quarta-feira, 25 de abril de 2018

O partido que não temos (Demétrio Magnoli)

FHC disse, há pouco, que se arrepende de, no passado, não ter se aproximado de Lula. Em entrevista recente, Fernando Haddad, possível candidato lulista à Presidência, reconheceu o avanço econômico e institucional obtido pelo Plano Real. As duas declarações reinstalam uma questão histórica especulativa, mas relevante num sentido tão atual quanto inesperado: o que teria sido o Brasil se o PSDB e o PT tivessem optado pela aliança, no lugar da letal rivalidade?
“Opção” não é o termo apropriado. A rivalidade é fruto de escolhas anteriores dos dois principais partidos que nasceram na transição à democracia. Na sua complexa trajetória ideológica, o PT roçou a social-democracia para, imediatamente, trocá-la pela tradição populista da esquerda latino-americana. O PSDB, por sua vez, afastou-se da social-democracia para conduzir as reformas liberais de estabilização da economia e, depois daquela etapa heroica, dissolveu seus ensaios programáticos na mera pregação da ortodoxia econômica e num defensivo antipetismo. Uma muralha separou FHC de Lula. O resultado foram as alianças sucessivas do PSDB e do PT com o PMDB — e o colapso do sistema político da Nova República.
A crise política brasileira inscreve-se, como singularidade, na crise mais ampla das democracias ocidentais. Na Europa e nos EUA, sob formas distintas, regridem os grandes partidos de centro-esquerda e centro-direita. Na América Latina, o “Extremo-Ocidente”, o esgotamento do neopopulismo não parece abrir caminho a uma nova onda sustentada de reformas liberais. O traço marcante do cenário brasileiro é a fadiga do centro político: Lula e Bolsonaro emergem como relevos notáveis na planície desolada. As escolhas do PSDB e do PT têm forte responsabilidade pela desolação.
A “fórmula Macron” tornou-se, com boas razões, uma obsessão entre os que investigam saídas para o declínio do centro político no Brasil. Contudo, de modo geral, como atesta a fracassada “operação Luciano Huck”, não se entendeu que a ascensão de Emmanuel Macron nada tem a ver com a rejeição da política ou dos políticos. O presidente francês deflagrou seu movimento por um gesto de ruptura, com o Partido Socialista, e um de construção, de um novo partido com nítida definição ideológica.
O “Em Marcha”, de Macron, ergueu-se sobre dois pilares que se completam e se contestam: o socialismo democrático e o liberalismo progressista. Nenhum deles é uma novidade no universo das democracias ocidentais. A novidade está na fusão de tradições ideológicas aparentemente inconciliáveis. O primeiro é o que o PT poderia ter sido; o segundo, o que o PSDB poderia ter sido.
O liberalismo progressista nasce da herança liberal, mas rejeita sua massacrante carga conservadora. Os liberais clássicos puseram o acento nas liberdades econômicas e políticas — isto é, na limitação do arbítrio estatal. Mas, oriundos dos sistemas políticos elitistas do passado, desprezaram a importância das liberdades públicas — isto é, do direito de reivindicar salários e proteções sociais. O liberalismo progressista, um fruto das democracias de massas, abraça a luta contra a pobreza, a exclusão e a discriminação.
O socialismo democrático emana da herança social-democrata, mas distingue-se pela sua abordagem do tema da igualdade. Na social-democracia tardia, o “bem público” tornou-se quase indistinguível dos interesses corporativos: a inflexível regra trabalhista, a aposentadoria precoce, os subsídios aos “campeões nacionais”, os privilégios das castas superiores do funcionalismo. O socialismo democrático, em contraste, sublinha o valor dos direitos sociais universais e dos serviços públicos: o hospital, a escola, o metrô, a água limpa, o teatro, a biblioteca, a praça e o parque.
As duas tradições são estranhas à história política latino-americana. No “Extremo-Ocidente”, o liberalismo importado da Europa revestiu sociedades patriarcais, patrimonialistas, assentadas na propriedade fundiária. O DEM e o MBL, cada um a seu modo, explicitam a natureza corrompida do liberalismo caboclo. Já o socialismo, também importado, contaminou-se com os metais pesados do caudilhismo, do populismo e, mais depois, do stalinismo em versão castrista. O PT e sua pobre dissidência psolista evidenciam o caráter farsesco do socialismo brasileiro.
Mas a fórmula dual de Macron oferece respostas para nossos impasses crônicos que, na campanha em curso, manifestam-se pela fragmentação de candidaturas situadas entre a centro-esquerda e a centro-direita. A régua do liberalismo progressista descortina um horizonte além do capitalismo de estado de raízes varguistas e atualização lulopetista. O compasso do socialismo democrático propicia uma reinterpretação das políticas sociais, afastando-as da armadilha corporativista.
Os caminhos do PSDB e do PT se desencontraram. Seguindo trilhos divergentes, os dois partidos nucleares da “Nova República” consumiram totalmente seu combustível ideológico. Mas, sem qualquer nostalgia, vale a pena imaginar o que poderia ter sido: o exercício servirá, talvez, para reinventar o presente.
Fonte: O Globo (23/04/18)

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