É como se após uma sufocação, voltássemos a respirar ar fresco. Vínhamos há muito tempo condenados a uma polarização alimentada pelo ódio e pelo medo, sentimentos corrosivos, que dividem pessoas e sociedades.
A escolha entre Lula e Bolsonaro deixava órfão quem, perplexo, se perguntava que maldita máquina do tempo era essa que nos atirava de volta a 50 anos atrás, quando o confronto entre direita e esquerda desembocou em 20 anos de ditadura militar.
A cena política mudou. Lula foi preso depois de um discurso em que tentou transformar um político preso em um preso político. Pregou ódio e violência talvez apostando em um conflito mais grave que, instalando o caos, fizesse de um condenado por corrupção uma vítima do arbítrio. Não conseguiu.
Bolsonaro, por sua vez, que surfava na onda de violência que desgraça o país, prometendo como solução mais violência, foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal pelo crime de racismo. Já havia sido denunciado pela mesma PGR ao mesmo STF por incitação ao estupro.
E, por fim, o resultado da pesquisa Datafolha de intenção de votos para a Presidência da República apontando para o colapso da velha política. Lula perdeu votos, Bolsonaro empacou na votação que tinha até agora. Ascendentes, duas candidaturas, um negro, Joaquim Barbosa, e uma mulher, Marina Silva, com trajetórias de afirmação pessoal e reputação ilibada. Ambos conheceram a pobreza na infância e juventude. Nem um nem outro esqueceu o que isso significa.
As agressões de Bolsonaro contra os negros e as mulheres, ampla maioria da população, esbarram na realidade de um país em que negros e mulheres vêm levando com coragem uma luta pelos direitos que vertebram uma verdadeira democracia.
É preciso agora desmistificar o anacrônico confronto entre esquerda e direita que Lula e Bolsonaro tentam nos impingir como expressão da sociedade, o que é falso. É torpe a tentativa de Lula e do PT de jogar no campo da direita, como um anátema, todos os que dizem que eles foram desonestos, faliram o Brasil e merecem a condenação da Justiça. O que é verdade.
Combater a pobreza e a desigualdade é uma tarefa inadiável. Não foram os movimentos sociais aparelhados pelo PT que mudaram o Brasil, foi a sociedade em movimento, os que se educaram com imenso esforço, exercem sua liberdade de pensamento e de escolha, lutam na vida real contra a pobreza e desigualdade. Os que exigem um governo livre da corrupção e acreditam na Justiça como essencial à democracia.
Lula e seu partido, Bolsonaro e quase toda a classe política não se dão conta do quanto o Brasil mudou. Não estão à procura de um centro, o que subentenderia uma referência ainda à esquerda e à direita. Um novo Brasil emerge em outro lugar, fora da polarização.
O crescimento das candidaturas de Marina Silva e Joaquim Barbosa sinaliza uma aspiração à decência na vida pública que pulsa na sociedade e será incontornável nessa eleição. Foi essa aspiração que apoiou a decisão do Supremo Tribunal Federal que, negando o habeas corpus a Lula, reafirmou a jurisprudência que permite a prisão após condenação em segunda instância, essencial à eficácia do combate à impunidade. É ela que exigia que Aécio Neves fosse tornado réu, pelo STF, como de fato foi.
Outro mito, o das máquinas partidárias, todo-poderosas, que decidem as eleições no lugar da vontade popular. Sem elas, os candidatos seriam inviáveis. O que manteria o eleitor inescapável refém dos grandes partidos por mais desmoralizados que fossem. Ora, a pesquisa atribui pífias intenções de voto ao MDB, detentor da maior parcela do fundo partidário e do tempo de televisão. O que dá ainda maior relevo à trapaça que é a atribuição de tempo e dinheiro a partidos que a população despreza. Esse mito aposta na profecia que se cumpre, desqualificando e minando candidaturas com forte potencial eleitoral como Marina e Barbosa.
É difícil reconhecer o que é novo. Programados para conviver com o velho, o novo, que vem emergindo, imperceptível, surpreende.
Somos uma sociedade que, depurada da corrupção e fortalecida pela Justiça, terá que enfrentar seus desafios maiores, a violência, a pobreza e a desigualdade, os frágeis direitos das minorias e de maiorias como os negros e as mulheres, a crise ambiental, cicatrizes que desfiguram nossa democracia.
Longe do ódio e do medo que nos separam, é em outro lugar, o da honradez, liberdade e dignidade para todos, que devemos nos reunir. A pesquisa Datafolha colocou esse lugar no mapa eleitoral.
(*) Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Fonte: O Globo (21/04/18)
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