Quando percebeu que a perseverança e a conversão ao centro ajudavam a vencer o preconceito, Lula vislumbrou sua trajetória em direção ao topo. Embora tenha chegado lá, no lugar a que tantos aspiram, não conseguiu pacificar as tensões da sua personalidade e o estilo informal de sua influência. Fez-se vitorioso sem abrir mão da sensação de vítima, como se seu lugar na sociedade fosse insuficiente.
Do arsenal de habilidades que lançou mão, além do frisson de devorador de rivais e de usufruir todos como coadjuvantes, compreendeu sua responsabilidade como se o protagonista de uma peça fosse o mais livre de restrições no desempenho do papel. Sentindo-se abençoado pela religiosidade cristã e a esquerda disponível, imaginou que Deus e Trotski abririam uma exceção para ele, diante da grandiosidade do pecado dos outros. Imaginou-se o único capaz de fazer um milagre em favor dos oprimidos. E assim, combinando improvisadas afeições que chamou “programa de governo”, conduziu sua vida pública nos últimos 30 anos.
Privilegiou a conexão eleitoral que o consagrou e não descansou um só dia até contaminar todas as instituições com sua visão utilitária da política. Ainda assim, impulsionou um país constituído pela falta e a injustiça. Mas misturou de tal maneira a lua de mel da vitória com a idolatria da lealdade que deu a quem o derrotou o bem que o acusavam de pedir. Recém-chegado, e já vendo seu poder se estender por todo o reino, nem se deu conta de que fosse possível amar alguém ou alguma coisa desejando inteiramente sua posse. Agora, sentindo o indomável poder seguir sua rotina, intimida a Justiça, enquanto tenta absorver a sensação de sentir-se igual a tudo que condena.
A paixão por pessoas indiferenciadas, sem voz nem vez, virtude original que reuniu antigamente tantos sonhadores, passou a competir com o “sempre já aqui” das coisas imutáveis que estão nas raízes do Brasil.
O que esgotou o humanismo que deu origem às Caravanas da Cidadania e fazia um homem perdido no interior elevar-se ao grau de cavaleiro por ser reconhecido como igual por um líder autêntico? A corrente de esperança secou subterraneamente, desmistificando a aparência progressista de um discurso irritado que sempre deixa a sensação de oportunidade para outros interesses. Milhares de fundadores que viram na bondade e na mudança a fonte do prazer para entrar em um partido não o fizeram por este arrebatamento autodestrutivo da política. No mundo dos vivos que é o poder, os idealistas são sempre os mortos sem sepultura.
Dedicado a somente usufruir as forças econômicas sem lhes dar alento e desenvolvimento material, o período petista não estimulou nem requereu novos materiais, nova cultura, uma economia renovada e vital. Lançado à especulação, contentou-se com a apropriação improdutiva da herança política e material. E, mesmo assim, escolheu mal: preferiu o seu refugo. Sem se interessar pelo destino para o qual parecia ter nascido, confundiu a melodia do passado com o futuro. E, elogiado pelos novos sócios, fez-se surdo às críticas dos velhos amigos: “Para o que serve quem chora/ Se estou tão bem assim?”
(*) Paulo Delgado: Sociólogo e ex-deputado federal pelo PT
Fonte: O Globo (02/11/15)
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