"O sistema político brasileiro é um cadáver apodrecendo a céu aberto", diz Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de livros como Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos (Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti em 2015) e Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar). Em entrevista ao EL PAÍS por e-mail, Reis fala sobre a condenação e provável inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que ela representa historicamente e seus possíveis efeitos na democracia brasileira. Para ele, "Lula, salvo imprevistos, permanecerá vivo e influente na vida política brasileira". Sua condenação, ele diz, "é um marco na história política brasileira" e "está inserida num contexto, inédito, de prisão de lideranças políticas e empresariais". Por outro lado, argumenta, "a sentença poderá aprofundar o ceticismo e o pessimismo quanto às possibilidades da democracia brasileira".
Pergunta. Nos últimos 30 anos de democracia, nosso sistema político vem apresentando problemas de governabilidade e até de representatividade. Os escândalos de corrupção, o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e provável inelegibilidade de Lula, ao mesmo tempo que outros políticos estão impunes, podem gerar também uma falta de legitimidade?
Resposta. O sistema político brasileiro é um cadáver, apodrecendo a céu aberto. Nos governos tucanos e petistas, perdeu-se uma chance histórica de reformá-lo. Tanto o PSDB como o PT preferiram, para governar, aliar-se a forças fisiológicas e conservadoras, perdendo a perspectiva reformista que tinham, quando de suas fundações. A ira popular manifestada em 2013 foi simplesmente ignorada, logo que refluiu. Como também não foi capaz de formular programas precisos nem estruturar organizações autônomas, esta ira acabou se esvaindo sem produzir resultados concretos. Nestas condições um sistema em quem ninguém confia mais continua se arrastando, vísceras expostas, aumentando o ceticismo e o pessimismo quando à nossa democracia "realmente existente".
P. Como você acha que o setor da sociedade votar em Lula, cerca de 40% do eleitorado, pode reagir ao fato de que ele estará fora da disputa?
R. Ela terá duas opções: primeira: não ir votar ou votar nulo ou em branco. Uma outra opção, mais construtiva, seria votar num candidato que represente uma proposta reformista, especialmente do sistema político, sem o que tudo se estiola. Espero bem que esta segunda hipótese prevaleça.
P. Se antes os militares pareciam ser o poder moderador no Brasil antes do golpe de 64, acredita que esse papel poderia estar sendo assumido pelo Judiciário (ainda que uma significativa parcela da população também desconfie dele, sobretudo do STF)?
R. O Judiciário também não escapa ao escrutínio da população. Os mais pobres, sobretudo, conhecem a mão pesada da Judiciário (40% dos presos não têm culpa formada). Entretanto, não devemos, e não podemos, pensar o Judiciário como um todo monolítico. Há, em circulação, muitas teorias conspiratórias que veem o Judiciário como um sistema unidirecional. Nada mais falso. Juízes e desembargadores vivem se contradizendo, inclusive em polêmicas públicas. O que há de novo é que alguns juízes, montados na Lei da Delação Premiada (editada pela presidente Dilma Rousseff), começaram a prender lideranças empresariais e políticas. É isto que está provocando escândalo, pois o país "de cima" não estava acostumado a isto.
P. O PT vem pagando um preço caro na Lava Jato. Mas a Justiça parece funcionar a duas velocidades, sendo rápida e eficiente com determinadas figuras e lenta com outras. O próprio STF, por exemplo, impediu rapidamente que Lula assumisse como ministro e tivesse foro privilegiado, ao mesmo tempo em que vem agindo mais lentamente diante de outros casos. Isso não aumenta as desconfianças com relação à Justiça?
R. Quando você fala em "Justiça", está, de fato, falando do Juiz Moro e dos procuradores de Curitiba. Está muito clara a orientação anti-petista e anti-lulista deste grupo e também procedimentos arbitrários que têm assumido nas acusações que fazem, nas prisões que efetuam e nas condenações proferidas. Mas é importante não esquecer que políticos de outros partidos e grandes líderes empresariais já passaram ou ainda estão na cadeia. Por outro lado, Moro e seu grupo de procuradores não resumem a "Justiça", por mais espetaculares que sejam suas ações.
P. Em postagem recente no Twitter, o cientista político Maurício Santoro lembrou que, ao longo da história recente, a maioria dos presidentes popularmente eleitos tiveram destinos trágicos, com exceção de FHC e Dutra. Enxerga alguma relação entre todos esses casos, apesar de que tenham acontecidos em períodos históricos diferentes? O que eles indicam sobre o Brasil?
R. São conjunturas e casos muito distintos. Sem embargo, é clara uma tendência forte em certas elites brasileiras de cultivar uma hostilidade aberta e sectária contra lideranças populares ou mesmo contra líderes de elite mas que manifestam simpatia pelas reivindicações e interesses populares. Não podemos esquecer (muita gente esqueceu disso) que a sociedade brasileira é profundamente conservadora e que este conservadorismo só será superado, se for, no tempo longo — uma questão de gerações, como apontou o líder político uruguaio, José Mujica.
P. O que a condenação de Lula poderia representar do ponto de vista histórico?
R. O Lula, salvo imprevistos, permanecerá vivo e influente na vida política brasileira. Sua condenação ainda poderá ser revertida por instâncias superiores, mas mesmo que não seja, a condenação, sobretudo em segunda instância, é, sem dúvida, um marco na história política brasileira. Ela está inserida num contexto, inédito, de prisão de lideranças políticas e empresariais e este é um aspecto que merece atenção. Trata-se de saber até que ponto a corrupção entranhada nas instituições brasileiras sofrerá um baque com esta condenação. Tenho minhas dúvidas.
Numa outra dimensão, a condenação de Lula poderá aprofundar o ceticismo e o pessimismo quanto às possibilidades da democracia brasileira. Desde a eleição de Dilma Rousseff, em 2014, há um processo crescente de desconfiança nas instituições democráticas, estimulando tendências autoritárias e messiânicas. Se estas tendências prevalecerem, e demolirem a pobre e frágil democracia brasileira, a condenação de Lula terá sido um marco importante na marcha para este despenhadeiro.
Fonte: El País (30/03/18)
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