Não é porque João Santana está preso em Curitiba que Dilma Rousseff deixaria de usar pesquisas de opinião para orientar seus movimentos. A pecha de "traidor" colou em Michel Temer. Como colou a ideia de que o quase-presidente vai chegar lá "no tapetão". Foi assim que o slogan do "golpe" se espalhou para além da base que defendeu o mandato da presidente. Daí a tolerância para que Dilma exerça o direito de espernear. Daí também o receio do entorno de Temer de que a esperneança vire capacidade efetiva de resistência. Foi assim que, em ano de Olimpíada no país, o circo de horrores do impeachment bananeiro saiu em tournée para o mundo todo poder admirar.
Só que tudo isso nada tem que ver com apoio para que Dilma fique ou retorne. Reconhecer o direito da vítima de espernear não muda o fato de que o "traíra" ganhou a parada. O raciocínio é de um cruel realismo: a manobra foi registrada e não foi bonita, mas também não se vê como o resultado poderia ser revertido. O risco é Dilma confundir as duas coisas, direito de espernear com chances de retomar seu mandato. Se fizer isso, vai esticar a corda para além do prazo que lhe foi dado para se retirar com alguma dignidade. Do ponto de vista dos movimentos que resistem ao impeachment e à posse de Michel Temer na Presidência, o que está em causa é já o futuro, é a reorganização da esquerda na oposição ao novo governo e não mais o governo Dilma.
Tornou-se obrigatório para quem apoiou o impeachment externar horror e repulsa ao lixão da política. Tornou-se obrigatório falar em governo de união nacional e em um ministério de notáveis. Como se um ministério limpinho pudesse conferir ao quase-presidente a legitimidade que seu governo não teria, aplacando consciências e, principalmente, as urnas em futuras eleições. Temer não se recusa a representar a pantomima. Pelo contrário, posa de Itamar Franco precursor do Plano Real. Faz o discurso da unidade e se desdobra para dar a impressão de que está batalhando sem tréguas para trazer para o governo os melhores quadros, independentemente de partidos.
E aí faz exatamente o contrário. Quando janta com Arminio Fraga, quem está presente é o presidente do PSDB, Aécio Neves. Quando se encontra com Henrique Meirelles, na cadeira ao lado está Gilberto Kassab, o presidente do partido a que o ex-presidente do Banco Central está filiado, o PSD. Temer está em busca de acordos partidários e não de pretensos avalistas de seu futuro governo. Temer não precisa de fiadores.
Como presidente da República, vai se comportar da mesma maneira que como presidente do PMDB. Vai dividir o governo segundo os feudos existentes e exigir lealdade formal dos vassalos, só efetivamente cobrada em casos extremos, conforme manda a praxe. Só entrará em campo para resolver disputas de cercas entre feudos. O tal presidencialismo de coalizão que se diz ter vigorado no país por mais de duas décadas vai parecer um parlamentarismo sueco perto do presidencialismo de feudalização que será implantado a partir de maio.
Em governos anteriores, tentou-se com maior ou menor sucesso estabelecer pelo menos um cordão sanitário que mantivesse ao abrigo da feudalização áreas como a econômica, a da saúde ou da educação. Eram áreas consideradas estratégicas dentro de um projeto de governo mais ou menos coerente e coeso. No novo modelo, esse tipo de restrição não irá mais vigorar nem haverá unidade de projeto facilmente identificável.
Mas haverá coerência e unidade na política econômica, condição de sobrevivência do futuro governo. O único feudo inegociável é o da boca do cofre. O novo Joaquim Levy, tenha ele agora o nome de Henrique Meirelles ou outro, terá efetivamente poder sobre a área econômica. Não terá mais de lutar com a própria sombra para implementar a velha nova política de ajuste. A única limitação é calibrar o garrote para tentar evitar explosões sociais incontroláveis. Foi esse o principal legado de 2015 para o governo Temer.
É certo que os feudos terão muito menos recursos com a tesoura da Fazenda funcionando efetivamente. Todo mundo terá de se contentar com pouco. Mas é bem melhor do que nada. Alguma previsibilidade voltará ao cenário partidário. No fundo, a adesão do sistema político ao impeachment se deu porque os partidos já não tinham mais poder efetivo sobre os seus próprios quinhões de governo. Sob Dilma, a paralisia tinha tomado conta da administração. Ninguém conseguia mais ajustar minimamente os gastos de seus feudos às necessidades do ciclo eleitoral. A opção por Temer, por arriscada que fosse, permitia o restabelecimento de um planejamento político mínimo, o que o governo Dilma já não podia mais oferecer.
Para quem apoiou o impeachment, é impossível se distanciar do futuro governo Temer. O máximo a que se pode aspirar é fazer discursos pedindo que o lixão da política se transforme em aterro sanitário, é dar declarações em favor da implantação de alguma coleta seletiva. Mas não é possível dizer que nada tem que ver com o futuro governo. Querendo ou não, quem apoiou o impeachment tem seu destino político colado ao do governo Temer.
Quase todos os partidos demonstram ter plena consciência desse desdobramento. A grande exceção continua a ser o PSDB, que faz como se não fosse com ele. Antes da votação na Câmara, o partido declarou apoio não apenas ao impeachment, mas a um futuro governo Temer. Sua responsabilidade pelo atual estado de coisas é maior do que a de qualquer outro partido pró-impeachment. Dizer que não pariu o governo Temer e querer que outros o embalem não vai livrar a cara em 2018. Aderindo ou não ao futuro governo, o muro tucano desmoronou, juntamente com o próprio PSDB.
Parece perda de tempo se ocupar com a decisão que o partido tomará no dia 3 maio sobre seu posicionamento em relação ao governo Temer. O PSDB é o último a poder dizer que não sabia de nada, que foi traído e que agora está chocado com a imagem de corpo inteiro de um governo do PMDB. O que de fato a foto mostra é que o PSDB precisa muito mais de Temer do que Temer do PSDB.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (25/04/16)
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