Aqui, em agosto de 2016, escrevi o seguinte: “A Nova República apaga-se na bruma do passado —mas nenhum sistema político alternativo surgiu para substituí-la. Temer (...) é um gerente de ruínas.” Nessa, acertei: o velório da Nova República deu-se no primeiro turno das eleições. Mas errei, e feio, sobre a forma de que se revestiria o ato fúnebre: seis semanas atrás, escrevi que, “no turno final, a rejeição a Bolsonaro elege qualquer adversário”. De fato, pelo contrário, a descida do caixão até seu túmulo será acompanhada pelos acordes da vitória de Bolsonaro. Diante de nós, sobra a missa de sétimo dia: um esforço para desvendar como chegamos ao ponto de eleger o candidato que cultua o sistema anterior à Nova República —isto é, a ditadura militar.
Sem qualquer ordem hierárquica, sugiro algumas causas para o desfecho:
1) A implosão do PSDB. O sistema político da Nova República estabilizou-se ao redor da disputa entre PSDB e PT. Desde o fim do ciclo do Plano Real, os tucanos perderam a capacidade de formular uma plataforma popular — e foram batidos em quatro eleições consecutivas. O colapso terminal deu-se com a desmoralização de Aécio Neves, na “operação Joesley Batista”. Bolsonaro tornou-se o desaguadouro do voto antilulista que, antes, se inclinava para os tucanos. O PSDB, tal como o conhecemos, está morto.
2) A deslegitimação geral da elite política. Sob Lula, o “presidencialismo de coalizão” degenerou no “presidencialismo de cooptação” (apud FHC). A devassa da Lava-Jato esclareceu os mecanismos de corrupção sistêmica que envenenam o sistema político. Na sequência, uma “fase 2” da Lava-Jato, conduzida como projeto de poder corporativo por Janot e pela ala jacobina do Ministério Público, destruiu o que restava de credibilidade na prática da política. Bolsonaro encarnou, no plano imaginário, a antipolítica.
3) A pedagogia petista do “nós” contra “eles”. O lulismo converteu as disputas eleitorais em guerras de extermínio. O adversário deixou de ser um parceiro na divergência democrática para se transformar no “inimigo do povo”, no “fascista”, no quintacoluna a serviço do imperialismo. No ápice desse teorema, em 2014, Marina Silva foi pintada como agente dos banqueiros numa conspiração destinada a esvaziar o prato de comida dos pobres. Pelas mãos de Bolsonaro, o ácido corrosivo voltou-se contra o PT. A tempestade de insultos bolsonaristas, acompanhada de torrentes de fake news, encontra um eleitorado habituado à linguagem exterminista. Depois da missa, o Brasil precisará reaprender a conversar.
4) A configuração da eleição como plebiscito sobre Lula. A narrativa petista do “golpe parlamentar” e da “perseguição judicial” confluiu para a estratégia da candidatura de Lula. A máscara do ex-presidente sobre o rosto de Haddad completou o percurso, impondo aos eleitores um veredicto sobre o lulismo. Mas o lulismo nunca foi majoritário, como atestam as quatro eleições consecutivas, entre 2002 e 2014, que exigiram segundo turno. Bolsonaro aceitou, agradecido, o desafio de comprovar a existência de uma maioria disposta a rejeitar um quinto mandato lulista. O PT foi expulso do Centro-Sul do país. A tardia, confusa, tentativa do PT de girar para o centro após o primeiro turno não funcionou. Junto com os funerais da Nova República, encerra-se o ciclo lulista.
5) Bolsonaro é inculto, como Lula — mas, como Lula, não lhe falta inteligência política. Nos EUA e na Europa, a direita nacionalista identificou nas senhas da imigração e do terrorismo os pulsos eficazes para ativar um eleitorado atemorizado diante do futuro. Bolsonaro traduziu os códigos para as circunstâncias da crise brasileira, apertando as teclas da violência urbana e da corrupção. Seu discurso eleitoral explode a gramática política da Nova República. Ninguém, no centro ou na esquerda, encontrou antídotos para as toxinas bolsonaristas.
Donald Trump ou Rodrigo Duterte, o populista que preside as Filipinas à frente de esquadrões da morte? Provavelmente, nem um nem outro. Mas isso só saberemos ao certo depois da missa.
O Globo
22 de outubro de 2018
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