Passei as duas últimas semanas em Lisboa e Londres. Vi pela mídia a indignação provocada pelo assassinato de Marielle Franco, vereadora que denunciava abusos contra os direitos humanos no Rio de Janeiro.
Dizer que se tratou de mais um assassinato é não entender o recado que quiseram dar os que a mataram. A intervenção militar na Segurança Pública do Rio não foi devidamente preparada e não soluciona todos os males, mas é vista como uma ameaça real pela banda podre das forças policiais, pelas milícias e pelas organizações criminosas. Os autores do crime quiseram deixar claro que o poder ilegal está disposto a tudo para preservar seus domínios. É sinal de uma escalada.
Na Colômbia, entre as décadas de 70 e 90, o crime organizado foi de ousadia em ousadia até assassinar um candidato a presidente da República e explodir um avião de passageiros. No México há mais de dez anos se vive uma guerra que não poupa jornalistas, políticos, policiais, militares e cidadãos comuns. Ano passado, o país teve a maior taxa de homicídios já registrada.
O assassinato de Marielle é um alerta. Deve-nos fazer lembrar que está em jogo a possibilidade ou não de avançar na construção de uma sociedade decente no Brasil. Nos últimos 30 anos muita coisa mudou para melhor. Menos os índices de violência. E isso se deve em larga medida à expansão do crime organizado. A escalada da violência põe em risco a própria democracia.
Não é uma questão partidária ou mesmo ideológica. Os que mataram a vereadora, assim como os assassinos da juíza Patrícia Acioli, em 2011, e de centenas de policiais nos últimos anos no Rio de Janeiro, não são de esquerda nem de direita, são bandidos. E bandidos organizados em poderes paralelos que se impõem pela violência e pela corrupção. Os mais pobres, que não têm meios para se proteger da sistemática violação dos mais elementares direitos humanos, são suas maiores vítimas.
Senti de perto o drama vivido pelas populações das favelas cariocas quando participei do documentário Quebrando o Tabu. Elas vivem entre o fogo cruzado de grupos criminosos rivais. Apesar disso, não veem na polícia uma aliada. Quando esta sobe o morro – contou-me uma mãe com um filho traficante e outro, não –, todo mundo apanha. O filme põe em discussão a chamada guerra às drogas, que em vários países tem sofrido críticas e propostas de mudanças por não reduzir o consumo de entorpecentes e aumentar a violência.
A comoção provocada pela morte de Marielle dá esperança de ser possível reunir pessoas e forças sociais diversas em torno do objetivo comum de reduzir com urgência a violência no Brasil. Devemos colocá-lo acima dos interesses e paixões eleitorais e condenar a exploração política rasteira do episódio. É muito perigosa a mistura de ódio político, violência cotidiana e demagogia.
O momento pede coesão em torno de valores: firmeza no combate ao crime, mas dentro da lei; ordem, sim, mas dentro da democracia. A polícia deve estar bem armada, não a sociedade. Que o digam os milhões de jovens americanos que, depois de sucessivos mass shootings, foram às ruas no último fim de semana protestar contra a facilidade de acesso a armas nos Estados Unidos.
Sem coesão em torno de determinados valores, o que esperar do futuro? O País vive uma disjuntiva: podemos reconhecer os males que nos afligem – e a escalada da violência é um dos maiores, se não o maior – e estabelecer políticas que reduzam ou eliminem esses males, ou nos deixar dominar pelo espírito de facção e lançar o País à deriva. Sem catastrofismos nem exageros, o risco existe.
Não falo como homem de partido, mas como brasileiro: o Brasil precisa de lideranças que tenham a capacidade de reunificar o País em torno de alguns objetivos comuns. Se em outubro o País se deixar levar pelo ódio, o que será de nós como “comunidade nacional”? Não pode haver comunidade nacional bem-sucedida sem crença na importância da convivência política civilizada, sem recuperação da confiança na democracia, sem a prevalência da ordem dentro do Estado de Direito.
É urgente recuperar a autoridade pública. Mas autoridade derivada da legitimidade das urnas, da capacidade de governar para o País em seu conjunto, da exemplaridade da conduta, da compreensão de que o Brasil requer tanto mais eficiência econômica quanto mais justiça social, tanto mais ordem quanto mais democracia, tanto mais eficácia no combate ao crime quanto mais respeito aos direitos humanos.
Nas circunstâncias atuais, a eleição do futuro presidente se torna agônica. Que ele ou ela seja não só expressão de um sentimento, mas líder competente para governar. Que saiba que o Estado deve estar a serviço da sociedade, e não de grupos ou partidos políticos. Que valorize a Federação e convoque governadores e prefeitos a se engajar nas grandes causas nacionais. Que respeite o Congresso, mas seja capaz de conduzi-lo e, obediente às leis, não tenha medo de buscar reformá-las quando inconsistentes com as necessidades do País.
Cada um de nós tem a responsabilidade de ajudar o eleitor a distinguir entre a demagogia e a proposta consistente, entre informação e fake news, entre compromisso com valores e políticas e truques de marketing. A ansiada renovação de conduta deve ter início na campanha e se traduzir num novo governo capaz de fazer o País recuperar a confiança no seu futuro.
Caso contrário, temo, podemos enveredar por descaminhos que, cedo ou tarde, nos levem a governos não democráticos, de direita ou de esquerda. A história dos últimos 20 anos mostra que a democracia pode morrer sem que necessariamente haja golpes de Estado e supressão de eleições. Ela morre quando grupos e líderes políticos se aproveitam do rancor ou do medo do povo para sufocá-la pouco a pouco em nome da grandeza da pátria, da revolução ou do combate à desordem.
Nossa maior arma contra esse risco é a palavra e o voto. Façamos bom uso dela.
Fonte: O Estado de São Paulo (01/04/18)
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