Sempre acho curioso quando escuto, no debate público, alguém encher a boca para falar nas “escolhas da sociedade”. Ainda nesta semana li um artigo dizendo, com alguma pompa, que caberá à sociedade distribuir os custos do Estado na reforma tributária. Indo mais longe, cansei de assistir a gente boa dizendo que, nos anos 1980, a sociedade fez uma “opção pela democracia” e, nos anos 1990, pelo fim da inflação.
Por esta lógica, nos anos 2000, a sociedade fez uma opção pela responsabilidade fiscal, e logo depois uma opção por não levar a sério a responsabilidade fiscal. Houve a opção por um breve ciclo de reformas, no início do governo Lula, e depois a opção por reforma nenhuma. A sociedade decidiu criar os “campeões nacionais” via BNDES e decidiu fazer as Olimpíadas e a Copa do Mundo aqui nos trópicos. No fim, decidiu pôr fim à festa, trocar o governo e criar a regra do teto de gastos.
É evidente que isso é uma fantasia. No mundo real da política, escolhas são feitas no mercado político, a partir do jogo de interesses e capacidade de pressão de diferentes grupos sociais. É mais ou menos isso que o James Buchanan, ganhador do prêmio Nobel de economia, chamava de “política sem romance”.
De um modo muito geral, a regra é a seguinte: grupos bem organizados, com interesses concentrados, tendem a ganhar o jogo; grupos maiores, inorgânicos e com interesses difusos, tendem a perder.
É o que vimos na reforma da Previdência. Corporações públicas garantiram regras especiais, enquanto a ampla classe média, do setor privado, e a turma do andar de baixo foram para a regra geral. É evidente que a retórica aceita tudo. No limite, qualquer coisa pode ser justificada, a partir do argumento vago e flexível do “interesse público”. Na prática, a competição no mundo retórico segue as mesmas regras da competição dos interesses no mundo político.
O que vem emergindo no Brasil atual e ficou bastante claro nesta semana é a atuação explícita do sistema político, feito pelos partidos e políticos, no Congresso, como um tipo especial de corporação. O novo protagonismo do Congresso tem dessas coisas. Ele é democrático e positivo para a condução de reformas, mas também funciona para a criação de regras de autoproteção do sistema político.
Tudo isso não é propriamente novo. A novidade é a escala. Ao longo do ano, vimos o Congresso aprovando uma reserva orçamentária de até 1% para a execução das emendas coletivas ao Orçamento. Depois, a Lei do Abuso de Autoridade, e logo a chamada Lei das Fake News, uma das mais explícitas ameaças à liberdade de expressão já criadas no Brasil. Cidadãos que compartilharem notícias falsas, contra políticos, em época eleitoral, estarão sujeitos à cadeia.
Ainda agora veio a tentativa de aumentar o fundão eleitoral na proposta orçamentária para 2020. Com apoio, diga-se de passagem, de gente boa no mundo intelectual, que parece sinceramente acreditar que um mar de dinheiro público concentrado nos grandes partidos e políticos detentores de mandato possa tornar mais justa a competição eleitoral.
Finalmente, chegamos às mudanças das regras eleitorais. O projeto passou na Câmara de modo relativamente discreto, mas foi perdendo força no Senado. Contratar advogados e pagar multas eleitorais com o dinheiro do fundo de campanha, flexibilizar regras de prestação de contas, introduzir o critério de dolo para penalizações eleitorais. Tudo que se discutiu, exaustivamente, na semana. A atuação corporativa e a autoproteção do sistema político parecem ter passado do limite tolerável.
A partir daí, surge um fenômeno que vale ser estudado. Um debate árido, como as regras eleitorais, sai do Congresso e ganha reverberação pública. Da mídia especializada, o assunto migra para o universo digital e forma uma onda de opinião. Onda difusa, marcada pelo elemento caótico e raivoso do mundo das redes. Mas tremendamente eficiente.
Alguns já deram o nome de “quinto poder” a esse tipo de movimento. É um novo ator, na democracia digital. Ele é, por definição, reativo e efêmero. Não formula pautas de longo prazo, apenas reage. Seu foco, em geral, são temas éticos. Pode funcionar para o bem ou para o mal, andar à esquerda ou à direita, não importa.
Dizer que ele expressa o “sentimento da sociedade”, como escutei em meio à polêmica, seria uma nova ingenuidade. Ele é um tipo novo de grupo de pressão, essencial como freio e contrapeso ao mundo profissional da política. Essencial para responder à questão tão bem formulada por Norberto Bobbio: quem controla os controladores?
Folha de S. Paulo/19 de setembro de 2019
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