Em meio a ruínas do que foi o nosso sistema político e desse lamaçal escabroso que desce das montanhas de minas corrompendo tudo a seu redor, de nada serve imprecar aos céus e maldizer a sorte que nos reservou essa hora de amargura. É hora da ação, e não de soluções providenciais vindas de corporações profissionais, das quais o que se espera é que se aferrem ao estrito cumprimento dos seus papéis constitucionais. É hora da política, dos partidos e das personalidades públicas que nos restam dessa hecatombe que não nos veio da natureza – inclusive na Bacia do Rio Doce –, mas da desastrada intervenção humana.
É também a hora dos intelectuais, da vida associativa dos trabalhadores, os mais vulneráveis aos riscos a que todos estamos expostos, porque os males que já assolam a economia, longe de resultarem de carências de recursos naturais e instrumentais, são igualmente o resultado de intervenção dos poucos a que os rumos do nosso destino foram confiados. Todo o risco que nos ameaça como Estado e sociedade foi fabricado por nós, e cabe a nós esconjurá-lo enquanto há tempo e nos restam os salvados, entre pessoas e instituições, dessa enxurrada ácida que nos vem atingindo a fim de evitarmos a contaminação do que ainda se mantém em estado de higidez.
A pequena política, os cálculos ególatras e narcísicos dos que pretendem realizar seus projetos pessoais de poder, negaceando, em proveito de suas ambições, as possibilidades de uma ação concertada que nos livre do atual pandemônio, figuram, agora, no rol de inimigos de uma restauração da paz pública. Pois se é da política que se deve cobrar e esperar uma solução para os nossos males, nada poderá vir dela enquanto os poderes do Legislativo e do Executivo estiverem ocupados por dignitários que, por atos concretos e pelo conjunto da obra, já tenham perdido a condição de se manter neles.
A justiça e a conveniência de atos necessários à reconstituição do tecido republicano não se podem encontrar na dependência da discrição de corporações profissionais, pois seu foro natural é o Parlamento, lugar da soberania popular e que, na nossa tradição, desde o processo das lutas abolicionistas, tem sido receptivo à voz das ruas, o único elemento que talvez ainda nos falte a fim de cortarmos o nó górdio que nos mantém reféns desse jogo de prisioneiro em que estamos enredados. Não é mais preciso esperar que um dos prisioneiros revele mais da trama dos atentados à vida republicana. O que já se sabe é o bastante.
Isso feito, e em estrita obediência aos comandos constitucionais, é retomar, com os partidos e lideranças políticas que resistirem à provação deste ordálio por que passamos, a obra inconclusa da reforma política e pavimentar os caminhos que nos levem ao crescimento econômico. Salvo poucos nichos obstinados da academia, não há mais quem defenda o presidencialismo de coalizão na forma bastarda como o temos conhecido, duramente avaliado, dias atrás, por declarações do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, quadro de lealdade comprovada ao PT e a seus governos, em entrevista à imprensa, quando sentenciou, com notório conhecimento de causa, que esta forma de governo estaria “com seus dias contados” (Estado, 29/11).
Foi por meio da fórmula do presidencialismo de coalizão, importando na submissão do Legislativo ao Executivo pela cooptação dos seus quadros a posições de mando na máquina governamental à margem de quaisquer compromissos programáticos, para não falar das tenebrosas transações reveladas pela Ação Penal 470, que o decisionismo, marca forte da nossa tradição de práticas políticas autoritárias em matéria administrativa, encontrou seu lugar em meio ao cenário democrático trazido pela Carta de 1988.
Nesse sentido, foi sob o invólucro de aparência democrática desse estilo de governo que o Executivo, presidido pelo PT, levou autoritariamente à frente mais um ciclo de modernização econômica, sem sequer disfarçar seus nexos com o padrão assimétrico e vertical vigente no curso do regime militar, em especial com o governo Geisel. Nesse processo, refratário à deliberação democrática como nos ciclos anteriores de modernização, o Executivo trouxe para seu âmbito uma pluralidade de interesses, tal como no Estado Novo de Vargas e nos Grupos Executivos de JK, investindo-se o governo de uma presumida função heroica de realizar ideais de grandeza nacional, como outros antes dele.
O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, hoje uma fachada institucional sem serventia, deveria emprestar legitimidade à manobra de contornar a política e suas instituições. A relação do Executivo com os grandes interesses empresariais, o tempo ensinou, prescindiria de mediações: ela seria direta com o chefe do Executivo. E eles cumpririam, fato aterrador que ora se vislumbra, papéis também políticos, até mesmo em suas articulações com partidos e lideranças políticas, tanto para fins de política externa quanto da interna.
A política social, conduzida no mesmo estilo vertical da modernização econômica, pelos êxitos de suas realizações em termos de combate à miséria extrema, estabeleceu uma cerrada blindagem em torno da administração do PT, cujos moldes decisionistas foram radicalizados sob a gestão presidencial de Dilma Rousseff, malgrado as severas advertências que se fizeram ouvir nas massivas jornadas de março de 2013 em favor de uma política de participação da sociedade na vida pública.
Os resultados nefastos aí estão, e a tragédia da Bacia do Rio Doce não é apenas uma metáfora do que se passa ao redor, mas a perfeita tradução da situação de risco a que estamos expostos quando, sem força própria, emprestamos em confiança a um Estado entrelaçado aos grandes interesses o papel de urdir, às nossas costas, a teia do nosso destino.
Fonte: O Estado de São Paulo (06/12/15)
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