Não faltam razões para o PMDB não conseguir ter candidato à Presidência da República, muito menos ocupar efetivamente o posto. O partido se especializou em venda de apoio parlamentar a qualquer governo disposto a pagar o preço de mercado. Para que a empresa funcione com eficiência, o partido não pode ter programa unificado. Muito menos pode ter uma direção que consiga diretamente interesses de grupos internos organizados. O papel da direção do PMDB é administrar como puder interesses conflitantes e mesmo contraditórios. A maneira que encontrou foi estabelecer cada grupo no seu quadradinho, arbitrando disputas de cercas entre os diferentes grileiros de terras para evitar brigas de faca em público.
Ocupar a Presidência ameaça desequilibrar todo esse complexo arranjo. Para governar, quem ocupa a Presidência precisa efetivamente ter controle e domínio sobre seu próprio partido. Do contrário, não tem base para governar. O único filiado do PMDB que ocupou o cargo foi José Sarney, que morava de favor no partido e que não governou de fato.
Até o momento, Temer não deu mostras de aceitar uma posição relativamente sarneyizada. Tampouco conseguiu convencer o cartel de empresas de venda de apoio parlamentar instalado no Congresso de que um arranjo com ele na Presidência será menos prejudicial do que tudo ficar como está. O impasse do impeachment não está nem na debilidade do governo Dilma nem na indigência da oposição formal. Está uma vez mais no jeito pemedebista de existir e de operar. Daí a gangorra semanal do "agora vai, agora fica".
Temer só conseguirá convencer sem guerra o partido que preside de que o impeachment será benéfico caso se comprometa concretamente com sua própria sarneyização. O nome que encontrou até agora para isso foi "semiparlamentarismo". Só que ainda não colou. Temer não é o Sarney de 1985. Sua longa carreira política foi feita no PMDB e há 15 anos preside o partido.
Temer até agora ou fez de mais ou de menos, mas não o necessário para provocar de vez o disparo da boiada do impeachment. Talvez porque ache que o afastamento da presidente é questão de tempo, talvez por não querer abdicar da Presidência antes mesmo de assumi-la. Mas o fato é que em dois diferentes momentos deu provas de querer mais do que o PMDB pode lhe dar.
Fez demais em agosto do ano passado, quando, cabelos em desalinho, resolveu decretar o fim do governo de que participa e se colocou na posição de unificador do país. Alguns meses depois, entrou em negociação com o PSDB para a montagem do ministério de seu futuro governo, escanteando grande parte do próprio partido. A reação do PMDB foi rápida e, como sempre, liderada pelo presidente do Senado. Renan Calheiros ameaçou apeá-lo da presidência do partido. Como sempre, Renan ameaça guerra total para conseguir que seja mantida a divisão de quinhões do PMDB. Daí também ser o líder de algo como metade do partido.
Temer fez de menos desde que o impeachment foi reativado, em fevereiro de 2016. Resolveu vestir o modelito Itamar Franco e se colocar no pedestal de futuro líder de um governo de "união nacional". Queria que a Presidência lhe caísse no colo para depois começar a negociar a divisão do butim. A velha história do "vocês me conhecem, sabem que vou ser generoso com todo mundo". A reação das ruas acabou com a fantasia. E o PMDB apenas repercutiu o mau passo. Foi aí também que o PSDB caiu fora.
Apesar do óbvio fracasso da encenação, Temer insistiu. Quis não apenas antecipar a decisão do PMDB sobre permanecer ou não no governo. Quis o impossível, exigiu unanimidade na decisão de desembarcar. Novamente, o alarme de Renan soou. "Unanimidade" e "PMDB" são como água e óleo, não se misturam. Negociou com Temer uma "aclamação", evitando um racha aberto. Renan não só não foi à reunião do partido que decidiu pelo desembarque como depois declarou que a decisão foi precipitada. E passou a organizar a resistência à saída do PMDB do governo.
Pode-se dizer que o histórico fala a favor de um novo acordo entre Temer e Renan para que o impeachment se imponha. O problema é que este é um caso totalmente diferente de todos os outros. De um lado, é um acordo que exige certa sarneyização de Temer. De outro, a Presidência, para ser exercida com alguma autonomia, exige que o futuro presidente tenha controle e domínio sobre seu partido. E isso faz com que um acordo esteja longe de ser óbvio nesse caso. Depois que Temer tiver a caneta presidencial, que acordo vai controlar o fluxo de tinta?
Se não houver acordo entre Temer e Renan, o PMDB vai partir para uma guerra interna inédita. O movimento é tão surpreendente que mesmo a foice da Lava-Jato foi posta em suspenso pelos exércitos em formação de ataque. A configuração futura do partido vai se dar com mortos, feridos e muito sangue, quem quer que vença.
Assim como governo e oposição, também Temer é em boa media um espectador. A verdadeira queda de braço se dá entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros. Temer é quase um joguete nessa disputa. Cunha aposta na guerra e está confiante em conseguir 372 votos a favor do impeachment. Vai fazer com o impeachment o que vem fazendo com todo o resto: aprova a bomba na Câmara e depois joga a granada sem pino de segurança no colo do Senado. E, se isso acontecer, a capacidade de resistência de Renan se verá consideravelmente diminuída.
O futuro do impeachment poderá ser lido nas próximas movimentações de Temer e de Renan. Se o atual vice-presidente entrar em negociação com o presidente do Senado e alcançar um acordo, o impeachment é certo. Se partir para a guerra, o resultado será o esmagamento de uma metade do PMDB pela outra, com grandes chances de uma secessão. E a vitória de um dos lados significará nada menos do que o prevalecimento do impeachment ou sua derrota.
É claro que as ruas podem fazer a balança pender para um lado ou para outro. Mas elas não apontam em um sentido evidente. É a típica situação em que o sistema político vai decidir conforme sua lógica própria. E essa lógica, como sempre, é a do PMDB.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (04/04/16)
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