Para que a democracia avance, a exitosa tripartição dos poderes políticos precisará ser suplementada por três novas instâncias. Ou três "polos", no dizer de uma das mais respeitadas autoridades sobre o tema, Pierre Rosanvallon: um "Conselho do funcionamento democrático" capaz de zelar pela integridade dos governos e a transparência de suas ações; "comissões públicas" encarregadas de avaliar a qualidade democrática das políticas e práticas administrativas, assim como organizar o debate público sobre esses dois desafios e "organizações de vigilância cidadã" especializadas em espreitar os governantes, e empenhadas na formação/informação da cidadania.
Essa futura tríade suplementar será exigida pela inexorável evolução da atual democracia "de autorização" na direção de uma democracia "de exercício", na qual se tornarão muito mais decisivas as qualidades dos governantes, assim como as regras que regularão suas relações com os governados.
O diagnóstico que leva a tão ambiciosa prescrição se apoia essencialmente na constatação histórica de nefasta hipertrofia do poder executivo, mesmo em nações que desfrutam dos melhores exemplos de parlamentarismo. Drásticas mutações fizeram com que o vínculo entre governantes e governados passasse a ser mais determinante que a relação entre representantes e representados.
Nunca houve ruptura nesse processo, mas com ele o sentimento de déficit democrático passou a ser turbinado por inúmeras decisões tomadas sem qualquer consulta, para nem evocar mentiras deslavadas e impunes de muitos dirigentes que sequer se vêm constrangidos a admiti-las. Pior: nada parece mais opaco que o funcionamento administrativo do poder.
O processo gerou, assim, brutal diferença entre democracia como regime e democracia como modo de governar. De um já longínquo modelo ancorado na representação parlamentar chegou-se a outro radicalmente diverso, em que o pivô passou a ser o poder executivo. Com isso, as queixas cidadãs deixaram de ter por foco os problemas de representação para se concentrarem cada vez mais nas mazelas da ação governamental. Pois é essencialmente do poder executivo que os cidadãos podem esperar alguma gestão razoável das condições de suas atividades e de suas próprias vidas.
Democracias são regimes em que o poder é consagrado pelas urnas após real e aberta competição no âmbito de estado de direito reconhecedor e protetor das liberdades individuais. Porém, é cada vez mais frequente que os representados se descubram traídos pelos representantes que escolheram. Passada a conjuntura eleitoral, é comum que o povo realize o quanto está longe de ser soberano.
Mesmo que seja difícil se dar conta, é patente, sob o prisma histórico, que ocorreu essa completa reviravolta no tocante à visão fundadora das democracias modernas. Principalmente se a referência for a revolução americana e a francesa. Daí que só uma boa análise dessa mudança pode permitir entender as verdadeiras raízes do vasto desencantamento atual (às vezes cólera), e identificar as possibilidades de superação, condição sine qua non do próximo passo da democracia.
Dois princípios guiaram os formuladores das primeiras constituições americana e francesa: o império da lei e o advento do povo-legislador. E as nascentes democracias tiveram três vetores de consolidação: democratização das eleições, melhora da representatividade dos eleitos e possibilidades de procedimentos referendários promotores de legislação popular direta.
Todavia, com a crescente predominância do poder executivo, o cerne da democracia migrou para as condições de seu controle pela sociedade. O desafio passou para a esfera das relações entre governados e governantes. E se é verdade que em condições ideais a eleição pode garantir uma adequada relação entre representados e representantes, o mesmo não pode ser dito sobre a relação entre governados e governantes.
E os partidos? Com certeza desempenharam duas funções cruciais para a viabilidade da democracia de representação, ao darem organicidade ao exercício do sufrágio universal e estruturarem a vida parlamentar, principalmente na formação de maiorias. Só que logo regeneraram os piores traços aristocráticos e oligárquicos, como há muito demonstraram Moïseï Ostrogorski (1902) e Robert Michels (1911). O que não impediu que, até finais do século passado, mal ou bem desempenhassem sua dupla função representativa. Não terão, porém, como dar razoáveis respostas às outras exigências que só se intensificarão na era digital.
Em suma, para que a democracia possa avançar, será imprescindível que o cidadão também seja democraticamente governado. Não se trata de um paradoxo, pois, como se viu, tal afirmação tem profunda coerência histórica, e até corresponde a uma incipiente intuição coletiva. Pode ser que ainda demore muito até que, de fato, "caia a ficha". Mas é essa séria falha geológica o mais corrosivo dos problemas políticos contemporâneos na parte do mundo que rompeu com absolutismos, tiranias e ditaduras.
(*) José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e autor de "Para entender o desenvolvimento sustentável" (Editora 34, 2015).
Fonte: Valor Econômico (29/12/15)
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