Quando voltava da padaria, empurrando a bicicleta, fui abordado, de forma simpática, por um leitor. Por que escrevia apenas sobre Dilma e o governo? Não é um simpatizante do PT, muito menos de Dilma. Mas fixar-se nisto, de uma certa forma, reduz o vasto horizonte cultural, disse. Respondi que concordava com ele. Mas, no momento, não conseguia me esquecer da crise em que nos metemos. No caminho de casa, pensei: poderia estar escrevendo sobre Clarice Lispector, Frida Kahlo ou mesmo Simone de Beauvoir. Para ficar apenas nas que voltaram à evidência.
Clarice foi uma das admirações literárias da juventude, e agora seus contos são reconhecidos nos Estados Unidos. Frida Kahlo, cuja casa, transformada em museu, na Cidade do México, tornou-se um ícone popular. E a velha Simone reapareceu no vestibular do Enem. Hoje tenho algumas divergências. Mas seu livro “O segundo sexo” inspirou um artigo que publiquei no “JB”, na década dos 1960, com título “Amélia não era mulher de verdade”. Isso posso deixar para o próximo Enem.
Falar do Brasil e da crise tem prioridade para mim. Dilma, o leitor que me desculpe citá-la de novo, é presidente. É impossível ignorá-la, nesse momento. Felizmente, outros colunistas escrevem sobre a cultura mais ampla. Isso me enriquece como leitor. Pessoalmente, no entanto, não consegui achar a porta de saída da política.
É possível abandonar com gosto campanhas eleitorais, tramas partidárias, gravatas e mandatos. Difícil para mim é esquecer a política, sobretudo no momento em que o país, de uma certa forma, se desintegra. Escrevo artigos depois de trabalhar ao ar livre, filmando temas como o desastre de Mariana ou o surto de microcefalia. Isso faz sentido para mim. No entanto, à noite, diante da tela em branco, não resisto ao desejo de buscar um sentido maior, uma esperança. Sonho com o tempo de uma democracia madura, que me permita cuidar de todas as outras coisas, não diretamente ligadas à política.
Isso não virá tão cedo. Terá de ser conquistado. No momento, ainda há uma hesitação em encarar a realidade. A crise sanitária que vivemos é uma das mais sérias de nossa história. Houve outras, mas as pessoas ainda não viviam tão próximas e tão precariamente nas regiões metropolitanas. Estou pronto para esquecer divergências quando se trata de uma frente para encarar as novas ameaças que o vírus do zika revelou. Ou mesmo uma frente para encarar as ameaças ambientais que o desastre de Mariana dramatizou.
Tudo se passa com um governo paralisado. Mesmo os que apoiam Dilma sabem que é fraca. E não é apenas fraca como é fraco um governo que não deu certo. É também vulnerável. Se o impeachment não vier com as pedaladas fiscais, outros fronts vão se abrir. No TSE serão julgadas suas contas, certamente entrelaçadas com os recursos do mensalão. Na Lava-Jato, Cerveró está revelando como se comprou Pasadena.
Que tipo de arranjo o Brasil precisa encontrar para chegar a 2018 e inaugurar uma nova etapa, a partir das eleições presidenciais? Em Brasília, para sentir o clima do impeachment de Dilma e a cassação de Cunha, senti na verdade um clima de fim de mundo. Colhido por um tumulto e empurrões em pleno trabalho de documentar a tentativa de votação da deputada Mara Gabrilli. Ao vê-la indefesa na cabine, com meus óculos voando do bolso, compreendi que a crise chegou aqui de forma devastadora.
Minha hipótese é de que o vírus que reduz cérebros em Brasília nasce de uma doença fatal: distância do país, das pessoas que trabalham e sofrem.
Depois do quebra-pau, alguns diziam: mas na Coreia do Sul também brigam. No Estado Islâmico se fuzila, em alguns países da África amputam clitóris, se o cérebro continuar se estreitando, chegaremos lá. Tudo isso é o fruto da cultura dos últimos anos. A história passa a ser um álibi: no governo anterior também se roubava. Agora é a geografia: na Coreia do Sul também brigam.
Dia seguinte: chovia dinheiro no Recife, lançado das janelas da Hemobras. O que seria isso? Uma forma de combater o mosquito atropelando-o com maços de notas? Trabalham com o suprimento de sangue e acumulam fortunas. O que fazer? Está no DNA do aparelho petista. Saio de Brasília com a impressão de que, antes do carnaval, nada será decidido a respeito de Dilma e Cunha. Talvez tenha sido por isso que alguns deputados no plenário cantaram a marchinha do Japonês da Federal, aquele que aparece prendendo os corruptos em suas casas. “Aí meu Deus, me dei mal, bateu à minha porta o Japonês da Federal”.
Lama jorrando das barragens, mosquitos roubando a chance de plena vida a uma geração de brasileiros, rubro dinheiro do sangue jorrando pelas janelas de Recife. Apesar disso, não perdemos o humor. Mas, às vezes, bate uma tristeza. A experiência, no entanto, me consola. Na campanha das diretas também entramos num ritmo morto, fomos derrotados na votação parlamentar. Mas as diretas chegaram.
Como dizia Guimarães Rosa: “O que tem de ser tem muita força”. Bem que podia ser mais rápido.
Fonte: O Globo (13/12/15)
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