domingo, 27 de dezembro de 2015

Judiciário hiperativo, política em frangalhos (Marco Aurélio Nogueira)

A tragédia de Mariana – infame e perversa, tanto pelas causas quanto pela dimensão – fez par com a degradação do sistema político, a desmoralização de uma classe política e a corrosão de um estilo de governar. A cidadania foi convidada a assistir a um seriado que oscilou entre o trash, com cadáveres decepados e sangue na tela, e o drama trágico, em que um império se decompõe pedra após pedra à espera do herói encarregado da reconstrução. Só que o herói não se materializou.

A crise que destruiu um império erguido com suor e lágrimas começou antes de 2015. Seu início coincidiu com o mandato de Dilma Rousseff e com as primeiras rachaduras no bloco que sustentava os governos petistas, baseados numa esquisita aliança com o grande empresariado, alguns movimentos sociais e o PMDB. De 2011 para a frente, os resultados foram pífios, sobretudo na economia, na gestão pública e na política. Tudo contribuiu para tirar racionalidade e determinação da conduta governamental, que passou a seguir rotas sinuosas e improdutivas. A demolição chegou ao sistema político, que se rebaixou a níveis inimagináveis de mediocridade.

Um presidente da Câmara dos Deputados acusado de corrupção e quebra de decoro forneceu o parceiro ideal para uma presidente da República apática, sem liderança e cercada por um mar de corruptos e corruptores. Ampliou-se a presença funesta de um ministério sem plano de ação e de partidos sem viço.

O fim do ano chegou com o País paralisado, enredado na inflação e na recessão, vendo ameaçadas as conquistas sociais e em marcha batida para a desilusão. Governantes impotentes, incapazes de reagir à crise que se foi aprofundando, uma classe política que foge de suas responsabilidades básicas, a ausência dolorosa de um debate público vigoroso que desenhasse um mapa para o futuro, uma sociedade civil tensa e indignada, mas desarvorada: nada ajudou a abafar o fogo que passou a queimar em Brasília.

Em novembro, o presidente da Câmara – mal-amado por todos e suspeito no limite do razoável – decidiu ativar o impeachment da presidente. Disseram que teria agido por vingança, com o intuito de salvar a própria pele. Meia-verdade, pois a ideia do impedimento já havia cavado espaço na dinâmica política do País e veio com embalagem e assinaturas respeitáveis. O Congresso se converteu em praça de guerra, com direito a quebras de urnas, cantorias “patrióticas”, baixarias e tapas no plenário. O vice-presidente escreveu à presidente para reclamar do tratamento que vinha recebendo, tentando conter a sangria que subordinava parte do PMDB à Presidência. A legenda pôs a nu suas entranhas fraturadas, mas também mostrou que algum peso terá no processo do impeachment, caso ele venha a avançar.

Diante do caos que crescia, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mostrar que em política não há vácuo que perdure. Colocou todas as patas no centro do processo, distribuindo ordens e ritos. Judicializou tudo, dos procedimentos ao regimento interno da Câmara. Determinou até a prisão de um senador em pleno exercício do mandato. A política esfrangalhou-se de vez. A tensão e a incerteza cresceram, turbinadas, nas vésperas do Natal, pelo enterro do ministro da Fazenda, cuja morte estava anunciada desde o dia em que tomou posse, e pela sucessão de indicadores que mostravam a economia reduzida ao osso, com o PIB recuando 4%, a produção industrial regredindo, o desemprego batendo na casa dos 10%, a inflação ameaçando disparar.

Nenhuma conclusão. Tudo se transferiu para fevereiro, salvo as tempestades do verão. O impeachment, que poderia ter sido aproveitado como oportunidade para abrir nova fase política, com menos chantagens e um jogo mais limpo, logo foi catapultado para o velho e bom maniqueísmo: enquanto os governistas o vetavam como um “golpe contra a democracia”, os oposicionistas o convertiam na única saída possível, um dia do Juízo Final a partir do qual tudo seria diferente.

O ano termina com um clamor por transformações no modo de fazer política e de organizar o Estado. Os cidadãos não mais emprestam lealdade a um sistema que se mostra fechado em si mesmo. Querem participar, mas de outro modo, que ninguém sabe qual é.

Impossível continuar a dizer que a estrutura institucional vai bem, que o Judiciário manterá o País na linha, que corações valentes e guerreiros do povo brasileiro estão a ser criminalizados sem justificativa. A vida mudou, mas as práticas e as instituições da política não acompanharam a mudança. Sob certos aspectos, até mesmo se andou para trás: os partidos são uma pálida lembrança do que um dia já foram, os cidadãos não querem se organizar como comunidade política à moda antiga, o debate público é de uma indigência a toda prova, engessado pelos volteios do marketing e do discurso ideológico. E, se não há debate de qualidade, como é que o povo irá se engajar racionalmente nesta ou naquela direção?

O problema não é somente de liderança: o arranjo todo está defeituoso. A crise não resulta de uma reação da direita, de uma vingança dos derrotados de 2014 ou de um desejo sórdido do grande capital. O governo Dilma está fazendo água por seus próprios erros e escolhas, pelo déficit de articulação que sempre apresentou.

Algumas prisões e uma troca de comando ou de ministros podem ajudar a que se supere a crise num primeiro momento. Se o arranjo, porém, não for modificado, aquilo que eventualmente for eliminado pela porta da frente voltará pela porta dos fundos.

A melhor perspectiva para o ano novo é que a política democrática volte a falar mais alto, recomponha o Estado e institua um governo que imprima direção ao País.

Vestindo a roupagem do otimismo, que 2016 não seja tão ruim quanto se desenha: muitas vezes é preciso atingir o fundo do poço para que se consiga empuxo suficiente para voltar à superfície.

É professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais (Neai) da Unesp

Fonte: O Estado de São Paulo (26/12/15)

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