sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Bolivarianismo de direita (Pablo Ortellado)

Em seu pronunciamento à Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro deve criticar duramente o regime de Nicolás Maduro. O antagonismo, porém, não deveria nos impedir de ver que o plano dos bolsonaristas mais radicais, sob influência de Olavo de Carvalho, é uma espécie de bolivarianismo de direita.
Olavo tem grande ascendência sobre a família Bolsonaro, sobretudo sobre os filhos do presidente, e influi no planejamento do Planalto por meio de Filipe Martins, assessor da Presidência e discípulo dileto do Rasputin de Campinas.
O diagnóstico dos olavistas no governo é que ocupar a Presidência da República não confere poder suficiente para efetivar as mudanças necessárias, dada a carregada inércia de instituições como o Parlamento e o Judiciário e dado o fato de que instituições formadoras de valores, como universidades, museus e a imprensa, estão atravessadas por ideologia esquerdista.
Por esse motivo, vemos no governo um movimento duplo: de um lado, a tentativa de controlar ou submeter as instituições; de outro, o engajamento do governo federal nas guerras culturais.
Olavo não esconde sua predileção por uma "democracia plebiscitária", de incitação contínua da cidadania, consultas diretas ao povo mobilizado e uso regular de pronunciamentos em cadeia nacional de rádio e TV.
Outros acreditam que a melhor estratégia seria submeter as instituições, ampliando, por exemplo, a composição do STF ou antecipando as aposentadorias dos ministros.
Além disso, seria necessário combater e desfazer anos de enraizamento do "marxismo cultural", travando nas instituições formadoras de valores uma "guerra cultural".
Isso se daria de duas maneiras. Por um lado, ocupando posições chave com quadros ideologicamente alinhados, como se vê na indicação de reitores nas universidades. Quando isso não for possível, a estratégia parece ser asfixiar o orçamento das instituições, como se quer fazer no cinema e como já se faz com as universidades, com os jornais e com as ONGs ambientalistas.
Nada, no entanto, é mais preocupante do que o esforço de Olavo de Carvalho de doutrinar as forças policiais. Desde julho, discípulos de Olavo estão contatando policiais em todo o país para oferecer a eles acesso grátis ao curso online de filosofia do pensador que ainda não formou juízo sobre o formato do planeta.
Instituições completamente submetidas ao Poder Executivo, instituições formadoras de valores controladas ideologicamente e milícias armadas prontas para defender o regime. O plano dos bolsonaristas radicais não poderia ser mais parecido com a Venezuela de Maduro.
Folha de S. Paulo/ 24 de setembro de 2019

Bolsonarismo versus lavajatismo (Carlos Andreazza)

Não serei eu a duvidar daquilo por que é investigado o senador Fernando Bezerra Coelho. Nenhuma probabilidade de crime, porém, tornará menos grave o conjunto de barbaridades jurídicas — obra chancelada por Luís Roberto Barroso — em que consistiu a excursão policial a endereços relativos ao líder do governo no Senado; inclusive, e não à toa, dentro do Parlamento.
O que dizer de um ato de busca e apreensão que pretenda coletar, em 2019, documentos relativos a suposto recebimento de propina ocorrido no período entre 2012 e 2014? O que, qual mísero papel, se poderia querer encontrar, para robustecer provas, tantos anos depois? Qual seria o objetivo dessa excursão que não mais um arreganho na cruzada autocrática que mina a institucionalidade do país? Qual, senão jogar para a galera em mais um espetáculo de criminalização artificial da atividade política?
O que houve — qual o fato novo — que possa sustentar, fora do terreno das intenções políticas, essas medidas cautelares? Como justificar esses mandados, sem ver os dentes de uma Polícia Federal que se quer com leis próprias, se os fatos investigados são antigos, já amplamente conhecidos, e se a Procuradoria-Geral da República havia se manifestado contrariamente ao pleito da PF? A PGR foi explícita a respeito: a expedição teria “pouca utilidade prática”.
Ocorre que desde há muito — desde que o lavajatismo se espalhou como um poder dominador de extensos setores de órgãos estatais —, a utilidade prática deixou de ser critério decisivo para operações policiais. O bolsonarismo se beneficiou imensamente dessa onda. Com Bolsonaro eleito, pensou que poderia transformá-la em marola e enquadrá-la na própria piscina. Agora, com a piscina cheia de ratos, experimenta o caixote.
Fernando Bezerra Coelho — repito — é (ainda é) líder do governo Bolsonaro no Senado. Foi contra essa condição — a de líder do governo Bolsonaro — que agiu a PF. Para dar nome aos contendores e qualificar a chicana jacobinista autorizada por Barroso: a ação contra o senador teve tanta validade legal quanto possa ter um golpe na rinha que opõe os outrora parceiros bolsonarismo e lavajatismo.
O lavajatismo — que elegeu Bolsonaro — desafia Bolsonaro. Desafiado, Bolsonaro — que se iludiu sobre incorporar o lavajatismo — está ainda sob efeito do susto de haver descoberto que há outro fenômeno autoritário já enraizado na máquina e com ganas para o mesmo projeto bolsonarista: o de controlar o aparelho investigativo de Estado.
É a batalha que se trava neste momento; e o bolsonarismo está (e sabe) bem atrás. Barroso é o lavajatismo. Sergio Moro é o lavajatismo. O presidente tentou — avaliou que poderia — submeter o mecanismo lavajatista abarcando e depois esvaziando o ex-juiz. Não funcionou. Articulou, com sucesso, para que lhe tirassem o Coaf. Mas o Coaf, atual UIF, continua sob gestão de Moro — porque o troço foi tomado pelo lavajatismo. Bolsonaro pode humilhar Moro, minguar Moro. Não pode, contudo, livrar-se de Moro; não sem incalculável prejuízo político. Moro sabe. E fica. Moro ficará mesmo se sair, talvez mesmo rindo do senador Bezerra, para quem o ex-juiz seria esquecido 60 dias depois de ido.
Seria mesmo o caso de especular sobre quem precisa mais de quem. Moro de Bolsonaro. Ou Bolsonaro de Moro. Não é resposta fácil. Seria o caso também, pois, de refletir sobre se será mesmo o ministro o sujeito politicamente inábil que se apregoa por aí; ou se outra coisa não será — dane-se a política — que a personalidade autoritária perfeitamente imune à fritadeira bolsonarista.
Não faz muito, o presidente foi para cima do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. Era ele o senhor da caneta, o chefe. Um ataque também ao ministro da Justiça. Bolsonaro —com notável atraso – havia compreendido que a autonomia da PF se convertera, sob a influência lavajatista, em flerte com o Estado policial. Não que a mentalidade bolsonarista seja hostil ao Estado policial. O problema, para o bolsonarismo, é um Estado policial do qual não tenha as rédeas.
O presidente reagiu; tentou emparedar Moro. Subiu o tom publicamente: podia trocar superintendentes da PF e demitir o diretor-geral. Valeixo, então, recolheu-se em férias estratégicas. Voltou — e continuou no cargo. Parecia uma vitória de Bolsonaro, a permanência do delegado entendida como submissão à agenda do presidente, a PF baixando a bandeira de seu Estado independente.
Parecia...
Veiculou-se, faz pouco, que, em conversa logo após a investida da PF contra o senador Bezerra, Bolsonaro teria perguntado a Moro sobre se o órgão estaria fora de controle. O ministro nega que tal diálogo tenha ocorrido; mas me é impossível não conjecturar sobre o que teria pensado diante da questão: “Fora do controle de quem, capitão?”
O Globo/24 de setembro de 2019

Alinhamento político-ideológico reduz o custo político (Alon Feuerwerker)

O custo orçamentário, para o governo, de aprovar as mudanças na previdência social está sendo significativo. O Palácio do Planalto vem executando o orçamento relativo às emendas parlamentares na medida necessária para para fazer passar “a mãe de todas as reformas”. Mas o custo político é baixo, baixíssimo. O que em outras circunstâncias seria objeto de escândalo (“compra de votos!”) desta vez é deglutido sem maior dificuldade.
A constatação não chega a ser nova. A governabilidade de Jair Bolsonaro é sólida pois o núcleo da agenda governamental, o programa econômico liberal, tem o apoio de pelo menos dois terços do Congresso, é quase unânime no empresariado e continua bem sustentado na esmagadora maioria da imprensa. Daí por que as “crises” vêm, parecem por um instante terminais, e logo viram poeira. Ou fumaça. Como foi com a mais recente, dos incêndios florestais. Olha o trocadilho.
Há, é claro, mercado para os projetos em torno de um liberalismo bem-educado e cosmopolita, autointitulado progressista, e daí as versões repaginadas do Velho do Restelo, a advertir que tudo vai dar errado. Para esse “bolsonarismo sem Bolsonaro”, o país estaria à beira do caos, se já não mergulhado nele. Mas a cada episódio o que leva jeito de tsunami na opinião pública, quando chega à praia de Brasília fica mais com cara de marolinha.
Inclusive por esse cosmopolitismo arejado chocar-se com a linha nacionalista, ainda que fortemente ocidentalista, hegemônica nas Forças Armadas. A polêmica amazônica comprova.
Outro aspecto reforça a resiliência governamental. O partido mais forte capaz de lhe fazer oposição, com ramificações sólidas e profundas nas diversas instâncias de poder, está isolado. O aqui livremente chamado de Partido da Lava Jato (PLJ) mantém musculatura e apoio popular, pode inclusive continuar produzindo fatos político-policiais em série, mas sua capacidade de alterar a correlação de forças operacional está contida por causa do isolamento.
Mais um mérito (ou demérito) da agenda econômica.
O caráter consensual da agenda, mais o amplo espectro dos alvos do PLJ, mais a objeção a que o PLJ provoque uma disrupção (e viva os anglicismos e neologismos) num quadro tão produtivo, tudo induz a um alinhamento raro entre os poderes, pelo menos desde a instalação da hoje carcomida Nova República. O estilo do presidente da República é uma linha de produção de manchetes, mas na vida prática os vetores executivo, legislativo e judiciário produzem boa resultante.
Onde estão os riscos? Principalmente 1) na nova modalidade de enquadramento do Legislativo pelo Executivo e 2) na sede de protagonismo do braço judiciário do PLJ. Se a velocidade da recuperação da economia e dos empregos seguir baixa, quanto tempo o Congresso levará para voltar a exigir o dito loteamento da Esplanada e das estatais? E até onde irão os torquemadas dos tribunais, especialmente nos superiores, para revitalizar o próprio protagonismo, hoje corroído?
No instável presidencialismo brasileiro, onde a pulverização do Congresso é um foco permanente a ameaçar a saúde política do ocupante do Planalto, é sempre bom ficar esperto. Mas por enquanto as coisas para o governo caminham bastante bem nesse terreno.
22 de setembro de 2019

Reforma política ou magno latrocínio? (Roberto Romano)

No regime tirânico o dirigente “despreza as leis da natureza, abusa das pessoas livres como se elas fossem escravas, e dos bens dos governados como dos seus” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, II). Desde longa data levo uma batalha inglória na mídia e em setores acadêmicos, mas sempre termino derrotado pelo equívoco que define certa palavra filosófica. Falo do cinismo.
É incrível a pirueta lógica sofrida em milênios por essa forma de agir e pensar. A doutrina cínica apresenta-se nos teóricos da ética e da moral como via de virtude. Elogiada pelas mais finas mentes ocidentais, ela ganhou má fama entre os hipócritas e demagogos que dominam multidões. Exemplo de elogio dirigido aos cínicos? O padre Vieira: “Os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: ‘Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos’. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas!” (Sermão do Bom Ladrão). Diógenes, o cínico, recebe merecidas loas de Vieira.
Além da crítica à hipocrisia de quem rouba e condena a corrupção, algo comum na História da humanidade, os cínicos ensinam virtudes de cidadania e paz social. Sem amizade (philia) não existe coletivo humano. Se imperam as paixões da lisonja, inveja, ignorância com ataques entre pessoas, some o trato civil, reina a guerra de todos contra todos. Além do respeito mútuo, é preciso, pensam os cínicos, que os indivíduos pratiquem a disciplina da mente e do corpo. Quem não depende de favores corruptos nada teme, pode falar sobre todos os pontos controversos da ordem pública. O discurso livre não se sujeita à riqueza ou poder, não se dobra à massa dos que seguem partidos hegemônicos. O mesmo Diógenes ficou célebre com a seguinte frase: “Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se não disse uma bobagem”. Em tempos de internet, quando todos, do simples funcionário ao presidente da República, buscam aplausos para suas falas de ódio ou desprezo contra os que pensam de modo diferente, os cínicos são uma ausência dolorosa.
Passemos aos fatos da nossa República. Nela são chicoteados os que roubam barras de chocolate, mas passam incólumes os que abusam dos bens públicos em proveito próprio. A chamada “reforma política” brasileira seria alvo certo dos bons cínicos, pois nela a hipocrisia atinge níveis inéditos na crônica política. Em vez de se adequarem ao republicanismo, os legisladores (?) brasileiros se aproveitam do cargos para aumentar o tesouro partidário com recursos subtraídos da educação, saúde, ciência, tecnologia, segurança. Mudam os nomes das agremiações, mas o seu funcionamento interno continua sob controle de burocratas e oligarcas que açambarcam os cofres, as eleições, as coligações, as traições recíprocas.
Quantos políticos agem e pensam como cínicos? Quase nenhum. Quem, num instante de crise econômica, social e política aproveita seus poderes para enriquecer cofres partidários em prejuízo da vida civil não é cínico. Seu título foi dado por Diógenes e, depois, por Vieira em saboroso latim: laterones! Manobras legislativas de hoje podem permitir enorme aumento nos dinheiros eleitorais em prol dos partidos políticos (Câmara aprova ‘brecha’ para aumentar valor do fundo eleitoral, Estado, 4/9). Como diria Diógenes, “lá vão...”.
Em entrevista à TV Câmara (5/9/2014), indiquei os elementos polêmicos da suposta reforma política. Entre eles o fato conhecido por analistas, poderosos ou simples militantes: nossos partidos reúnem o pior do mando oligárquico, unido a uma burocracia carcomida, e a quase ninguém representam. Por armadilhas legais eles se transformam em feudos de grupos que tudo controlam, dos cofres às candidaturas, alianças, propaganda, etc. Ocorre neles algo similar ao que se passa em ligas futebolísticas e atléticas nacionais: a cartolocracia. Além do controle absoluto de cartolas sobre a vida partidária, não existe nela democracia interna. Inexistem eleições primárias, as indicações de candidaturas se fazem em ambientes fechados onde poucos decidem.
Como resultado, a gerontocracia domina os comitês, entradas de novos quadros dirigentes se dão em regime de conta-gotas. A juventude é alheia e hostil aos partidos, dirigentes permanecem por décadas e décadas, enrijecendo o controle partidário.
Não é por falta de assessorias e reflexões técnicas que a suposta reforma seguiu no rumo do pior. Existem trabalhos especializados que mesmo agora podem ser úteis. Leia-se o documento substancioso A Proposta de Reforma Política: Prós e Contras (disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema3/2004_14292.pdf).
A indecência de engordar o fundo partidário na hora em que os laboratórios e bibliotecas universitários estão ameaçados, hospitais deixam de cumprir seu mister, a insegurança grassa não é cinismo. É tirania, como afirma Bodin, que ajudou a edificar o Estado moderno. E por falar em Estado vale o dito de Santo Agostinho: “Remota itaque iustitia, quid sunt regna nisi magna latrocinia?” (Sem a justiça, que outra coisa são os reinos senão grandes latrocínios?). Respondam os que usam a mítica reforma política em favor de sua tirania.
O Estado de S.Paulo/22 de setembro de 2019

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Lula livre (Demétrio Magnoli)

O STF examinará, logo mais, as condenações impostas a Lula. Hoje sabemos, graças à Vaza Jato, que os processos tinham cartas marcadas. O conluio entre Estado-julgador e Estado-acusador violou as leis que regulam o funcionamento do sistema de Justiça. A corte suprema tem o dever de preservar o Estado de Direito, declarando a nulidade dos julgamentos e colocando o ex-presidente em liberdade.
Lula livre. Evito adicionar o clássico ponto de exclamação porque, sob a minha ótica, Lula é politicamente responsável pela orgia de corrupção que se desenrolou na Petrobras.
A corrupção lulopetista nasce de uma tese política elaborada, em versões paralelas, por José Dirceu e Luiz Gushiken. O PT, no poder, deveria modernizar o capitalismo brasileiro, encampando o programa que uma “burguesia nacional” submissa ao “imperialismo” recusava-se a conduzir. Lula converteu a tese em estratégia, articulando a aliança entre empresas estatais, fundos de pensão e setores do alto empresariado privado que reativaria nosso capitalismo de Estado. Numa segunda volta do parafuso, parte da renda gerada pelo mecanismo financiaria o projeto de poder, assegurando ao lulopetismo uma maioria parlamentar estável e a hegemonia perene na arena eleitoral.
O mecanismo corrupto provocou uma erosão nos alicerces da democracia. Lula e o PT devem ser julgados por isso, mas no tribunal certo, que é o das urnas.
Não creio em bruxas. Do Planalto, Lula avalizou pessoalmente a colonização de diretorias da Petrobras por agentes do PT, do PMDB e do PP que aplicaram as regras do jogo da corrupção, distribuindo contratos ao cartel de empreiteiras e cobrando propinas destinadas tanto a seus amos políticos quanto a formar patrimônios próprios.
A promiscuidade entre o presidente e as empreiteiras estendeu-se para além das fronteiras nacionais, gerando contratos corruptos, financiados pelo BNDES, com governantes amigos na América Latina e na África. Lula beneficiou-se diretamente do mecanismo, por meio de palestras no exterior patrocinadas pelas empreiteiras. Nelas, um ex-presidente que detinha a palavra final no governo da sucessora traficava influência, trocando seus bons ofícios por remunerações milionárias.
Segundo minha convicção, o tribunal dos eleitores não cobre toda a responsabilidade de Lula. Acho que ele deve responder perante a lei por uma cadeia de atos de corrupção que lhe propiciaram benefícios políticos e materiais. Mas, felizmente, na esfera jurídica, o que eu penso —e o que você, leitor, pensa— não tem valor nenhum. No Estado de Direito democrático, juízes independentes ignoram o “clamor popular”, escrevendo sentenças embasadas na lei e informadas por um processo delimitado por formalidades que protegem os direitos do réu. Fora disso, ingressamos no mundo da Justiça politizada, que é o de Putin, Erdogan e Maduro.
Sergio Moro agiu como juiz de instrução italiano, uma espécie de coordenador dos procuradores —mas no Brasil, onde inexiste essa figura, não na Itália, onde um juiz diferente profere a sentença. Batman e Robin. Moro e Dallagnol, comparsas, esculpiram juntos cada passo do processo, nos tabuleiros judicial e midiático. No Partido dos Procuradores, milita também a juíza Gabriela Hardt, que copiou a sentença de Moro para fabricar a do sítio —e que, num trecho original de sua peça plagiária, trata José Aldemário Pinheiro e Leo Pinheiro, nome e apelido da testemunha-chave, como pessoas distintas.
Batman, Robin e cia merecem sentar no banco dos réus sob a acusação de fraudar o sistema de Justiça. Lula livre, não por ele ou pelo PT, mas em defesa de um precioso bem público, de todos nós, ao qual tantos brasileiros pobres precisam ter acesso: o Estado de Direito. Que o ex-presidente seja processado novamente, segundo os ritos legais, e julgado por magistrados sem partido.
Folha de S. Paulo/21 de setembro de 2019

O antes sem o depois (José de Souza Martins)

Não há grande diferença, na forma que as demarca e limita, entre a orientação ideológica de Jair Messias e a de Luiz Inácio. Há entre elas diferenças, e outras serão reveladas com o passar do tempo e a consciência social e política de suas respectivas fragilidades governativas. Aquilo que não cabe no que deveria ser um governo propriamente dito.
Luiz Inácio via mais, mas a ideologia das certezas definitivas o fazia ver “torto”. Jair Messias também vê torto, mas vê menos, na incerteza errante de sua ideologia do inacabado e inacabável. O que os aproxima é que ambos têm como referência de suas visões de mundo o passado. Mas passados de cronologias diferentes.
O calendário de Luiz Inácio é pretensioso, começa no descobrimento do Brasil. O Brasil do “nunca antes neste país” é o nunca antes de quem governa olhando para trás, comparando-se com os instantes ultrapassados de um país que se transformou profundamente ao longo dos 500 anos de sua história. Nesse longo período histórico, Lula só vê o negativo de um país que, aparentemente, estava à espera da sua chegada ao poder para transformar os pobres em classe média. De certo modo, a religiosidade do próprio povo brasileiro o transformou em profeta que veio vingar as maldades e omissões do rei, do poderoso, do Estado. Coisa de um povo que ainda espera o retorno do rei dom Sebastião para salvá-lo.
O calendário de Jair Messias também é linear e destemporalizado. É o do contratempo, o do tempo sem história e sem historicidade, sem a premissa do futuro, o tempo de uma nota só. O do governante que governa em nome do passado, mas outro passado, mais curto. O do Brasil que deveria ter parado no término da Segunda Guerra Mundial e no começo da Guerra Fria. Não o Brasil da luta contra o nazismo e o fascismo, como na batalha de Fornovo di Taro, na Itália, a da rendição de uma divisão alemã inteira às tropas brasileiras. O Brasil que deu o sangue e a vida dos expedicionários da FEB, no sacrifício ritual dos combates pelos direitos do homem.
Muitos daqueles expedicionários adormeceram no silêncio da brisa da campina do cemitério brasileiro de Pistoia. Pedaço da pátria lá longe, onde ainda hoje tremula nossa bandeira, a bandeira da lembrança, não a bandeira do esquecimento da história, não a das mistificações ideológicas. Lá, o Brasil combateu a direita, que hoje aqui se exalta, combateu o genocídio bestial dos campos de concentração e dos fornos crematórios nos quais a condição humana foi transformada em cinzas.
O tempo do Brasil da era de Jair Messias é outro e curto, diverso do de Luiz Inácio, começa e acaba na Guerra Fria. É o da guerra ideológica, não a guerra de soldados de verdade em defesa da pátria e da condição humana. É o tempo da governação contra o passado antagônico ao que deseja, visto desde uma janela de quartel. De quem veio para vingar o que ele supõe ter sido o injusto fracasso do regime militar. Enche de generais a máquina do Estado, o que é interessante apenas na medida em que, no geral, os altos oficiais das Forças Armadas já não são os herdeiros tardios do tenentismo, os atores do golpe de 1964. O regime que então implantaram não teria feito o “serviço” completo, a repressão plena, o silenciamento absoluto das vozes das diferenças sociais, da pluralidade social e da consciência crítica e esperançosa. São os generais de outro momento da história, o da abertura política e da conciliação.
Até aqui, as falas e ações do governante vão no sentido de uma vontade de poder cujo objetivo é atrelar o futuro a um passado de quartel, aquartelar as novas gerações num presente sem futuro. O mesmo da guerra perdida num passado obscurantista e sem glória. Nas guerras sempre se perde, mesmo ganhando. Pelo que destroem, as guerras mudam as sociedades em nome das quais são feitas.
O Brasil que saiu do regime de 1964 não foi o Brasil que os militares quiseram criar. As iniquidades cometidas, como a tortura, a supressão de vidas, a prisão dos discordantes e dos opositores, apenas indicaram a estreiteza de visão dos vencedores. Como agora, combateram meros e inúteis rótulos para matar ideias que não conheciam. Tinham medo da liberdade, do cidadão, dos que trabalham e dos que pensam. Combateram não em nome da pessoa, mas pela precedência da riqueza privada, livrando-a da precedência da pessoa em relação à coisa.
Luiz Inácio e Jair Messias parecem diferentes, mas são o eterno retorno ao mesmo, à reprodução sem inovação. Sísifo no esforço inútil de subir a montanha da história, a de nossas adversidades sociais e políticas, para cair e reiniciar a busca sem fim. Ambos não sabem, mas são patronos de um Brasil que parte sempre e não chega nunca.
Valor Econômico/20 de setembro de 2019

O dilema democrático de Bolsonaro (Fernando Abrucio)

Quase toda semana o presidente Jair Bolsonaro, um de seus filhos ou algum membro importante do seu séquito fala uma frase que coloca em questão o ideário democrático desse grupo político. Obviamente que há valores autoritários que alimentam a visão bolsonarista de mundo, mas é preciso admitir também que se trata de um projeto de poder que tem várias dúvidas quanto aos caminhos a seguir e com quem se aliar para atingir seus objetivos. No fundo, o bolsonarismo enfrenta um grande dilema: é possível articular a relação entre instituições políticas e mobilização social?
Embora Bolsonaro tenha desde o início de sua carreira política optado pela via eleitoral, ficando quase 30 anos no Parlamento, ele sempre teve uma relação atribulada com as instituições democráticas. Basta lembrar que ele propôs o fechamento do Congresso, o fuzilamento de um presidente (Fernando Henrique Cardoso) e se nunca se destacou no partido no qual ficou mais tempo. Era um membro do baixo clero que xingava o establishment e as práticas democráticas, mas que a cada quatro anos concorria ao posto de deputado federal.
As manifestações de junho de 2013 iniciaram um processo de enorme crítica ao sistema político estruturado desde a queda de Fernando Collor, ao que se somaram posteriormente a polarizada eleição de 2014, a Operação Lava-Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e o governo impopular de Michel Temer. Foi neste contexto que Bolsonaro radicalizou sua aposta antissistema, organizando-se durante quatro anos com setores sociais que não estavam no jogo institucional. As redes sociais foram peça-chave nesse modelo mobilizador, mas também houve ação presencial feita em todo o país.
O bolsonarismo, ademais, ganhou o apoio na eleição presidencial de outros grupos que estavam nas ruas desde 2013. Tais organizações tinham em comum o fato de se declararem de direita e de lutarem contra o PT e a corrupção. Essa aliança ficou mais clara e forte no segundo turno, mas já apareceu em alguma medida desde o início, uma vez que uma parte dessas lideranças disputou postos eletivos pelo partido do presidente, como foram os casos de Joice Hasselmann e Carla Zambelli.
Aqui começa a transmutação e o dilema democrático de Bolsonaro e dos grupos que o acompanharam. Mais especificamente no caso do presidente, ele teve de escolher um partido para concorrer ao posto máximo da nação e, para quem não lembra, namorou várias legendas, inclusive com a possibilidade de fazer alianças com partidos mais tradicionais - aqueles que são dominados pela “velha política”. No fim das contas, ficou numa agremiação partidária menor, aliada a outra nanica, com a promessa de que dominaria o partido de cabo a rabo.
É um absurdo dizer que Bolsonaro não esperava ganhar as eleições. Uma visão como essa é ingênua ou subestima o sucesso político da estratégia bolsonarista em meio à crise do sistema político e ao fortalecimento do antipetismo. Outra coisa é afirmar que o bolsonarismo e seu líder maior não tinham a menor ideia de como governar o país e o desafio que enfrentariam para lidar com as instituições democráticas. Isso sim aponta o roteiro pelo qual temos passado nos últimos meses.
Discursos contra a “velha politica”, manifestações de rua, ações que realçam o líder solitário contra os poderosos, tudo isso e mais outras coisas vêm sendo utilizadas desde o início do mandato. Não obstante, o que salvou o governo atual de não ser abortado logo cedo foram os atores institucionais e algum grau de articulação com as instituições e seus atores-chave, seja para salvar o senador Flávio Bolsonaro de uma investigação maior, seja para evitar medidas contrárias ao governo.
Com a necessidade de fazer a máquina funcionar, de manter o poder da família - como na indicação do filho Eduardo para a embaixada nos Estados Unidos - e de evitar estragos maiores advindos do Parlamento, o presidente tem apostado cada vez mais numa articulação institucional ad hoc, caso a caso.
Essa estratégia é duplamente problemática. De um lado, porque insere-se de forma ambígua, quando não esquizofrênica, no jogo institucional. Permite que os senadores indiquem nomes para alguns cargos, que deputados sejam mais autônomos nas suas decisões, mas não cria um sistema estável de governança, que só poderia ser obtido com algum tipo de coalizão partidária.
E, por outro lado, mantem ainda um conjunto de ações e de discursos contra a ordem institucional e os grupos com maior poder de voto e veto no sistema presidencialista atual. É bem verdade que Bolsonaro cada vez menos consegue mobilizar a sociedade para manifestações de rua em seu apoio, mas ele ainda tem um exército bolsonarista nas redes sociais, em algumas igrejas evangélicas e em outros estratos corporativos (como caminhoneiros e policiais).
De todo modo, o fato é que os bolsonaristas estão com dificuldades de navegar em ambas as esferas de forma coordenada. Claro que a crise desse grupo político em relação à democracia tem um forte componente normativo. Basta lembrar que o bolsonarismo tem apoiado censura, perseguição a inimigos e outros comportamentos francamente autoritários. Porém, do ponto de vista do poder, o maior problema está em lidar com a dinâmica institucional juntamente com o modelo mobilizador que os congrega.
Dois exemplos realçam esse dilema. O primeiro é mais conjuntural e o segundo, estrutural, pois envolve como o presidente sairá das eleições municipais para enfrentar os desafios da segunda parte do mandato.
O primeiro dilema diz respeito à forma como Bolsonaro tem tentado evitar o peso das instituições de controle sobre seu governo e, especialmente, sobre o núcleo duro do poder - sua família e o séquito mais próximo. A intervenção na Polícia Federal e na Receita Federal, a escolha de um procurador-geral da República chapa-branca, bem como a articulação contra a chamada CPI da Toga são peças claras de um jogo destinado a reduzir a fiscalização sobre bolsonaristas no poder.
Para alcançar esse objetivo, cede-se algum poder aos que antes compunham o que Bolsonaro intitularia de “sistema”. Se Temer ou o PT estivessem fazendo isso, obviamente seriam chamados de corruptos ou algo pior pelos bolsonaristas. Complementarmente, abandona-se ou, no mínimo, se reduz a ênfase no discurso de limpeza do sistema político. Parte dos que apoiaram o presidente já perceberam essa mudança.
Disso pode resultar a redução do tamanho social daquele conjunto de apoiadores que foram decisivos na construção do sucesso eleitoral.
Afinal, por quanto tempo aqueles que chamaram o antigo (não o atual) Sérgio Moro de super-herói vão suportar o engavetamento geral de tudo aquilo que possa colocar em risco o núcleo duro do poder? O lavajatismo vai aceitar ser sepultado para salvar o bolsonarismo?
Esse dilema foi claramente constatado por Olavo de Carvalho, um dos gurus do bolsonarismo. Em vídeo publicado recentemente, ele disse que a politica, embora dependa das ideias, é fundamentalmente a escolha do grupo ao qual se pertence contra o inimigo que se quer vencer. Trata-se da definição de Carl Schmitt da política. Trocando em miúdos, o pensador radicado na Virginia avisou que o momento é de lutar pelo presidente Bolsonaro, o que pode significar abandonar alguns ideais pelo caminho, tudo em nome de um objetivo maior contido num projeto de poder.
Olavo de Carvalho percebeu que as contradições do governo Bolsonaro aumentaram e isso está levando a uma maior divisão dos grupos de direita que o apoiaram. Sua fala realça que não se deve agora abandonar o barco em nome de pruridos em torno da luta mais firme contra a corrupção. Os inimigos são outros, como o PT, a imprensa e a universidade. Contra estes e sua capacidade de internacionalizar os erros do governo, algo perigoso para a própria manutenção do projeto de poder, o fundamental é multiplicar os militantes bolsonaristas. Só uma coisa não ficou clara nesta proposta: esses militantes entrariam no PSL ou ficariam basicamente em organizações extrapartidárias para defender o presidente?
Surge aqui o maior dilema democrático do bolsonarismo. Ao longo do próximo ano haverá as eleições municipais. Historicamente, elas são o divisor de águas dos mandatos presidenciais. Se Bolsonaro tiver um resultado muito ruim ou apenas regular, seu projeto de poder começa a se enfraquecer no dia seguinte da contagem dos votos. Para evitar isso, ele precisa investir na organização do front eleitoral. Por enquanto, no entanto, o PSL é uma bagunça e o séquito mais próximo do mito-capitão só cria brigas com aliados. A direita bolsonarista tende a se transformar em mais de um grupo se não houver clareza quanto a objetivos e métodos de divisão do poder. Além disso, de que maneira a via institucional vai lidar com os que querem arregimentar uma militância extrainstitucional, quase revolucionária?
O mais espantoso no momento não são as frases antidemocráticas dos líderes bolsonaristas. Essas existem faz muito tempo. O que chama a atenção, de forma impressionante, é a enorme falta de articulação de ideias e de caminhos institucionais do bolsonarismo para as próximas eleições municipais. Caso não corrija esse problema, Bolsonaro não terá como se fortalecer nem pela rota das instituições nem pela via da mobilização social. E não adiantará depois reclamar da democracia.
Valor Econômico/20 de setembro de 2019

O quinto poder e as regras eleitorais (Fernando Schüler)

Sempre acho curioso quando escuto, no debate público, alguém encher a boca para falar nas “escolhas da sociedade”. Ainda nesta semana li um artigo dizendo, com alguma pompa, que caberá à sociedade distribuir os custos do Estado na reforma tributária. Indo mais longe, cansei de assistir a gente boa dizendo que, nos anos 1980, a sociedade fez uma “opção pela democracia” e, nos anos 1990, pelo fim da inflação.
Por esta lógica, nos anos 2000, a sociedade fez uma opção pela responsabilidade fiscal, e logo depois uma opção por não levar a sério a responsabilidade fiscal. Houve a opção por um breve ciclo de reformas, no início do governo Lula, e depois a opção por reforma nenhuma. A sociedade decidiu criar os “campeões nacionais” via BNDES e decidiu fazer as Olimpíadas e a Copa do Mundo aqui nos trópicos. No fim, decidiu pôr fim à festa, trocar o governo e criar a regra do teto de gastos.
É evidente que isso é uma fantasia. No mundo real da política, escolhas são feitas no mercado político, a partir do jogo de interesses e capacidade de pressão de diferentes grupos sociais. É mais ou menos isso que o James Buchanan, ganhador do prêmio Nobel de economia, chamava de “política sem romance”.
De um modo muito geral, a regra é a seguinte: grupos bem organizados, com interesses concentrados, tendem a ganhar o jogo; grupos maiores, inorgânicos e com interesses difusos, tendem a perder.
É o que vimos na reforma da Previdência. Corporações públicas garantiram regras especiais, enquanto a ampla classe média, do setor privado, e a turma do andar de baixo foram para a regra geral. É evidente que a retórica aceita tudo. No limite, qualquer coisa pode ser justificada, a partir do argumento vago e flexível do “interesse público”. Na prática, a competição no mundo retórico segue as mesmas regras da competição dos interesses no mundo político.
O que vem emergindo no Brasil atual e ficou bastante claro nesta semana é a atuação explícita do sistema político, feito pelos partidos e políticos, no Congresso, como um tipo especial de corporação. O novo protagonismo do Congresso tem dessas coisas. Ele é democrático e positivo para a condução de reformas, mas também funciona para a criação de regras de autoproteção do sistema político.
Tudo isso não é propriamente novo. A novidade é a escala. Ao longo do ano, vimos o Congresso aprovando uma reserva orçamentária de até 1% para a execução das emendas coletivas ao Orçamento. Depois, a Lei do Abuso de Autoridade, e logo a chamada Lei das Fake News, uma das mais explícitas ameaças à liberdade de expressão já criadas no Brasil. Cidadãos que compartilharem notícias falsas, contra políticos, em época eleitoral, estarão sujeitos à cadeia.
Ainda agora veio a tentativa de aumentar o fundão eleitoral na proposta orçamentária para 2020. Com apoio, diga-se de passagem, de gente boa no mundo intelectual, que parece sinceramente acreditar que um mar de dinheiro público concentrado nos grandes partidos e políticos detentores de mandato possa tornar mais justa a competição eleitoral.
Finalmente, chegamos às mudanças das regras eleitorais. O projeto passou na Câmara de modo relativamente discreto, mas foi perdendo força no Senado. Contratar advogados e pagar multas eleitorais com o dinheiro do fundo de campanha, flexibilizar regras de prestação de contas, introduzir o critério de dolo para penalizações eleitorais. Tudo que se discutiu, exaustivamente, na semana. A atuação corporativa e a autoproteção do sistema político parecem ter passado do limite tolerável.
A partir daí, surge um fenômeno que vale ser estudado. Um debate árido, como as regras eleitorais, sai do Congresso e ganha reverberação pública. Da mídia especializada, o assunto migra para o universo digital e forma uma onda de opinião. Onda difusa, marcada pelo elemento caótico e raivoso do mundo das redes. Mas tremendamente eficiente.
Alguns já deram o nome de “quinto poder” a esse tipo de movimento. É um novo ator, na democracia digital. Ele é, por definição, reativo e efêmero. Não formula pautas de longo prazo, apenas reage. Seu foco, em geral, são temas éticos. Pode funcionar para o bem ou para o mal, andar à esquerda ou à direita, não importa.
Dizer que ele expressa o “sentimento da sociedade”, como escutei em meio à polêmica, seria uma nova ingenuidade. Ele é um tipo novo de grupo de pressão, essencial como freio e contrapeso ao mundo profissional da política. Essencial para responder à questão tão bem formulada por Norberto Bobbio: quem controla os controladores?
Folha de S. Paulo/19 de setembro de 2019

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A democracia como empecilho (Carlos Andreazza )

Ninguém precisava dos tuítes de Carlos Bolsonaro — que é Jair Bolsonaro — para saber que a mentalidade bolsonarista considera a democracia liberal representativa um entrave ao projeto de poder autocrático que o presidente encarna; e que, portanto, estimula seus agentes a investir contra os marcos institucionais que a animam. É preciso desqualificá-los; apregoá-los como fortalezas a serviço do establishment.
Não tardaria, pois, até que se divulgasse um programa de cadastramento para militantes bolsonaristas — um mecanismo de arregimentação para as milícias digitais, difundido explicitamente como um plano de adesão para a luta política concreta, em função não de abstrações ideológicas, mas do nome, do governante, do projeto. Trata-se de uma nova etapa, aquela em que se estabelece o critério da fidelidade personalista e acrítica; o que equivale a chamar o gado de gado. Sim. Já vimos esse filme.
Não faço aqui, porém, um alerta para o risco de uma ditadura conforme o modelo clássico do século XX. Não. O bolsonarismo não se move para fechar Congresso, empastelar jornais ou interditar eleições. Nem para reproduzir o modelo lulopetista de assalto e aparelhamento de instituições fortes, a serem assim mantidas, quando não anabolizadas, para servir ao financiamento do programa autoritário do partido. Não.
Sob a lógica da geração permanente de conflitos e crises, o bolsonarismo não opera para tomar, ocupar e cultivar instituições pujantes, mas para miná-las, desacreditá-las, enfraquecê-las, submetê-las. A captura do corpo do Estado pela revolução reacionária bolsonarista depende de o edifício estar condenado, tão de pé quanto corroído. Vivo, mas sem peso para dar equilíbrio.
O bolsonarismo funda-se na falácia de que o sistema político é uma estrutura vigorosa pervertida, voltada para si, para benefício da elite dirigente, o que torna igualmente pervertido o valor de conservar as instituições que lhe dão materialidade. A mentalidade bolsonarista é uma personalidade revolucionária. Sua porção reacionária, entretanto, preserva a linguagem rompedora, que toca o berrante do tribalismo, tanto quanto guia o rebanho para a postura religiosa da descrença, daí por que as tantas convocações do povo, dos fiéis, às ruas: para reforçar que o líder carismático pode se comunicar aos seus — governá-los — sem os outros poderes, os intermediários, aqueles que atentam contra o espírito do tempo consagrado nas urnas e que devem ser submetidos ao império do voto majoritário.
Não terá sido outra a inspiração para os ataques coordenados contra o Parlamento e o STF, entendidos pelo bolsonarismo como corporações de bandidos, sindicatos do crime; instituições cujas existências significariam não a garantia republicana de proteção aos indivíduos e de balanço entre forças, mas a perpetuação de redes de dominação da sociedade para que intacto reste o status quo .
Mas, nesta altura, aqui no mundo real: quem dominará quem?
Em maio, por exemplo, operadores bolsonaristas — com a chancela do presidente — convocavam para protestos em prol da CPI da Lava Toga, uma palhaçada inócua com intuito de investigar os tribunais superiores, destacadamente o Supremo. O circo já então servia para ilustrar como o bolsonarismo age, manipulando pautas e gentes conforme a estratégia da nova corte. Quando era conveniente engrossar o caldo das manifestações antiestablishment, importava incorporar e inflar a agenda popular lavajatista. Naquela altura, o processo de domesticação de Sergio Moro, subjugado pelo bolsonarismo, parecia significar também a submissão do lavajatismo, enfim esvaziado e minguante. Só que não.
E então, neste setembro, no susto, o bolsonarismo percebeu — com notável atraso — que o lavajatismo, parceiro eleitoral decisivo, controla o aparelho de Estado em influentes porções de órgãos como Polícia Federal, Receita Federal e Coaf. Esta é a razão por que de súbito se opôs à tal CPI — uma atividade que só fortaleceria o braço lavajatista.
A defesa de Flávio Bolsonaro, em decorrência de um especulado acordo de preservação firmado com Toffoli etc., é preocupação lateral. O objetivo bolsonarista consiste em tirar autonomia e ter a rédea desses instrumentos; e não para proteger os seus, mas para intimidar e atacar os outros. Nesta guerra, sem dúvida cultural, o bolsonarismo se lança contra a concorrência lavajatista no domínio de ferramentas estatais de fiscalização, investigação e inteligência — e sabe que está atrás. É uma briga entre projetos autocráticos de poder; o do lavajatismo, em termos de natureza, muito parecido com o lulopetista, dedicado a preencher e robustecer os organismos que quer controlar.
A ver se se medirão também em 2022.
O Globo/17 de setembro de 2019

Movimento bolsonarista reflui e radicaliza (Celso Rocha de Barros)

O bolsonarismo como movimento político está refluindo, e Bolsonaro tenta compensar isso com golpe de Estado e uso da máquina.
Os bolsonaristas inteligentes sabem que a eleição de 2018 foi uma mistura de contingências que não devem se repetir: a facada, a desistência de outsiders como Joaquim Barbosa e Luciano Huck, a prisão de Lula, o casamento entre bolsonarismo e lavajatismo, o naufrágio das candidaturas ligadas a Temer. Essa onda atraiu as elites econômica e política para Bolsonaro nas últimas semanas do primeiro turno. Agora a onda refluiu e o sistema busca alternativas.
O voto puramente antipetista parece ter abandonado Jair. Sua taxa de aprovação é semelhante à proporção do eleitorado que o apoiava antes da disparada no primeiro turno.
É cada vez menos claro o que, exatamente, Bolsonaro tem a oferecer como programa econômico que seus concorrentes na direita não tenham. Suas únicas propostas que não estavam nos programas de Alckmin e Meirelles —a capitalização da Previdência e a CPMF— foram fracassos constrangedores. Se você gosta de ortodoxia econômica, é pouco provável que Bolsonaro seja sua única alternativa de voto em 2022.
A propósito, os dois principais governadores eleitos na onda bolsonarista —Doria e Witzel— já tentam se afastar de Bolsonaro.
E já não é mais possível para a centro-direita repetir o argumento de que Bolsonaro seria moderado pelas instituições, ou que o PT traria o mesmo risco à democracia. Não há nenhum outro político ou partido brasileiro que, se tivesse vencido, teria criado o mesmo risco permanente de golpe de Estado instaurado por Bolsonaro. Se o empresariado apoiar Bolsonaro de novo, sua ruptura com a democracia será consciente e final.
Mas mesmo os 25% de aprovação de Bolsonaro não são estáveis. A chance de Bolsonaro representar a Lava Jato de novo na eleição é zero. Já está claro que Bolsonaro está tendo muito mais sucesso em destruir as instituições de combate à corrupção do que seus antecessores.
Os procuradores da Lava Jato já denunciaram Bolsonaro como adversário. A permanência de Moro no ministério é cada vez mais constrangedora. Essa percepção mal começou a chegar à opinião pública.
Sobram os fanáticos de Olavo de Carvalho e Eduardo Bolsonaro, mas seu extremismo sobreviveu muito mal à atenção do público. Quando o Brasil parou para ler Olavo e escutar Eduardo, só sobrou vergonha. O olavismo só sobrevive como senha para conseguir cargos de segundo escalão nas áreas do governo controladas pelos extremistas.
Resta a máquina. O aparelhamento bolsonarista das instituições segue acelerado, e o uso da máquina contra os adversários do governo —em especial os de direita— mal começou. O esforço para cooptar mídia amigável é aberto e desavergonhado. É usando a máquina que o PSL espera conquistar mil prefeituras no ano que vem.
E é justamente porque o movimento está refluindo que Bolsonaro acelerou o golpismo. Em menos de dez dias tivemos o "levantar a borduna", os ataques à imprensa e o tuíte de Carlos Bolsonaro. Querem isolar seus militantes do noticiário e mantê-los radicalizados.
Não é o primeiro caso em que um movimento autoritário radicaliza quando começa a perder. O risco pode ter aumentado.
Folha de S. Paulo/16 de setembro de 2019

‘Maior trincheira da democracia é a Carta de 1988’ (Luiz Werneck Vianna/entrevista)

O sociólogo Luiz Werneck Vianna, da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUCRio), vê a democracia brasileira como se estivesse atrás de trincheiras. Se há risco de ruptura institucional, há também a reação de entidades para mantê-la protegida e imune a ataques. “A ameaça nos ronda, ela está presente em nós, mas foi identificada”, diz Werneck em entrevista ao Estado, em referência ao que chama de “capitalismo iliberal” no mundo.
“A defesa da democracia, que está contida no texto constitucional, é muito poderosa para ser removida”, completa ele, autor de livros sobre a formação política do País, como A Democracia e os três Poderes no Brasil.
A semana que precedeu este 15 de setembro, Dia Internacional da Democracia, foi marcada por intenso debate sobre o tema. A declaração do vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, de que “por vias democráticas” a transformação do País não acontecerá “na velocidade que almejamos” gerou críticas na Câmara, no Senado e do presidente em exercício, Hamilton Mourão.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu “esforço para impedir que a democracia morra”, enquanto o ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, defendeu a independência do Ministério Público – após Bolsonaro dizer que indicou Augusto Aras à Procuradoria-Geral da República (PGR) por seu alinhamento de ideias com o governo. Questionado sobre as reações, Carlos respondeu que sua frase foi mal interpretada.
Werneck vê essas manifestações como “resistência” a tentativas de se enfraquecer órgãos independentes e pilares da República. Ao Estado, ele enumerou o que considera sinais de resiliência da democracia no País.
Reação. “Acho que a resposta da nossa sociedade já foi dada”, diz o professor sobre a reação à mensagem postada pelo filho do presidente. Ele acredita que declarações que colocam em dúvida a validade do processo democrático têm sido rebatidas pela sociedade civil, por instâncias do Judiciário, do Congresso e do MP. “A maior trincheira que a democracia brasileira tem hoje é a Carta de 1988”, diz ele. “Ela tem uma concepção democrática muito forte, muito consistente, e que tem 30 anos de vida. Poucas constituições brasileiras duraram tanto.”
Partidos. Também parte da reação, segundo ele, seria uma eventual aproximação entre partidos de centro e de centro-esquerda. O objetivo neste caso seria se colocar como alternativa ao eleitor que não se identificaria mais com a polarização. “A fisionomia que isso vai assumir mais à frente ainda não está inteiramente definida. Mas se sabe o contorno”, ele diz. “O contorno é de um liberalismo progressista.”
Mundo. “Capitalismo iliberal” é a definição que Werneck e outros estudiosos da ciência política dão a linhas ideológicas que, segundo eles, uniriam Bolsonaro a outros líderes mundiais, como Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria, Boris Johnson no Reino Unido e Matteo Salvini na Itália, entre outros. Em comum, eles têm um discurso nacionalista e contra organismos internacionais. “Na Inglaterra, o (Boris) Johnson está emparedado. Na Itália, a tentativa de capitalismo iliberal, pelo menos por ora, foi varrida do mapa. Está lá uma coalizão de centro-esquerda”, diz. “Por falta de sustentação social, esses arautos do capitalismo iliberal, do tipo de (Steve) Bannon, não têm encontrado guarida”, diz ele sobre o ex-estrategista de campanha de Donald Trump nos EUA, que hoje coordena o grupo O Movimento, do qual o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) é representante no Brasil.
PGR. A indicação de Aras à PGR – visto no Ministério Público Federal como uma sinalização de que a escolha levou mais em conta o alinhamento com o governo – preocupa pouco o sociólogo. Ele lembra que Bolsonaro não é obrigado legalmente a escolher um nome da lista tríplice eleita por membros da entidade, e que Aras estará “sob estrita vigilância da sua corporação”. “Como ele vai poder operar em desconcerto com a esmagadora maioria da sua corporação? De algum modo, vai ser obrigado a atuar dentro de certos parâmetros constitucionais. Se violar, caberá a nós denunciar.”
Militares. “Acho que eles não vão cair em aventuras. Se o Mourão servir de termômetro para alguma coisa, eles não entrarão numa aventura liberticida.”
Tulio Kruse/O Estado de S. Paulo/15 de setembro de 2019