A persistente resiliência da democracia liberal
[RESUMO] Autores reconhecem a existência de certo pessimismo quanto ao futuro dos governos ocidentais, mas afirmam que a capacidade de resistência do sistema político causa otimismo.
Não é nada óbvio que a democracia esteja em recuo em todo o mundo. Não há provas claras de um declínio drástico no apoio a esse sistema na maioria dos países
Por mais difícil que seja acreditar nisso, o mundo vem constantemente se tornando mais seguro e mais próspero. Mas é evidente que algumas partes do planeta estão se saindo bem melhor do que outras.
Os países governados por democracias se destacam: eles tendem a registrar índices mais elevados de crescimento econômico, menos guerras e genocídios, praticamente nenhuma onda de fome e cidadãos mais felizes, mais saudáveis e com educação melhor.
Para os cerca de dois terços da população mundial que vivem em uma democracia, essa é uma boa notícia. No entanto, existe uma inconfundível sensação de pessimismo quanto ao seu futuro. Por quê?
A confiança no avanço da democracia está minguando. Estudiosos falam de forma sombria sobre como esse sistema político está enfrentando maré baixa, retração, recessão e até mesmo depressão.
Outros se preocupam com a possibilidade de que as democracias estejam se esvaziando, tornando-se parciais, de baixa intensidade, ocas e não liberais: ainda que ocorram eleições, liberdades civis e freios e contrapesos ao poder são rotineiramente desrespeitados.
Os fracassos das revoluções coloridas [manifestações contrárias a governos pró-Russia em países da União Soviética] e da Primavera Árabe foram um grande revés. As tendências autoritárias que estão se aprofundando em velhas e novas democracias dispararam alarmes. Organizações ativistas como a Freedom House estão convencidas de que o planeta está se tornando progressivamente menos livre.
Uma sensação cada vez mais intensa de pessimismo vem se estabelecendo. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt [autores de "How Democracies Die", como as democracias morrem] acreditam que as democracias tipicamente acabam com um suspiro, não com uma explosão.
A imprensa livre e as restrições ao exercício do poder vêm sendo gradualmente envenenadas por demagogos, como se pôde ver recentemente nos Estados Unidos.
Enquanto isso, Yascha Mounk [autor de "The People vs. Democracy", o povo contra a democracia] e outros alertam quanto à difusão do liberalismo não democrático, que protege os direitos básicos, mas delega o poder real a tecnocratas não eleitos, como no caso da Comissão Europeia. Existe uma preocupação real de que os jovens, especialmente, estejam se afastando da democracia, inclusive no Ocidente.
Embora essas preocupações sejam reais, é fácil esquecer que a democracia liberal é uma ideia relativamente nova. Os conceitos de eleições livres, justas e competitivas, a separação de Poderes, direitos humanos, liberdades civis e proteções políticas só decolaram genuinamente no século 20.
Até poucos séculos atrás, a maioria das sociedades oscilava desconfortavelmente entre a tirania e a anarquia. Os primeiros governos (não democráticos) ofereciam melhora apenas modesta, frequentemente impondo repressão brutal para manter os súditos sob controle.
O despotismo impiedoso persistiu porque as alternativas eram muito piores. A democracia, então, assim como agora, não era inevitável.
A expansão dos governos democráticos aconteceu de maneira intermitente. O cientista político Samuel Huntington divide sua expansão em três ondas.
A partir do século 19, o primeiro período de expansão foi liderado pela democracia constitucional dos Estados Unidos, com suas muito admiradas limitações aos poderes e privilégios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Esse modelo foi emulado em toda a Europa Ocidental, o que resultou em um total de 29 democracias em 1922, que foram reduzidas a 12 em 1942.
A segunda onda conduziu a um pico de 36 democracias em 1962. O número recuou uma vez mais, passando a 31, devido à reação de regimes autoritários e à tomada de poder por comunistas na Europa, na América Latina, na África, no Oriente Médio e no Sudeste Asiático.
A terceira onda foi mais como um tsunami, efetivamente triplicando o número de democracias no planeta até o final da Guerra Fria. Governos militares e fascistas caíram em toda parte até a década de 1980. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da implosão da União Soviética, em 1991, o número de democracias disparou.
Surgiu uma espécie de era de ouro da consolidação democrática. No começo do governo Barack Obama, em 2009, havia 87 democracias. Apesar da velocidade surpreendente com que esse regime se expandiu, ou talvez por causa dela, começaram a emergir preocupações sobre a qualidade da governança nos países recém-convertidos.
A verdade é que não é nada óbvio que a democracia esteja em recuo em todo o mundo. Não há provas claras de um declínio drástico no apoio a esse sistema na maioria dos países, incluindo os Estados Unidos.
Isso não significa que o avanço das autocracias deva ser ignorado, mas os rumores sobre a morte da democracia talvez sejam exagerados.
Além disso, as pesquisas que mostram um recuo no apoio à democracia, especialmente entre os jovens, devem ser encaradas com cautela. É difícil discernir o apetite das pessoas por democracia em regimes autoritários, já que entrevistados frequentemente hesitam em declarar publicamente sua preferência em uma ou outra direção.
Manchetes negativas incessantes também reforçaram a sensação de que o iliberalismo —e, mais recentemente, o nacionalismo populista— está em ascensão.
Pesquisas do Polity Project, no entanto, sugerem que, em vez de recuar, a terceira onda de democratização pode ser sucedida por uma quarta. Em 2015, o ano mais recente para o qual há dados, o número de democracias no planeta era de 103, e elas respondiam por mais de metade da população mundial.
Se a esse montante forem acrescentados os 17 países que são classificados como mais democráticos do que autocráticos, a proporção da população mundial governada por democracias sobe a dois terços.
Isso pode ser comparado com o nível do início do século 19, quando apenas 1% da população mundial vivia em democracias. Embora a governança democrática tenha muitos matizes, essa estatística bastaria para justificar uma reconsideração.
A resiliência persistente da democracia não é desculpa para complacência. O avanço continuado do governo democrático está longe de garantido. Quando examinadas quanto a níveis de pluralismo, participação política e respeito pelas liberdades civis, é verdade que diversas democracias mostram sinais de retração.
De acordo com o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit, apenas 19 países —a maioria deles se localiza na Europa Ocidental— podem ser descritos como democracias plenas (as demais classificações incluem democracias falhas, regimes híbridos e regimes autoritários). Dos 167 países considerados, 89 mostraram sinais de deterioração em 2017, na comparação com o ano anterior.
Embora a maior parte do mundo ainda favoreça a democracia, ela está longe de ser o único modelo possível. Tome-se o exemplo das teocracias do mundo islâmico e o capitalismo autoritário da China. Algumas dessas abordagens são atraentes para os autocratas e populistas porque podem gerar certas vantagens econômicas no curto prazo.
Pode-se afirmar também que alguns países recentemente convertidos à democracia estão retornando ao autoritarismo, incluindo os chamados "Quatro de Visegrad" (República Tcheca, Hungria, Polônia e Eslováquia). E ainda temos os homens fortes que estão tentando abalar democracias vizinhas, com destaque para Recep Erdogan, na Turquia, e Vladimir Putin, na Rússia.
Diante de todas essas ameaças à sua existência, o que torna a democracia tão bem-sucedida? Não são somente seus procedimentos, como eleições, ou mesmo os mecanismos de controle entre os Poderes, por mais cruciais que sejam.
Pode ser que —para parafrasear Winston Churchill—, apesar de suas muitas falhas, a democracia ainda seja preferível às alternativas. Ela dá às pessoas a oportunidade de remover seus representantes do poder sem derramamento de sangue.
Como aponta John Mueller, democracias liberais bem governadas oferecem ao povo a liberdade de "reclamar, peticionar, organizar, protestar, fazer manifestação, fazer greve, ameaçar emigração ou secessão, gritar, publicar, exportar seu dinheiro, expressar falta de confiança... [E] o governo tenderá a responder aos gritos daqueles que gritam".
Até mesmo as democracias liberais mais maduras são obras em andamento e requerem cuidados e melhorias constantes.
O requisito mais básico de uma democracia bem-sucedida é que ela seja competente o bastante para proteger as pessoas da violência e impedir que sejam seduzidas pelo primeiro homem forte que diga que só ele é capaz de representá-las e fazer o trabalho.
Para que ela floresça verdadeiramente, os cidadãos precisam estar convencidos de que a democracia —na forma presidencial, parlamentar ou de monarquia constitucional— é uma alternativa superior à teocracia, ao direito divino dos reis, ao paternalismo colonial ou ao domínio autoritário.
À medida que as pessoas reconheceram os benefícios da democracia liberal, a ideia se tornou contagiosa e se espalhou.
A despeito de suas limitações, as democracias se provaram incrivelmente efetivas na contenção dos instintos mais sinistros dos governos. Os direitos humanos, que foram amplamente incorporados aos códigos legais desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, servem como exemplo.
Outro é a pena de morte, que costumava ser regra em todo o mundo. Projeções recentes sugerem que a pena capital pode ser completamente extinta em menos de dez anos.
O ponto é que eleições livres e justas, direitos das minorias, liberdade de imprensa e Estado de Direito são ideias pelas quais vale a pena lutar. Embora diversas democracias venham enfrentando uma crise de confiança nos últimos anos, sua perseverança, apesar de todos os obstáculos, é causa de otimismo.
(*) Steven Pinker, 63, linguista e psicólogo canadense, é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard. Lançou neste ano o livro “Enlightenment Now” (Viking).
(*) Robert Muggah, 43, é cofundador e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé e sócio-diretor do SecDev Group.
Fonte: Folha de São Paulo (22/04/18)