Roberto Schwarz, numa arguta análise de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, examina como o romancista tematiza, por meio da autobiografia de personagem de ficção, volúvel, o modo de ser de um tipo social da classe dominante brasileira da segunda metade do século 19. Fundado na impostura e na desfaçatez, concilia norma e transgressão; cultiva, a um só tempo, princípios liberais e procedimentos clientelistas; incorpora preceitos modernos, mas não abre mão dos privilégios da sociedade escravocrata.
Pode-se acrescentar ao enfoque de Roberto Schwarz aquilo que Karl Marx havia apontado na obra de Honoré de Balzac e Theodor Adorno, na de Franz Kafka – o caráter antecipatório ou profético de determinadas obras literárias. Ou seja, o fato de o romance machadiano evidenciar alguns traços que seriam permanentes no comportamento social e na prática política da história brasileira ao longo dos séculos 20 e 21: fisiologismo e patrimonialismo, clientelismo e favor, nepotismo e apadrinhamento, impostura e arbítrio. Um tipo de conduta peculiar que viria a manifestar-se de maneira paradigmática e recorrente nos procedimentos e nas concepções de agentes político-partidários.
Tal atitude está arraigada em representantes de setores dominantes tradicionalistas aferrados e habituados, secularmente, ao uso instrumental e patrimonialista do poder como forma de assegurar regalias, e pode ser observada a olho nu no Congresso Nacional e nas diversas esferas de governo. Mas não só neles. Impregna até mesmo a práxis de protagonistas oriundos de classes e camadas subalternas, incluindo os outrora radicais. Estes, quando tornados novos donos do poder, adaptaram-se, pragmaticamente, às conveniências do mando e da velha ordem.
Muitos são os protagonistas da história contemporânea do País que exprimem com a máxima nitidez e em toda a magnitude aqueles traços. No primeiro caso, a lista seria longa, mas poderia ser exemplificada na figura dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado; no segundo, uma figura típica reflete de forma extremada essa tendência, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Com um comportamento ambivalente e pragmático, sua trajetória é volátil.
Alternando posturas, conforme as circunstâncias e conveniências, incentivou a criação da imagem – propagada pelo marketing – do homem simples, inculto, operário que se deu bem na vida graças à malícia e à perspicácia, à esperteza e à malandragem. A quebra de protocolo, a simpatia, a cordialidade e a informalidade tornaram-se sua marca. Emblemáticas disso são suas relações de compadrio e de companheirismo com determinados empresários – um deles, dono de uma grande empreiteira, tratava-o pelo apelido afetuoso de Brahma. Ele até se converteu em exímio animador de plateias, chegando mesmo a fascinar uma ilustre filósofa, que exclamou, feérica: quando ele “abre a boca, o mundo se ilumina”.
Não obstante afirmar que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é o “AI-5 da classe operária”, Lula nunca deixou de desfrutar, de maneira oportuna e utilitária, as vantagens da antiga estrutura corporativa. No poder, cooptou boa parte da sociedade civil, transformada em correia de transmissão de seu governo. Aliás, jamais teve grande apreço pela democracia e pela coisa pública, nem antes nem depois de ascender ao poder, quando o aparelhamento das instituições e a apropriação do patrimônio público ganharam dimensões extraordinárias.
Estabeleceu seu governo como marco zero da história e o dístico “nunca antes neste país” passou a ser repetido como um mantra. Insistiu em dividir a sociedade brasileira, numa dicotomia maniqueísta, entre bons e maus, povo pobre versus elite branca; paralelamente, estabeleceu laço de intimidade com os representantes da velha política oligárquica e clientelista, patrimonialista e fisiológica (Paulo Maluf, José Sarney, Fernando Collor de Mello, Renan Calheiros, Jader Barbalho e Edir Macedo, entre outros). Expressão extrema de sua desfaçatez foi a justificativa que deu para a coligação com o peemedebismo nas eleições de 2006: “A mistura de raças é que permite que sejamos esse povo alegre, bonito, sem discriminação, que sabe se misturar. Foi isso que permitiu a aliança do PT com o PMDB”.
Simultaneamente, usava o boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e proclamava que os usineiros eram os novos heróis nacionais. Ao mesmo tempo que atacava a burguesia exploradora, circulava com desenvoltura nos salões e banquetes dos empresários, estabelecendo relações promíscuas com eles e seus negócios – um ex-deputado petista constatou que Lula “deu status de política pública ao compadrismo empresarial”. Também, do mesmo modo que desfrutava a camaradagem de Fidel Castro, flertava com George W. Bush – tomava rum com um e uísque com o outro.
Há pouco, alguém lembrou um vaticínio atribuído ao general Golbery do Couto e Silva, segundo o qual Lula viria a ser o “coveiro da esquerda brasileira”. Se sua predição não se realizou integralmente, o fato é que ele e o Partido dos Trabalhadores (PT) infligiram à esquerda democrática um severo revés político.
Empenharam-se até mesmo em apagá-la da história, utilizando-se de um recurso consagrado, aquilo que Érico Veríssimo denominou “operação borracha”.
Mais de um século depois, aqueles traços e caracteres prefigurados na personagem de ficção machadiana tornaram-se plenos. A ficção transfigurou-se em história – a personagem imaginária reaparece encarnada em figuras reais e vivas, fazendo estripulias políticas, maculando a democracia e aniquilando esperanças.
(*) José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
Fonte: O Estado de São Paulo (27/04/16)
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