostrado impossível governar em minoria.
• Esse modelo ainda funciona?
Depende do ângulo que a gente olha. O fato de que o presidente não consegue governar sem maioria e de não conseguir fazer maioria com seu próprio partido (o partido do presidente nunca consegue mais de 20% das cadeiras), torna o modelo vulnerável e sujeito a crises. Toda vez que a coalizão se desfaz há uma crise política. Mas se a gente considerar o fato de que ele foi pensado para resistir a traumas que levassem a rupturas e à instabilidade democrática, certamente funcionou muito bem. Os constituintes conseguiram colocar no modelo uma série de elementos de defesa da democracia que fizeram com que fosse muito mais resiliente do que o modelo anterior.
• O eleitor sente-se representado pelos nossos políticos?
Em nenhum lugar do mundo a população está satisfeita com a maneira pela qual vem sendo representada pelo sistema político. O problema local é mais grave por algumas razões. A primeira delas é que a crise de representatividade se associa a uma forte crise econômica e social, a mais grave da nossa história republicana. A segunda é que a gente já vinha numa tendência de esgotamento do sistema partidário que dominou os últimos trinta anos da República. As lideranças não se renovaram e os partidos envelheceram, se tornaram mais oligárquicos e controlados por um pequeno grupo de personalidades, quando não por uma personalidade só, como o PT.
• De que forma isso explica a migração para a direita no espectro político?
Isso está muito embutido nessa tendência de realinhamento partidário. O que essa eleição produziu foi justamente isso, uma onda muito forte para a direita, liderada por um político que tem uma mentalidade claramente autoritária. O processo de realinhamento foi acelerado e atingiu gravemente os partidos que dominaram o jogo político a partir de 1994, principalmente o PT e o PSDB.
• O PSDB parece ser o maior derrotado nesse processo.
É o maior perdedor. Sua bancada em 2014 tinha 54 parlamentares e agora tem 29. Foi derrotado em estados importantes e perdeu o papel estruturador na disputa presidencial. Sofreu uma derrota fragorosa exatamente no eixo da disputa que dominou por duas décadas. E não vai retomar sua posição porque não tem condições de liderança. O partido se deteriorou de uma forma avassaladora.
• Qual o saldo das urnas para o PT?
O PT também foi fortemente derrotado. Ficou confinado no Nordeste, onde mantém alguma força, e viu a sua bancada desidratar. Embora seja a segunda maior bancada do Congresso, perdeu treze deputados — tinha 69 cadeiras e passou para 56. E perdeu também substância no Senado.
• O senhor acredita que o MDB terá força para se rearticular nessa nova composição?
O MDB nunca disputou a Presidência para valer. Disputou a presidência três vezes, com Ulysses, Quércia e agora com Meirelles, e foi um fracasso retumbante. Nunca teve essa vocação de galvanizar o País numa disputa presidencial. Dedicou-se a formar bancadas numerosas e ser o pivô de qualquer coalizão, em qualquer governo. Agora, caiu de 66 cadeiras para 34 e é um parceiro descartável em todos os cenários.
• Qual vai a ser a configuração do Congresso?
É uma configuração com bancadas médias, dez partidos terão bancadas com cerca de 30 parlamentares e duas com mais de 50 parlamentares, o PT e o PSL. Mudou muito a configuração. O PSL saiu do nada para formar a segunda maior bancada e com isso todo processo de montagem de coalizão mudou, a lógica mudou porque não tem mais um partido pivô, se perdeu o partido estruturador.
• A onda anti-petista é determinante nessa eleição?
É importante, mas o fator determinante é a guinada do eleitor para a direita e para a extrema direita. O discurso que pegou foi anti-PT e a favor de uma série de valores morais conservadores. Surgiu uma pauta muito autoritária.
• E de onde veio essa pauta moral conservadora?
O Brasil sempre teve uma parcela da sua elite com uma mentalidade autoritária e muito conservadora. Sempre foi assim. E com o avanço das igrejas evangélicas não tradicionais, essa visão ultramoralista, com interpretações unilaterais e estreitas da realidade, cresceu na população em geral, sobretudo entre os mais pobres. Por outro lado, o próprio regime de liberdade produziu a emergência de setores mais avançados, mais liberais e com padrões de comportamento muito diferentes da média da família tradicional brasileira. Esses setores progressistas exacerbam os sentimentos dos mais conservadores.
• A votação de Bolsonaro é uma vitória personalista sem qualquer sustentação partidária importante?
Acho que sim, a campanha dele é uma campanha praticamente familiar, dois ou três generais, ele, o presidente do partido e os filhos. Ele e dois filhos tiveram um sucesso eleitoral espantoso. A partir de uma base sem estrutura, conseguiram produzir lideranças no Legislativo e dar alguma vertebração a um movimento muito personalista.
• A classe média se alinhou com Bolsonaro?
Houve uma saída da classe média da base de Lula para a direita. Essa mesma classe média que apoiou o Lula e produziu vitórias espantosas ao longo das últimas eleições começou a se dividir na eleição da Dilma e agora migrou definitivamente para a direita. Ela foi frustrada pelo colapso econômico produzido pela Dilma.
• Caso se eleja. Bolsonaro vai governar com maioria?
Ele está dando sinais, sobretudo através do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), de que negocia por dentro da estrutura partidária com várias lideranças. Bolsonaro conhece bem o baixo clero e tem a vantagem de que parte da renovação foi por conta do PSL. Acho que vai tentar fazer uma coalizão, que vai ser pouco vertebrada, heterogênea e com a adesão de muitos oportunistas, como aconteceu com o Collor. No livro que acabei de publicar analisei os presidentes de Collor para cá e todos tiveram capacidade de aprovar sua agenda prioritária. Nos primeiros seis meses de governo nenhum deles sofreu qualquer contestação significativa do Congresso.
• Como deverá ser a relação de Bolsonaro com a mídia?
Já é uma relação estressada, como, de resto, foi também com o PT. O Bolsonaro tem mostrado uma característica que se vê também em Donald Trump de preferir falar com uma emissora em particular e de usar as redes sociais para se comunicar diretamente com o público. Até agora ele fez isso e a maneira que ele escolheu para agradecer os votos foi um “live” nas mídias sociais. Sem imprensa, sem nada. Ele tem uma relação antagônica com a mídia.
• O que representa a entrada de mais militares e policiais na esfera política?
Isso já ocorria nos Estados. A diferença agora é a presença de vários generais da reserva na campanha política e o aumento, nos últimos dois anos, dos pronunciamentos e das manifestações políticas dos militares, inclusive da ativa. É um fator político novo que devemos considerar com cuidado.
• Pode-se dizer que a democracia está ameaçada?
A democracia vai passar por um teste inédito, pelo qual não passou até agora. Essa terceira república começou sofrendo um trauma muito forte, que foi a decepção quase instantânea com o Collor, que perdeu o apoio do eleitorado, da sociedade, e sofreu um impeachment. Mas ela conseguiu se recompor a partir do governo Itamar Franco. Com a estabilização da economia e o sucesso macroeconômico foi criado um plano de estabilidade e de apoio às instituições democráticas que durou 30 anos. Agora nós estamos diante de uma sucessão de traumas e a democracia vai passar por um teste sem precedentes.
• As minorias estão ameaçadas?
Um governo com essas atitudes, com essa mentalidade autoritária, e com esse discurso tão extremado, como o do Bolsonaro, cria um risco social. O governo sofrerá as limitações institucionais típicas do nosso regime constitucional e provavelmente as obedecerá. O problema é o empoderamento das pessoas nas ruas: o policial que pode sacar a arma com facilidade, já que se sente autorizado, ou o rapaz homofóbico que se sente autorizado a atacar um homossexual. Há uma responsabilidade do Bolsonaro, se eleito, de segurar os seus radicais
Por Vicente Vilardaga/IstoÉ
13 de outubro de 2018
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