sábado, 5 de dezembro de 2015

Apenas o entendimento (Carlos Melo)

Deflagrado o processo de impeachment pelo ainda presidente da Câmara, Eduardo Cunha, uma nuvem de dúvidas e ansiedade também é liberada. Torcedores e indignados há de todos os lados; acusações mútuas também; histeria para todos os gostos. O momento é extraordinário, mas as paixões são comuns. É necessário, no entanto, manter a cabeça fria: perscrutar a natureza maior da crise, levantar as mais importantes variáveis presentes no conflito e, assim, aferir seu potencial. O propósito do analista, como diria Spinoza, não é “nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento”.
Que falta a Eduardo Cunha bases morais para capitanear o processo de destituição da presidente Dilma Rousseff até os mais empedernidos defensores do impeachment são capazes de admitir. Com efeito, as denúncias que embaraçaram o deputado – e podem custar-lhe o mandato – são mais que conhecidas, assim como sua índole. Isto lhe retira a credibilidade e o coloca em suspeição – mas não lhe cassa a legalidade. Bater em Eduardo Cunha, neste momento, é mais um exercício de desqualificação do mensageiro do que um ardil eficaz para barrar o processo.
Também é verdade que, até aqui, não se viu a presidente Dilma diretamente envolvida com a corrupção que conturba o ambiente e envolve membros do seu partido. Mas é igualmente real que tudo a atinge indiretamente e a fragiliza; que seu governo está em cacos. Não seria motivo justo para o impedimento, mas a política não se faz de moral, nem de justiça. Infelizmente, não é assim que a banda toca. E, se não lhe falta a legitimidade das urnas, Dilma tem carecido, sim, de condições mínimas de governabilidade, da simpatia e da boa vontade popular. Os sucessivos fracassos que tem colecionado têm minado sua credibilidade, atingido a economia e o bem-estar social; tornado vulnerável a presidente. Não há como negar.
Será um erro analítico – e possivelmente político – afirmar que o eventual impedimento de Dilma, portanto, é obra de um homem só, Eduardo Cunha; ou localizar sua danação no indisfarçável ressentimento da oposição que, ademais, em momento algum conduziu o processo, deixando-se, antes, conduzir pela turbulência e pelas ondas de um mar ingovernável, este sim, no campo do adversário. Também um equívoco será vitimizar a presidente e o PT, dissociando-os de erros e das circunstâncias mais gerais. A política quase nunca se move por motivos e explicações simples; como um acidente aéreo, o avião nunca cai por um único e isolado defeito.
Nada disso constitui novidade e é até mesmo óbvio; não valeria os bits deste teclado. O que, de fato, nos trouxe até aqui foi um conjunto de esgotamentos estruturais da política nacional associado a erros crassos cometidos pelo governo, pelo PT e pela presidente. Não convém detalhá-los neste espaço. A questão que cabe é que de nada adianta demonizar o comprometido Eduardo Cunha e empobrecer o entendimento do processo que ainda teremos pela frente. Assim como o policial, Cunha pode dizer que “quem mata é deus”, ele mesmo “só faz o furo”. As circunstâncias são muito mais soberanas.
E são as circunstâncias, e não Eduardo Cunha ou a oposição, que nos próximos meses podem definir se Dilma volta ou não mais cedo para casa. Se o processo ora detonado fosse definido hoje, é possível que a presidente o contornasse com relativa facilidade – podendo contar com 172 votos que arquivariam o processo, no plenário da Câmara. Pudesse acelerar o ritmo do processo na Comissão Especial ou ritmo das sessões seus problemas estariam, se não resolvidos, encaminhados.
Mas nada se resolverá rapidamente e o tempo, neste caso, não cura feridas. Pelo contrário, as abre, criando mais incerteza e agravando o processo por uma série de processos paralelos. A questão é o momento “xis” onde tudo se definirá, em que o impeachment efetivamente será votado. Afinal, o que podemos ter em alguns meses adiante. Eis os pontos:
1) A economia e as consequências sociais derivadas de um processo não mais de estagnação, mas de depressão econômica; 2) O manancial que brota da Operação Lava Jato, de suas mais de três dezenas de delações premiadas; 3) O papel que o procurador-geral da República e o Supremo Tribunal Federal podem desempenhar em virtude disto, levando ao convívio dos atuais réus, em Curitiba, outras dezenas de parlamentares; 4) O arrolamento de novos atores, mais ou menos próximos ao governo e ao seu partido; 5) A capacidade de o PT e seus aliados, assim como de seus adversários, mobilizar as ruas.
Tudo isto tende a pressionar o ambiente e influenciar humores e o posicionamento de 342 almas na Câmara que decidirem a peleja pela abertura do processo – ou 172 que votem pelo arquivamento.
Infelizmente para defensores ou detratores da presidente, nada disto está sob controle de quem quer que seja. O governo já demonstrou sua imensa inabilidade para dar conta de processos um tanto mais sofisticados que um simples jogo de damas; a oposição é um deserto de ideias, a elite do Congresso não merece este nome. Fica o País à mercê da dinâmica econômica, política e policial, como também da sorte e de muito oportunismo dispersos em ilhas de interesses.
Tudo se mistura e se confunde, conturba o entendimento, aumenta a angústia e aumenta a incerteza. Aprofunda a crise.
Portanto, a dinâmica política mais ampla tende, daqui para frente, a um ritmo bem peculiar, sem previsões. Não há deus, comitê central da burguesia, voluntarismo militante ou bruxos da política que possam manipular com plena certeza os cordões ou mamulengos desse teatro de horrores. Há, sim, interesses os mais diversos em conflito, o que é absolutamente natural; exércitos indispostos ao diálogo, mas armados até os dentes, carentes de generais e Estado-Maior qualificados e de boa-vontade.
Justificativas jurídicas, fatos determinados que incriminem diretamente a presidente, são agora exigidas por seus aliados. Elas existirão, virão à tona? Difícil dizer, inútil apostar. Num mundo ideal, com efeito, isto teria capital importância. No mundo concreto da política real que se tem, os interesses, a sagacidade e a força fabricam justificativas, que se tornam detalhes negligenciados pela dinâmica política. Sempre bom lembrar que, ao fim e ao cabo, Fernando Collor de Mello foi inocentando pelo Supremo , quando a Inês do seu caso já era morta. Dilma terá que cuidar para que a Inês de sua defesa não morra antes da hora de seu salvamento.

(*) Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

Fonte: O Estado de São Paulo (03/12/15)

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