Na virada do século, um pensador italiano, de sólidas raízes no marxismo historicista de seu país, fez um repto a todos os que, do ponto de vista da esquerda, se obstinavam em continuar a pensar a transformação social. Segundo Giuseppe Vacca, o antagonismo direto entre blocos – uma realidade, se não simples, ao menos facilmente redutível a esquemas simplistas – ficara para trás. Dicotomias como capitalismo e socialismo, comunismo e anticomunismo já seriam chaves imprestáveis para decifrar o “mundo grande, terrível e complicado” que decorria da unificação da economia levada a cabo pela revolução neoconservadora então em curso.
De fato, se a força dos fatos abre caminho na vida real, mais lento é o processo de reconstrução das categorias com que são pensados. Vacca sugeria a necessidade premente de conceitos novos – e quem não se visse sequer tentado a abandonar trilhas já batidas estaria intelectualmente morto, condenado a repetir a mesma história que, em tese, também dava como morta. O sentido mais preciso desse tipo de análise consiste em advogar modos de pensar o conflito político que contemplem a unidade (na pluralidade) do gênero humano e o princípio da interdependência.
Comecemos por um lado do espectro, num esforço – de nossa parte – evidentemente autocrítico. Não raro, no universo comunista – fruto de gigantesca e disforme modernização de um país atrasado, a partir de 1917 –, afirmou-se a lógica bruta do confronto de vida e morte entre classes inconciliáveis, entre “amigos” e “inimigos do povo”, entre esquerda e direita. Nenhuma mediação, nenhuma busca de terreno comum com a matriz democrática, de que o marxismo é poderosa e desafiadora heresia, salvo, felizmente, em momentos especialmente dramáticos, como por ocasião das frentes antifascistas.
Esvaziou-se assim a possibilidade de ação hegemônica consistente, entendida como compreensão e assimilação das razões dos adversários e consequente proposição de padrões mais altos de civilização. Muito cedo – e talvez mais cedo do que habitualmente pensamos –, fixou-se a inferioridade cultural do socialismo, incapaz de se impor num século que seria “americano” ou, ainda, social-democrata. E já nos anos 1930 a social-democracia patrocinaria significativas experiências reformistas, antes ainda do compromisso keynesiano do pós-guerra a que em geral é associada.
Façamos um corte para os nossos dias. Nas condições da globalização neoliberal, que estabelece a interconexão das economias nacionais, unificando contraditoriamente toda a humanidade, desafios mais modestos – extraordinariamente mais modestos – surgiram “à esquerda” (as aspas não são recurso retórico). A ideia é que não se poderia mais contar com a social-democracia clássica, já rendida ao mercado. E o antagonismo à ordem liberal se transferiria para a América Latina, onde os governos nacional-populares, a partir de Hugo Chávez, materializariam uma ruptura radical ou pelo menos a perspectiva dessa ruptura, sugerindo uma globalização alternativa.
Este ciclo nacional-popular parece ter esgotado sua fase expansiva, como o demonstram as derrotas eleitorais do chavismo e do kirchnerismo, embora a saída de situações autoritárias não seja nunca fácil. Entre as razões de tal esgotamento se conta, não em último lugar, a reiteração da lógica amigo/inimigo, a deslegitimação das oposições, vistas como agentes do imperialismo ou encarnações da “direita”.
Manifestaram-se, em suma, as taras antipluralistas que arruinaram o socialismo real, ainda por cima agravadas por uma linguagem de “refundação” das sociedades a cargo de caudilhos de vocação “épica”. A elaboração de uma “contra-hegemonia”, a partir do Sul, tropeçou nas próprias pernas: o demônio imperialista, em geral, só compareceu para garantir a renda do Estado “revolucionário”, comprando barris de petróleo a preço de mercado. Muito pouco para o que se espera de um demônio, mais frágil ainda a elaboração da “contra-hegemonia”.
As complicações do mundo grande e terrível não param nos governantes da América Latina – e aqui se deve ir para pontos mais nevrálgicos do que o nosso continente relativamente esquecido. A lógica bipolar também frequenta o lado dominante da globalização, acirrando dramas que reconfiguram para pior, ao menos temporariamente, a “estrutura do mundo”. A demagogia populista arrasta ou pode arrastar velhas e provadas democracias – a extrema direita americana, estabelecida num dos dois tradicionais partidos, ou sua equivalente europeia, ambas à margem da vocação universalista do Ocidente, não têm instrumentos para dirigir a globalização ou responder aos males de modernizações interrompidas ou malsucedidas do antigo “Terceiro Mundo”. Um déficit hegemônico evidente.
Uma franja da esquerda busca pretexto no passado colonial para justificar o injustificável, da derrubada das torres de Nova York às chacinas de Paris. Mas a questão central são grupos dirigentes, como os que se afirmaram com George W. Bush, que não conseguem operar sem a presença real ou fantasmagórica do “inimigo total”. Em sua busca da “segurança absoluta”, própria, aliás, das tiranias do século 20, não só deflagram guerras preventivas de desfecho imprevisível, como a que, no Iraque, reacendeu tensões sectárias que ora deságuam em desconcertante califado, como também danificam a malha de direitos e liberdades que, só elas, dão sentido e força de atração às sociedades abertas.
Uma lição do século 20 é que os totalitarismos usaram como nunca a linguagem para incendiar a disputa política. Por essa trilha caminham agora os promotores da mercantilização da vida e os de uma reação fundamentalista de teor ideológico ou pseudorreligioso. Cabe aos democratas de todos os matizes afinar e definir as condições razoáveis do discurso público, em benefício geral.
(*) Luiz Sérgio Henriques é tradutor, ensaísta e um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org
Fonte: O Estado de São Paulo (20/12/15)
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