sábado, 14 de abril de 2018

A marcha da insanidade (Alfredo Sirkis)

O psicodrama ou psicotragicomédia em torno da prisão de Lula é menos importante, em si, do que como um sinalizador de tempos ameaçadores. Há três anos assistimos o desmonte destrutivo –num certo sentido revolucionário-- do establishment político brasileiro, fortemente dominado pela corrupção, institucionalizada. Era assim, a perder de vista, no passado mas nos anos petistas chegou ao apogeu: o PT pretendeu permanecer no governo, indefinidamente, a qualquer preço, unindo sua força popular e sindical com a cooptação dos tradicionais esquemões corruptos-clientelistas da política brasileira e um "tesouro de guerra" avassalador capaz de bancar super campanhas como a de 2014.
Infelizmente, tenho poucas dúvidas em relação à responsabilidade política de Lula no “Petrolão” e outras armações desenhadas para consolidar o cofre da hegemonia amealhando o que combinado com o abuso da máquina pública, perigava inviabilizar, de forma duradoura, qualquer possibilidade de alternância política. Isso quando o país e sua economia já estavam cabalmente falidos. Resultou na vitória de Pirro da reeleição de Dilma e no subsequente "cavalo de pau" que ela operou na economia, mergulhando o país numa recessão cavalar.
Em última análise o grande responsável político foi o Lula, um grande líder popular, o maior deles, desde Getúlio Vargas e a companheirada sedenta de continuar controlando seus carguinhos e esquemões. E a corda arrebentou... Num estado de direto, no entanto, a justiça não é simplesmente o exercício de um castigo a qualquer preço. Nesse sentido, acredito, sinceramente, que o julgamento de Lula pelo juiz Sérgio Moro, na primeira instância, depois agravado pela trinca radical de Porto Alegre, tratando especificamente do episódio envolvendo apartamento de Guarujá, foi uma aberração jurídica, no que pesem as loas cantadas pelos comentaristas e o deleite da classe média "indignista".
Questiono aquela sentença por três motivos que nossa grande mídia não quer ver de jeito nenhum. Primeiro: Moro funcionou tipicamente como um juiz de instrução. Trata-se de uma instituição interessante que não existe no Brasil. Lá onde existe, o juiz de instrução chefia a investigação mas não profere sentença. Instrui, mas deixa para outro magistrado, menos envolvido, essa decisão. O Brasil deve muito a Moro mas apesar disso, dado seu envolvimento, projeção midiática e antecedentes de parti pris --como aquela divulgação abusiva dos “grampos”, as polêmica públicas e sua própria caraterização como herói do processo, imune a reparos e controles-- não se assegurava aquela imparcialidade necessária para ser ele a proferir a sentença. Foi uma justiça de exceção. Revolucionária.
A segunda questão foi o fato desse processo ter feito tábula rasa do princípio in dúbio pro reu numa postura que nos aproxima de países autoritários: o réu é que tem de provar a inocência, sem margem a uma dúvida razoável. Se o apartamento, vazio, de Guarujá foi pagamento de propina por um ato de oficio, corrupto, feito para beneficiar a empresa em seus contratos com a Petrobras, tratou-se claramente de uma tentativa, não consumada, de cometer tal delito porque nem Lula nem sua família de fato se apossaram ou usufruíram daquele bem. Também não ficou provada, sem margem a dúvida razoável, uma contrapartida. Aceitou-se uma acepção vaga de aquilo fazia fora parte de uma propina pelo processo de fraudes na Petrobras genericamente falando embora na falta um ato de Lula, enquanto presidente da república, que claramente a caracterizasse. A tese do “domínio do fato” é de aplicação muito nebulosa e presta-se facilmente a colossais abusos. Entende-se sua aplicação em relação a quadrilhas mafiosas. Nos delitos vinculados à política há uma proliferação de zonas cinzentas.
Não se levou em conta outra possibilidade: a de que aquele ato preparatório para um “agrado” tivesse sido, nesse caso, praticado por Leo Pinheiro por amizade. Era, de fato, amigo de Lula devotava-lhe grande admiração, independente da corrupção na Petrobras. Em relação a qual a responsabilidade política de Lula é inquestionável mas faltam provas para além da delação premiada de pessoas em desespero para, nesse caso, considera-lo culpado de receber o apartamento como propina sem margem a dúvida razoável. Na jurisprudência brasileira esse tipo de ilação, por um pagamento que não se materializou, jamais conduziria a uma condenação de 13 anos de prisão agravada que foi pelo TFR 4 num julgamento-espetáculo televisivo de natureza a criar novos heróis midiáticos por atender o "clamor popular". “Aquilo era no tempo da impunidade, agora é assim”, dirão, muito embora para os embandeirados de verde anil, nas ruas, continua tudo "acabando em pizza”. Fica a pergunta no ar: o que precisa acontecer para deixar de ser considerado “pizza”. A execução dos corruptos --ou supostos corruptos-- com um tiro na nuca para depois da família pagar a bala, como na China? Vamos tomar um certo cuidado com aquilo que sonhamos. Pode, eventualmente, acabar se realizando.
Lula ainda vai se julgado por frequentar o tal sítio, com lago e pedalinhos, do qual, de fato, usufruiu –assim como daquele sítio que o Fernando Henrique lhe emprestava, nos anos 80-- e de um outro apartamento em relação ao qual exibiu recibos de aluguel de autenticidade contestada pelo MP. Lula será é o primeiro "grande homem" ao qual amigos ricos e admiradores proporcionam agrados e que acredita piamente que isso lhe é devido. Há muitos anos vivia assim. Depois de novas passagens por Moro e pelo TFR 4, em novos julgamentos-espetáculos, vai terminar com condenações somando mais de 30 anos, o que, na sua idade, é praticamente uma condenação a morrer na cadeia. Pode também ser rapidamente beneficiado por um habeas corpus desses tão odiados últimos moicanos da justiça liberal no STF. Mais brasileiros ficarão convencidos de que tudo "acabou em pizza" ainda que o fato de ter sido preso e impedido de se candidatar seja uma punição de vulto por sua responsabilidade política, inquestionável.
O fato é que sua prisão e tem como efeito objetivo radicalizar o clima político do pais estimulando o pior de cada um dos lados que se confrontam de forma cada dia mais irracional. Lembra aquela peça: ”Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A verdade é que a sorte de Lula menos importante em comparação com outra mais abrangente que é a do Brasil. A fase de destruição punitiva foi fundamental para desmontar os esquemas de corrupção mas em nada garante que os hábitos, costumes, cultura e cotidiano da política brasileira se transformem do dia para a noite.
O lavajatismo corre aquele clássico risco das revoluções. Alimentado cobertura de mídia fortemente emotiva e repetitiva que estimula toda noite o "indignismo" e a raiva de dezenas de milhões, a sociedade torna-se adita a esse sentimento e enamorada da guilhotina. Como uma droga: toda a frustração da crise econômica, da insegurança, todos o problemas estruturais e difíceis do país passam a ser sublimados e compensados pela lâmina sangrenta, implacável, catártica. As pessoas tomam gosto pela coisa num prazer punitivo compensador na degola --por enquanto figurada-- dos culpados, dos acusados e dos eventuais bodes expiatórios. Tudo velho como a história, já aconteceu trocentas veres em inúmeros países e momentos históricos mas nunca trouxe nada de bom, de fato, pelo menos a curto e médio prazo. É sofrimento sublimado em glória: pode não have solução alguma, avanço zero na qualidade da representação ou da governança mas tem o consolo de mais gente atrás das grades. Cria-se uma máquina punitiva que precisará se alimentar sempre mais e mais. Novos polos de poder se sentem ungidos pela missão de "limpar" o país muito embora faltem-lhes, objetivamente, os meios para produzir a melhor representação e a melhor governança que lhe faltam dolorosamente ao Brasil. Isso, até segunda ordem, depende de uma melhor qualidade da representação eleita.
A destruição punitiva não conduzirá a um país melhor se não for seguida de uma reconstrução em novas bases, um establishment político menos corrupto, fisiológico e clientelista onde haja mais participação, diálogo e tolerância. Isso inclui uma confiança e tolerância maior entre brasileiros, --ambas hoje pela hora da morte-- e pelo estabelecimento de uma autoridade acatada socialmente. O problema é que estamos rumando em alta velocidade no caminho oposto, aquele da entropia.
Uma democracia precisa de uma esquerda democrática e de uma direta civilizada. Ambas têm que fazer parte de um respeitoso jogo de aceitação da diferença e de alternância. O que temos aqui é uma esquerda regressiva que no seu ressentimento namora o chavismo e não consegue ter a menor dimensão autocrítica da sua responsabilidade em tudo que ocorreu. Do outro lado, uma direta hidrófoba, truculenta, raivosa que busca bodes expiatórios e teorias de conspiração. Seu eventual ponto de chegada é o “homem forte”: um Erdogan, Duterte, Sisi, Orban, Kaczinski, Putin, verde anil.
Uma resultante mais imediata é o caos, a síndrome dos estados falidos da qual o Rio é um prenúncio. Ninguém controla mais nada e ninguém confia mais em ninguém. Multiplicam-se ditaduras locais num momento de ouro para o crime organizado. Bandidos a sério mesmo, daqueles que matam a rodo, não esses meliantes políticos, pilantras e frouxos. É sua hora de acumular poder.
Ainda há tempo de se restabelecer um mínimo de sensatez e reduzir essa temperatura escaldante, essa histeria, de parte a parte. Senão vamos temer um amanhã pior.
Fonte: Blog (07/04/18)

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