Sim, aos poucos, quase sem nos darmos conta, em meio ao caos aparente e à polarização política, que parece não ter fim, estamos construindo um novo regime político. Não é o fim da democracia. Trata-se de sua redefinição, da construção de padrões diferentes de exercício democrático do poder. E, na minha opinião, poderá ser melhor do que o regime vigente antes da crise.
Com efeito, três “fatores” que ajudaram a produzir a crise política vêm sendo paulatinamente transformados: o financiamento da representação política, as relações do Executivo com o Legislativo e o Judiciário e a ação do Estado sobre a economia, que se mundializa.
Graças à Lava Jato foram postos à luz os mecanismos pelos quais empresas e representantes políticos se associavam para captar recursos públicos para enriquecimento privado e financiamento de campanhas eleitorais. A par de penalizar parte dos envolvidos, os agentes dessa operação, segmentos do Ministério Público e do Judiciário e parte importante dos meios de comunicação converteram tais descobertas em alavanca para estigmatizar como corrupta a “política tradicional”. Isso teve consequências políticas dramáticas. Prejudicou partidos e lideranças políticas relevantes para o regime democrático de 1988 e favoreceu a eleição do outsider Bolsonaro para a Presidência da República.
Em meio a isso – e sob pressão popular –, começou-se a produzir o novo. Os Poderes constituídos produziram iniciativas reformistas que principiaram a deixar para trás a democracia de 1988. Já em setembro de 2015 o STF declarou inconstitucional o financiamento empresarial das eleições e em 2016 o Congresso supriu essa perda com um aumento de financiamento público, além de outras mudanças nas regras eleitorais. Reduziu-se, assim, um dos estímulos institucionais à corrupção política, eliminando o vínculo antes necessário entre candidatos e empresas. As eleições de 2018 já se realizaram sob as novas regras, demonstrando que se está no bom caminho para enfrentar a corrupção.
O Congresso vem atuando também sobre o outro lado do processo de corrupção política, criando um novo sistema para as licitações públicas – mais competitivo e menos sujeito a manipulações que o anterior. A tramitação legislativa ainda não terminou. Mas talvez se possa dizer, com certo otimismo, que falta pouco para o Legislativo secar duas das fontes institucionais que estigmatizaram como corrupta a democracia de 1988, dando alicerces melhores ao sistema político.
Outro impulso para a crise política, a exacerbação do voluntarismo presidencial, decorreu do uso “imperial” das possibilidades dadas ao chefe de Estado pela Constituição de 88. Os governos eram de coalizão partidária, mas o presidente tinha grande espaço de manobra no Congresso graças ao poder de emitir medidas provisórias (MPs), de fazer nomeações e distribuir de verbas públicas a parlamentares. Na crise que vivemos, a reação do Congresso ao voluntarismo do Executivo começou no governo Dilma. O Legislativo tornou obrigação do Executivo pagar as emendas dos parlamentares ao Orçamento. Dilma teve de promulgar essa reforma em 2015.
Com Bolsonaro, o voluntarismo do chefe assumiu uma forma distinta, a de “recusar-se às negociações” inerentes ao presidencialismo de coalizão. Este voluntarismo ao revés foi, de início, motivo de reclamações. Mas aos poucos deu lugar à ocupação pelo Congresso do espaço antes controlado pelo Executivo. Primeiro, o Orçamento tornou-se impositivo também para as emendas das bancadas parlamentares estaduais, deixando de ser objeto das negaças do Executivo. Em segundo lugar, discute-se agora a reforma da legislação que regula a tramitação das MPs, para dar maior tempo para o Senado decidir sobre elas e menor para o Executivo negociar com os parlamentares, sob pena de ter vê-las derrubadas antes de chegarem ao Senado. Terceiro, o Legislativo também vem negociando alterações legais na forma de funcionamento do STF, de modo a restringir as possibilidades de decisões judiciais monocráticas – não colegiadas – quando estiverem em jogo leis de relevância constitucional. Há no próprio STF projeto para reformar seus procedimentos. Isso reduziria muito as controvérsias, hoje frequentes, sobre as decisões do Supremo.
No que diz respeito às políticas do Estado na área da economia, o governo Temer introduziu alterações-chave nos padrões vigentes até o impeachment da presidente Dilma. Duas têm especial relevo.
Reverteu-se o padrão anterior de gastar sem obedecer aos limites da arrecadação, ao arbítrio do Executivo, introduzindo o chamado “teto de gastos”, fixado por determinado período, e regras para a boa gestão das empresas estatais (além de promover a recuperação das principais empresas). A gestão econômica comandada por Paulo Guedes desde janeiro parece querer radicalizar a gestão econômica do governo Temer e produzir uma guinada liberal forte nas relações Estado-economia, revertendo a orientação nacional-desenvolvimentista do primeiro governo Dilma.
Talvez, mais adiante, certo radicalismo fiscalista da política do ministro seja amainado, dada a estagnação da economia, por iniciativas de estímulo à atividade. De toda forma, a política de concessões na infraestrutura e a de venda maciça de participações em subsidiárias das empresas estatais indicam uma reestruturação decisiva, em prol de uma sintonia maior das relações do Estado com a economia capitalista, que se mundializa.
As iniciativas apontadas esboçam de modo cada vez mais nítido um novo regime político, ainda que sob a teia de disputas políticas, de polarizações desmedidas e de invasões de competência entre os Poderes. Em relação ao de 1988, o novo regime tende a ser menos dependente de interesses privados específicos, a ter um Legislativo mais autônomo, um Executivo menos poderoso e um STF com decisões menos contestáveis. Que esse esboço se materialize.
(*) Titular de sociologia da USP, é professor visitante da UNIFESP
O Estado de S.Paulo/ 22 de agosto de 2019
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