A censura a uma revista em quadrinhos ordenada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, e a censura a um livro didático ordenada pelo governador de São Paulo, João Doria, ambos na semana passada, são os episódios mais recentes da batalha travada por fanáticos religiosos contra o moinho de vento da ideologia de gênero.
Acreditando defender a família tradicional de uma ameaça inexistente, nossos modernos cavaleiros templários violam direitos civis e criam obstáculos concretos ao combate ao preconceito.
Segundo teóricos católicos, a "ideologia de gênero" seria um conjunto de teses adotadas por feministas para transformar as diferenças biológicas entre os sexos em uma construção social com o objetivo de promover o homossexualismo e o transexualismo, destruir a família tradicional e reduzir a natalidade.
O documento fundador dessa excêntrica tese, apresentado na Conferência Episcopal do Peru, em 1998, está reagindo à adoção da "linguagem de gênero" na 4ª Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, em 1995.
Desde então, lideranças católicas e, em seguida, evangélicas se convenceram de que os movimentos feminista e LGBT estão numa campanha sorrateira para sexualizar as crianças e perverter sua orientação e identidade sexual.
Embora os documentos que alimentam essa teoria da conspiração citem corretamente artigos de correntes feministas radicais, eles supõem que essas posições minoritárias e irrelevantes sejam a verdade oculta do feminismo e do movimento LGBT e que, portanto, ações promovidas por esses grupos, como a educação sexual de adolescentes, campanhas contra a violência de gênero e a promoção do respeito à diversidade, são apenas formas dissimuladas de promover a "ideologia de gênero".
Onde os ativistas buscam incentivar o respeito e reduzir os alarmantes índices de violência contra mulheres, gays, lésbicas e transexuais, os fanáticos vêm apenas perversão pedófila com a perniciosa intenção de levar crianças inocentes a desvios monstruosos.
Embora o radicalismo que tomou a cúpula das igrejas cristãs alegue que sua intenção não é promover a discriminação, mas proteger a família, eles têm sistematicamente bloqueado ações contra a intolerância e o preconceito.
Assim como os antissemitas precisam apenas de pistas esparsas reunidas arbitrariamente para enxergar uma conspiração judaica cristalina, também nossos soldados das guerras culturais acreditam ver sob o inocente véu da defesa da diversidade o malévolo projeto feminista de acabar com a família e com a própria presença humana no planeta Terra.
(*) Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Folha de S. Paulo/10 de setembro de 2019
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