O saldo do maior tumulto político desde a morte de Tancredo Neves, em 1985, é a sensação de que foi tudo em vão. Ninguém acha que o impeachment vai resolver, ninguém acha que a derrota do impeachment vai resolver. Os mesmos 60% que querem a renúncia de Dilma, querem que Temer tome idêntico rumo. Quem é contra o impeachment não é a favor do governo. Quem é a favor do impeachment não quer colocar Temer na presidência.
Acontece que a encalacrada atual foi ativamente buscada no último ano e meio por milhões de pessoas. Ninguém pode incluir um acontecimento como a morte de Tancredo no jogo político, não é previsível. O processo de impeachment, no entanto, foi produzido pelos mesmos atores e atrizes que agora parecem tomá-lo como uma falsa escolha que levará a uma falsa saída.
Que não se venha dizer que o fracasso do impeachment se deve somente às artimanhas autointeressadas da política oficial. Ou vamos agora esquecer a guerra sem fim em torno do número de pessoas presentes na Avenida Paulista? A insensatez é coletiva. Ou, pelo menos, pertence em igual medida ao sistema político e aos estratos da sociedade que foram às ruas, que postaram e publicaram, que criaram fossos em suas famílias e círculos de amizades. Há culpados e vítimas, com certeza, mas não há inocentes.
Não poder em sã consciência alegar inocência tem, entretanto, a grande vantagem de permitir que a pergunta pelas lições a tirar do fracasso possa ser posta para além das trincheiras artificiais - mas reais - do impeachment. É verdade que a própria ideia de tirar lições é questionável, já que ela depende da aceitação de que se tratou de um fracasso coletivo. Mas o gigantesco e inútil esforço do impeachment parece não contemplar outra possibilidade razoável para quem esteja disposto a travar um debate político minimamente sério.
Algumas poucas das muitas lições podem vir de uma reconstrução dos momentos decisivos do processo. A porta do impeachment foi aberta por Aécio Neves, quando, no dia seguinte da eleição, recusou-se a aceitar o resultado. Queria garantir que seria o candidato do PSDB na eleição presidencial seguinte, fosse quando fosse realizada. Um ano e meio depois, viu-se obrigado a capitular diante de seus pares tucanos, declarando apoio a um governo Temer, que era a última coisa que queria. Queria liderar e acabou sendo levado de roldão pela avalanche que provocou. Aqui, talvez, a primeira lição a tirar: deve ser coletivamente desprezado qualquer candidato que se recuse a aceitar o resultado de eleições limpas.
Mas só a atitude Aécio não explica o que se seguiu. No início de 2015, as manifestações foram muito expressivas, mas não eram ainda manifestações pelo impeachment. Eram relativamente poucas as pessoas nas ruas em 15 de março e 12 de abril do ano passado que defendiam o impedimento da presidente como saída. Foram antes manifestações de insatisfação contra o governo e contra o PT. Essa insatisfação só foi canalizada para o impeachment quando a porta institucional para isso se abriu. E esse movimento devemos a atitudes de duas outras personagens, Dilma e Temer.
Diante de uma crise político-econômica avassaladora e fora de controle, Dilma entendeu que devia recorrer ao PMDB para estancar a sangria política. Confundiu PMDB com Michel Temer e, em abril de 2015, a ele entregou a articulação política. Foi nesse momento que o impeachment efetivamente teve início dentro da política oficial. Ao ter acesso a parte significativa do quadro geral da distribuição de cargos do governo, um certo grupo do PMDB viu aí a oportunidade de ampliar consideravelmente sua influência, viu aí uma chance de se defender em melhores condições da ameaça da Lava-Jato.
Dilma é responsável por sua própria sorte. Praticou o esporte de altíssimo risco político do estelionato eleitoral. E, para completar o desatino, resolveu entregar a coordenação política de seu governo para quem era diretamente interessado em sua queda. Mas, como não há lições a tirar da incapacidade alheia, eventuais ensinamentos nesse caso só poderão ser colhidos pela própria Dilma e por seu partido, caso se resolvam por esse caminho.
O último momento decisivo do processo foi o acolhimento da denúncia por Eduardo Cunha, no início de dezembro de 2015. A primeira tentativa de Temer de liderar as tropas do impeachment, entre agosto e outubro, tinha sido um fiasco completo. No final do ano passado, o impeachment estava enterrado. E o primeiro efeito colateral disso tinha sido o deslocamento do foco de insatisfação para Eduardo Cunha.
Foi quando o presidente da Câmara decidiu reviver o impeachment. Mas, desta vez, tomando para si as rédeas do processo em substituição a Temer. Nesse momento, o impeachment se viu misturado a fins rejeitados por quem tinha saído à rua em seu nome. Não havia mais como desfazer o laço apodrecido que unia os interesses divergentes. A patente ilegitimidade de Eduardo Cunha para conduzir esse processo parece fornecer outra lição: presidente da Câmara que tiver sido declarado réu pelo Supremo Tribunal Federal tem de ser automaticamente afastado do cargo.
Corretas ou incorretas, aceitáveis ou não, as poucas lições a tirar propostas aqui acarretam também algumas consequências lógicas para o futuro imediato. A primeira delas diz respeito a uma eventual derrota do impeachment. Nesse caso, não há outra atitude aceitável por parte de Temer que não a renúncia ao cargo de vice-presidente. Com isso, torna-se possível canalizar energias para a tarefa política seguinte, a luta pelo afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara e pela cassação de seu mandato.
Se o impeachment for vitorioso, o PT deveria fechar para balanço e deixar as forças sociais mais duramente atingidas pela recessão organizarem a oposição social ao novo governo. O PT não é mais o líder inconteste do campo da esquerda. E, se quiser um dia reconquistar essa posição, terá de se remodelar de alto a baixo. Terá de convencer as demais forças desse campo com algo mais do que o slogan "o outro lado é pior".
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (11/04/16)
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