Há os céticos que gostam de qualificar, com seu gosto amargo pela ironia, a vanidade dos esforços para mudar o mundo porque ele mudaria sozinho. É verdade que as suas crenças não se encontram de todo desamparadas pela teoria social, a qual, desde sua fundação, se dedica a estudos de sistemas que, após sua institucionalização, passam a operar a partir de uma lógica própria, alterando o ambiente em que estão inscritos. Pierre Bourdieu, que procurou desenvolver em sua obra a tradição da sociologia clássica, sustenta que "uma institucionalização exitosa se esquece e se faz esquecer" das condições que presidiram seu nascimento, naturalizando-se (Sobre o Estado, Companhia das Letras, 2014).
Mas a teoria social não dá voz apenas às estruturas, como também ao ator. Em certos registros históricos, sobretudo a este. Anos de supremacia na teoria social dos paradigmas dominantes na economia, em particular dos de extração neoliberal, com sua aposta em mecanismos automáticos de autorregulação e na sua crença de que o mercado, deixado livre de constrangimentos políticos, nos reserva um "happy end", têm feito com que se esqueçam as velhas lições de que o mundo, se entregue a si mesmo, embora sempre mude, os resultados imprevistos desse processo podem ser danosos a todos.
A grande crise financeira de 2008 subtraiu força desse argumento, decerto que ainda parcialmente, pois continua sustentado por muitos na academia e fora dela, mas é inegável que o processo de globalização em curso já conhece a ação reguladora de instâncias jurídico-políticas, entre as quais, muito especialmente, as institucionalizadas nos organismos internacionais. No terreno da formação de uma opinião pública internacional em favor de uma ordem cosmopolita não se pode deixar de mencionar a ação do papa Francisco e a de Jürgen Habermas, este papa laico da democracia contemporânea, nem a bibliografia dedicada ao processo de formação de um direito mundial, da que é exemplar a obra de Mireille Delmas-Marty, como em Pour um Droit Commun (Paris, Éditions du Seuil, 1994) e Trois Défis pour un Droit Mondial (da mesma editora, 1998), entre outros trabalhos relevantes dedicados ao tema.
Os atentados terroristas, praticados por sectários que dizem agir em nome do Islã, contra os jornalistas do Charlie Hebdo e os frequentadores de um supermercado especializado no comércio de produtos destinados à comunidade judaica de Paris, em reação à publicação de charges de humor sobre a figura do profeta Maomé, pareceram trazer de volta os tempos sombrios do 11 de setembro de 2001, data das ações do terror contra as chamadas torres gêmeas. À época, o funesto episódio foi interpretado por muitos como a confirmação de um diagnóstico, até então de baixa aceitação, sobre a existência de uma "guerra de civilizações" entre o Ocidente e o Oriente. A tarefa civilizatória do Ocidente deveria empenhar-se em impor a sua supremacia, até mesmo por meios militares, convertendo o segundo aos seus valores e instituições, política que inspirou as invasões por forças da Otan no Afeganistão e no Iraque, com os resultados desastrosos, hoje, à vista de todos.
A reação aos atentados do 7 de janeiro em Paris, contudo, vem tomando outra direção. A chamada globalização mostrou sua face benigna com as passeatas multitudinárias que ocuparam as ruas de uma boa parte do mundo, especialmente com a impressionante demonstração de Paris, à testa da qual marcharam expressivas lideranças mundiais, políticas e religiosas, em nome das liberdades de expressão e de culto religioso. O que era um devaneio da literatura ganhou ali materialidade: há, em embrião, uma sociedade civil mundial dotada de voz capaz de se fazer ouvir e que guarda na memória, como se viu, o que havia de universal na Revolução Francesa.
Na esteira daquelas grandiosas manifestações, dirigentes da União Europeia já se empenham em esforços comuns com países árabes de combate ao terrorismo, e se fortalecem as lideranças democráticas, como a de François Hollande na França, que se opõem à maré montante da xenofobia e procuram favorecer tanto a inclusão social da população dos imigrantes e seus descendentes como o reconhecimento de suas identidades culturais - há poucos dias, o primeiro-ministro Manuel Valls denunciou em manifestação pública a situação de apartheid em que, no seu país, vivem as populações de origem árabe - sem as quais a concórdia não tem como se instalar. Bons sinais ignorados pelo ceticismo falsamente elegante de sempre.
Paradoxalmente, por obra da política, os atentados de Paris, longe de robustecerem a extrema direita na Europa, tendência percebida por tantos como inexorável, podem levar a resultado oposto. Esse é um jogo ainda a ser jogado, mas a lucidez com que lideranças democráticas têm movimentado suas peças demonstra que a política, essa região do ator, quando intervém criativamente no mundo, pode romper com lógicas que pareciam ter-se naturalizado.
Também nos EUA a política tem rompido com lógicas tidas como férreas, como nas tratativas, ora em curso, sobre o restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba e sobre a suspensão do embargo econômico que vem impedindo esse país de se desenvolver e modernizar seu sistema produtivo em benefício da sua população. Não se pode deixar de registrar a iniciativa do presidente Barack Obama de fixar em sua agenda política a taxação das grandes fortunas no sentido de favorecer políticas públicas igualitárias, legitimando, ao seu modo, as propostas de Thomas Piketty sobre a reforma do capitalismo, ainda ignoradas, por sinal, pelo nosso debate político.
Aqui, com a nossa imaginação travada pelo economicismo, pesada herança intelectual que nos ficou do nosso longo processo de modernização politicamente orientado, parece que a nossa opção, nostálgicos do terceiro-mundismo, é a de fazer ouvidos moucos ao som ao redor.
Fonte: O Estado de S. Paulo (1/02/15)
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