Ninguém precisava dos tuítes de Carlos Bolsonaro — que é Jair Bolsonaro — para saber que a mentalidade bolsonarista considera a democracia liberal representativa um entrave ao projeto de poder autocrático que o presidente encarna; e que, portanto, estimula seus agentes a investir contra os marcos institucionais que a animam. É preciso desqualificá-los; apregoá-los como fortalezas a serviço do establishment.
Não tardaria, pois, até que se divulgasse um programa de cadastramento para militantes bolsonaristas — um mecanismo de arregimentação para as milícias digitais, difundido explicitamente como um plano de adesão para a luta política concreta, em função não de abstrações ideológicas, mas do nome, do governante, do projeto. Trata-se de uma nova etapa, aquela em que se estabelece o critério da fidelidade personalista e acrítica; o que equivale a chamar o gado de gado. Sim. Já vimos esse filme.
Não faço aqui, porém, um alerta para o risco de uma ditadura conforme o modelo clássico do século XX. Não. O bolsonarismo não se move para fechar Congresso, empastelar jornais ou interditar eleições. Nem para reproduzir o modelo lulopetista de assalto e aparelhamento de instituições fortes, a serem assim mantidas, quando não anabolizadas, para servir ao financiamento do programa autoritário do partido. Não.
Sob a lógica da geração permanente de conflitos e crises, o bolsonarismo não opera para tomar, ocupar e cultivar instituições pujantes, mas para miná-las, desacreditá-las, enfraquecê-las, submetê-las. A captura do corpo do Estado pela revolução reacionária bolsonarista depende de o edifício estar condenado, tão de pé quanto corroído. Vivo, mas sem peso para dar equilíbrio.
O bolsonarismo funda-se na falácia de que o sistema político é uma estrutura vigorosa pervertida, voltada para si, para benefício da elite dirigente, o que torna igualmente pervertido o valor de conservar as instituições que lhe dão materialidade. A mentalidade bolsonarista é uma personalidade revolucionária. Sua porção reacionária, entretanto, preserva a linguagem rompedora, que toca o berrante do tribalismo, tanto quanto guia o rebanho para a postura religiosa da descrença, daí por que as tantas convocações do povo, dos fiéis, às ruas: para reforçar que o líder carismático pode se comunicar aos seus — governá-los — sem os outros poderes, os intermediários, aqueles que atentam contra o espírito do tempo consagrado nas urnas e que devem ser submetidos ao império do voto majoritário.
Não terá sido outra a inspiração para os ataques coordenados contra o Parlamento e o STF, entendidos pelo bolsonarismo como corporações de bandidos, sindicatos do crime; instituições cujas existências significariam não a garantia republicana de proteção aos indivíduos e de balanço entre forças, mas a perpetuação de redes de dominação da sociedade para que intacto reste o status quo .
Mas, nesta altura, aqui no mundo real: quem dominará quem?
Em maio, por exemplo, operadores bolsonaristas — com a chancela do presidente — convocavam para protestos em prol da CPI da Lava Toga, uma palhaçada inócua com intuito de investigar os tribunais superiores, destacadamente o Supremo. O circo já então servia para ilustrar como o bolsonarismo age, manipulando pautas e gentes conforme a estratégia da nova corte. Quando era conveniente engrossar o caldo das manifestações antiestablishment, importava incorporar e inflar a agenda popular lavajatista. Naquela altura, o processo de domesticação de Sergio Moro, subjugado pelo bolsonarismo, parecia significar também a submissão do lavajatismo, enfim esvaziado e minguante. Só que não.
E então, neste setembro, no susto, o bolsonarismo percebeu — com notável atraso — que o lavajatismo, parceiro eleitoral decisivo, controla o aparelho de Estado em influentes porções de órgãos como Polícia Federal, Receita Federal e Coaf. Esta é a razão por que de súbito se opôs à tal CPI — uma atividade que só fortaleceria o braço lavajatista.
A defesa de Flávio Bolsonaro, em decorrência de um especulado acordo de preservação firmado com Toffoli etc., é preocupação lateral. O objetivo bolsonarista consiste em tirar autonomia e ter a rédea desses instrumentos; e não para proteger os seus, mas para intimidar e atacar os outros. Nesta guerra, sem dúvida cultural, o bolsonarismo se lança contra a concorrência lavajatista no domínio de ferramentas estatais de fiscalização, investigação e inteligência — e sabe que está atrás. É uma briga entre projetos autocráticos de poder; o do lavajatismo, em termos de natureza, muito parecido com o lulopetista, dedicado a preencher e robustecer os organismos que quer controlar.
A ver se se medirão também em 2022.
O Globo/17 de setembro de 2019
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