sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O lastro da crise: o peemedebismo é a lógica que sustenta o PT (Bruno Cava)




Na avaliação de Bruno Cava a crise do atual governo é consequência de uma opção política feita ainda no governo Lula: a aliança com o PMDB. “O peemedebismo não é um problema que aparece apenas na composição dos ministérios ou do Congresso, é a lógica profunda de sustentação do governo Dilma em sua aliança estrutural com agronegócio, montadoras, mineradoras, grandes ‘players’ de setores estratégicos do empresariado. Então, não existe essa dicotomia entre Dilma/PT e o peemedebismo. O que existe é uma lógica peemedebista com a qual funciona Dilma e PT, que agora está cobrando o seu preço. Não houve ‘guinada à direita’, mas sim a consequência de uma estratégia de governabilidade que Dilma e o PT integram”, reitera.

“O governo só é vítima de seus próprios erros e decisões erradas, visto que ele tinha os meios”.  Apesar dos ajustes anunciados, Cava assinala que “ainda é cedo para antecipar a dimensão desse ‘encontro de tormentas’: se vai ser uma recessão econômica reversível nos próximos anos ou uma crise do tipo argentino de 2001; se o racionamento poderá contornar a falta d'água causando transtornos superáveis, ou se seremos forçados a uma mudança duradoura no dia a dia de metrópoles como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro; se os danos à imagem do governo vão apenas desgastá-lo temporariamente, ou se caminharemos para uma crise destituinte de impeachment, como a oposição vem agourando”. De todo modo, “os cenários são muito negativos para um governo recém-eleito”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que os primeiros 50 dias do segundo mandato Dilma revelam sobre a conjuntura política do país, considerando que a presidente acabou de ser eleita?

Bruno Cava - O governo anunciou um ajuste que cobra da população, especialmente dos mais pobres, a conta pelos problemas da economia. São ajustes na política fiscal, com aumento de tributos, cortes de gastos, redução de subsídios, além de restrições a direitos trabalhistas e ajuste monetário, com aumento dos juros, tudo isso num cenário internacional de queda dos preços do petróleo. Além disso, a falta de planejamento associada a fatores ambientais mais profundos está levando ao racionamento de água e energia, com impactos econômicos e políticos. Com relação ao Petrolão, só apareceu a ponta do iceberg, ao longo do ano os desdobramentos devem implicar vários mandatários e políticos da base do governo, prejudicando a imagem de Dilma.

Ainda é cedo para antecipar a dimensão desse "encontro de tormentas": se vai ser uma recessão econômica reversível nos próximos anos ou uma crise do tipo argentino de 2001; se o racionamento poderá contornar a falta d'água causando transtornos superáveis, ou se seremos forçados a uma mudança duradoura no dia a dia de metrópoles como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro; se os danos à imagem do governo vão apenas desgastá-lo temporariamente, ou se caminharemos para uma crise destituinte de impeachment, como a oposição vem agourando. Em todos os casos, os cenários são muito negativos para um governo recém-eleito, porém o grau de intensidade pode variar e dependerá, sobretudo, das mobilizações sociais e do sentido político comum que pegar nelas.

IHU On-Line - Como você avalia os discursos de que agora, quatro meses depois de eleito, o governo deu uma guinada à direita?

Bruno Cava - Com menos de um mês, Dilma fez o que prometeu que não faria de jeito nenhum. Que não mexeria em direitos sociais "nem que a vaca tussa". Quem não lembra daquela inserção na TV em que os banqueiros comandavam a economia enquanto a comida sumia dos pratos do povo? No segundo turno, a campanha foi construída se contrapondo ao projeto econômico do PSDB. As imagens foram fortes. Uma vez Dilma reeleita, vemos como só havia apenas um projeto único: o ministro da economia vem do Bradesco, é formado na escola neoliberal de Chicago e aplicou na primeira oportunidade, com carta branca, um programa de austeridade. 
Numa eleição acirrada, João Santana fez a diferença em alguns pontos percentuais decisivos, mas não tem marqueteiro que dê jeito por quatro anos seguidos.

As pessoas vão sentir na pele o aumento das tarifas, inflação, cortes sociais, racionamentos, e nomes da base do governo aparecerão na TV nos episódios do Petrolão. Embora o bloco do apoio crítico, que votou no "menos pior" para "barrar a direita", no final das contas, acaba votando por vínculo simbólico, escolhendo aquele candidato que agita mais bandeiras vermelhas e "tem um passado", a maior parte da população costuma ser mais realista: no ano passado havia otimismo com o futuro da economia e avaliou que, conservando o governo, arriscava menos. Com o choque de realidade, esse otimismo se converte imediatamente em pessimismo e, mais do que isso, sentimento de enganação.

IHU On-Line - Quais são as principais contradições do atual governo Dilma?

Bruno Cava - Numa entrevista recente, Marcos Nobre disse que Dilma falhou em dirigir o peemedebismo, não teria dado certo a estratégia de enfraquecer o PMDB, aliando-se com partidos médios como o PSD (de Kassab) e o Pros (de Cid Gomes). Por isso, para o filósofo da Unicamp, a eleição do Eduardo Cunha à presidência do Congresso seria uma ofensiva do pemedebismo. Essa interpretação vai no sentido do bloco do apoio crítico: a presidente estaria cercada, ilhada, precisando mais do que nunca de apoio das bases. O que também foi um dos pontos-chaves na argumentação eleitoral: com Mantega na Fazenda no primeiro mandato, Dilma teria enfrentado os mercados para reduzir a taxa de juros, mas não teve força. Da mesma forma, em 2015, segundo Nobre, Dilma não teve força, o "peemedebismo está na ofensiva". Existe um pressuposto nessas análises, contudo, que às vezes aparece quando o problema é colocado em termos de correlação de força, que é: de onde vem essa "força"?

Como o próprio Nobre explica em "Imobilismo em movimento" (2013) o peemedebismo não é um sujeito que poderia ir à ofensiva ou fica na defensiva, no que é de estranhar a recente entrevista dele. O peemedebismo é uma lógica, o atravessamento de uma cultura política de caciques e oligarcas que se perpetuam na governabilidade mediante vetos sistemáticos, a neutralização de mudanças e a desqualificação de manobras por fora do condomínio de sócios. O governo Dilma se construiu inteiramente dentro dessa lógica, desde 2011. Pode-se constatar isso, por exemplo, com o Petrolão. O escândalo não foi causado simplesmente porque pessoas corruptas resolveram desviar verba pública para interesses privados. Seria reduzir o caso à moralidade, que é apenas uma face.

O esquema de desvios não foi um acidente, uma mera contaminação do funcionamento que bastaria punir os corruptos e remediar. O Petrolão está mais entranhado, ele é estruturante da própria governabilidade, de maneira que fica até difícil dizer quem é corrupto e quem é o corruptor: se as empreiteiras corromperam o partido e o governo, ou se o partido e governo corromperam as empreiteiras. Nas redes reais de poder e seus fluxos de influência, estatal e privado aparecem como dois polos do mesmo agenciamento de interesses.

Como no filme "Inside job" (2010), que mostra como os operadores que levam Wall Street à crise dos subprimes transitam indistintamente entre as esferas estatal e empresarial. O Petrolão tem tudo pra ser um novo "inside job" brasileiro, em que a corrupção é tão indistinguível da estrutura que punir rigorosamente os principais operadores pode conduzir a estrutura ao colapso. Motivo, aliás, por que nos EUA os responsáveis rapidamente voltaram à ativa no sistema. E não por acaso já cogitem dessa "solução à americana" (salvaguardar o sistema) no Brasil.

A diferença é que aqui não é um "inside job" do capitalismo financeiro, mas do capitalismo industrial. O que deveria sinalizar para a esquerda desenvolvimentista como o capital industrial nacional não é mais moral ou puro do que o capital financeiro internacional, e que o problema do capitalismo não se resume aos yuppies especuladores da bolsa, rompendo com certa simpatia com "empresários comprometidos com a industrialização nacional", uma mitologia industrialista que vai de Mauá a Antonio Ermírio.

É provável que não encontraríamos uma lógica público/privada diversa se examinássemos como funcionam outras estatais, o BNDES, os planos de desenvolvimento industrial, dentro da estratégia consciente e deliberada de Dilma de fortalecer "campeões nacionais". Então o peemedebismo não é um problema que aparece apenas na composição dos ministérios ou do congresso, é a lógica profunda de sustentação do governo Dilma em sua aliança estrutural com agronegócio, montadoras, mineradoras, grandes "players" de setores estratégicos do empresariado. Então, não existe essa dicotomia entre Dilma/PT e o peemedebismo.

O que existe é uma lógica peemedebista com a qual funciona Dilma e PT, que agora está cobrando o seu preço. Não houve "guinada à direita", mas sim a consequência de uma estratégia de governabilidade que Dilma e o PT integram. O que se vê é a tentativa do governo de instaurar uma nova dialética do menos pior entre Dilma e Eduardo Cunha, quando, do ponto de vista histórico-material, são o mesmo bloco de governabilidade em seu desdobramento. Pareceriam diferentes apenas se, num imediatismo jornalístico, colocássemos o atual momento numa lupa e esquecermos os encadeamentos de fatos políticos e escolhas assumidas que nos conduziram até este momento.

IHU On-Line - Estamos diante de um conjunto de crises: da Petrobras (corrupção sistêmica), do transporte coletivo (aumento das passagens), da água, da energia (escassez e aumento das tarifas), da economia (ajustes que levam à perda de direitos). Essas crises podem nos levar para que situação?

Bruno Cava - Na mesma entrevista, Nobre comparou a situação de Dilma em 2015 com a de FHC em 1999. Um primeiro ano terrível, seguido de uma recuperação, possivelmente em 2016 e começo de 2017, dentro do raciocínio de soltar o "pacote de maldades" nos dois primeiros anos, e colher os frutos no último biênio visando à eleição. Essa avaliação, contudo, parte do pressuposto que a economia é como um carro. De tempos em tempos, seria preciso levá-lo para balancear e alinhar. Aí se têm basicamente duas posições entre os economistas: os ortodoxos veem o ajuste como necessário para a recuperação, porque organiza a economia e elimina gastos insustentáveis; já os keynesianos dizem o contrário, que o ajuste provocará uma espiral recessiva, vai acelerar o desaquecimento da economia e com isso o governo arrecada menos.

Ambos os grupos, no entanto, pensam a economia desde cima, com variáveis macroeconômicas, e ambos concentram suas críticas no papel do Estado, embora "Estado" tenha um sentido diferente em cada caso: para os primeiros, o Estado serve para assegurar a regulamentação econômica e monetária da atividade produtiva, enquanto os últimos veem no Estado um promotor direto da atividade econômica por mecanismos de "deficit spending" e similares.

O que essa discussão macroeconômica ao redor dos ajustes não leva em conta é que as crises têm causas muito mais profundas e enraizadas pelo tecido social. A combinação delas na nossa conjuntura não é por acaso. Está em questão o padrão de desenvolvimento que determina o peemedebismo, corrupção da própria representação, como determina também a crise hídrica, visto que a maior parte do consumo de água se dá na indústria e agronegócio, ao mesmo tempo que produzem danos ambientais em larga escala. Por isso, não há solução mágica.

Se o governo racionar para a população, pode gerar uma revolta, mas se racionar para a indústria e agronegócio, agravará a recessão econômica. Não admira o empurra-empurra de responsabilização, apoiadores do governo federal tentando responsabilizar os governos estaduais e vice-versa, ninguém quer aparecer correndo o risco de se tornar o alvo preferencial para os protestos.

Em qualquer caso, as crises combinadas demonstram como, por opções estratégicas e razões mais profundas, os governos terão dificuldades de lidar com a situação. Isto não significa que a crise por si nos levará para mais além do peemedebismo e do desenvolvimentismo, já que ninguém morre de contradição. A mudança real depende do sentido político comum que for construído a partir da mobilização social, e daí poderão emergir as alternativas.

IHU On-Line - Dilma iniciou o segundo mandato ampliando o leque de alianças e o espaço do PMDB no governo, mesmo assim acabou derrotada na eleição para a Câmara dos Deputados. Por outro lado, em negociação com as centrais sindicais, o governo não voltou atrás e sequer negociou as medidas de redução do direito ao seguro-desemprego e de mudanças nas regras de pensão por morte e o auxílio-doença. O governo corre o risco de ficar sem o apoio da direita e da esquerda, que sempre lhe apoiou? 

Bruno Cava - É como a águia bicéfala, que olha para os dois lados: Dilma se alia com as forças mais oligárquicas e conservadoras, enquanto Lula assume o papel de "campeão da esquerda", articulando frentes para fazer oposição... a si mesmo, pois há alguns meses ele fora o cabo eleitoral número 1 da reeleição. Isto é resultado do vazio produzido no interior dos próprios movimentos sociais, seja pela cooptação, seja pelo cerco punitivo e midiático do pós-junho de 2013.

Os movimentos sociais têm dificuldades de se libertar da dependência financeira, política e até simbólica, em relação ao governo Dilma e o PT, mesmo diante do "pacote de maldades". 
O desenvolvimentismo brasileiro de esquerda dos anos 1950 e 1960, dos tempos da CEPAL e ISEB, sempre conseguiu manter aberta a tensão entre modernização e emancipação: falava-se em crescimento econômico, mas também em reformas de base e mobilização popular. Hoje esse desenvolvimentismo, na retórica do governo, é apenas uma ideologia tecnocrática, que inclusive flerta com o ideário nacionalista mais simplório. Belo Monte talvez seja o signo máximo desse progressismo sem conteúdo emancipatório, pelo contrário.

Mesmo assim, apesar de tudo, o bloco do apoio crítico pode continuar ao longo do mandato, bastando as mídias do governo mobilizarem o esquema do "menos pior" e identidades simbólicas de esquerda/direita, embora no mundo real as coisas sejam mais complexas.

O determinante para sustentação do governo, contudo, não estará nesses grupos que têm um alinhamento mais ou menos automático, mas na mobilização social, numa "sociedade em movimento" que ultrapassa aqueles mobilizados diretamente pelos movimentos sociais de formato mais tradicional. O sentido dessa mobilização está em aberto.

IHU On-Line - A crise da Petrobras arrastou o PT junto com ela? O PT entrou em sua fase terminal ou ainda terá sobrevida?

Bruno Cava - O PT sofreu uma derrota eleitoral significativa no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, a ponto de a campanha remover a sigla do material no segundo turno, avaliando que a marca ficou tóxica. A queda da popularidade no começo do mandato também afeta o partido, bem como o Petrolão, haja vista que o partido não só está no governo, como seu quadro dirigente vem aparecendo nas delações premiadas. A vitória de Eduardo Cunha, no Congresso, igualmente impacta, porque compromete a principal bandeira com que o PT pretendia agregar forças sociais, a discussão da reforma política. Mas, no fundo, como disse, essa situação não se abateu sobre o PT sem a sua própria participação na lenta construção da governabilidade peemedebista.

Um partido que se coloca como farol das esquerdas do mundo, mas que precisa apelar para marqueteiros e agências de pesquisa para entender a sociedade local só pode estar com sérios problemas. Havendo mobilização social em escala num futuro próximo, nos cenários mais ou menos agudos, é bem provável que não poupem esse partido de sua parcela de responsabilidade política.

IHU On-Line - Concorda com a avaliação de que o governo Dilma está isolado? Por quais razões?

Bruno Cava - O governo só é vítima de seus próprios erros e decisões erradas, visto que ele tinha os meios. O peemedebismo é nuclear do governo por opção estratégica, com PT e Dilma tendo participado de toda a construção dessa matriz de governabilidade. O isolamento do governo, mais grave, se dá em relação à sociedade. É preciso perguntar de onde vem a "força" capaz de mexer na "correlação de forças". Para o operaísmo italiano, de Antonio Negri ou Christian Marazzi, a força vem sempre da produtividade do trabalho, que não é só econômica: exprime também uma composição política, condensação das qualidades cooperativas e organizativas do trabalho vivo, quer dizer, uma "composição de classe".

Aqui no Brasil, o cientista político Giuseppe Cocco tem usado essa ferramenta de análise ao estudar uma nova composição de classe surgida no Brasil nos últimos 15 anos, a partir da mobilização produtiva dos pobres, chegando a conclusões interessantes sobre possíveis horizontes para um governo aberto aos movimentos. Isto permite sair da armadilha da análise de "correlação de forças", que tem sido uma análise pacificada pelo peemedebismo, bem como dos vícios da esquerda no debate macroeconômico, tendente a deblaterar incansavelmente contra o neoliberalismo enquanto mantém permanente entusiasmo pelo a-b-c keynesiano, sem qualquer capacidade de formular a teoria econômica noutros termos.

O problema é que o governo, preso à ideologia tecnocrática de retórica desenvolvimentista e economicista, tem caminhado cada vez mais para cortar todos os vínculos com a sociedade em movimento e as lutas existentes. As posições de desqualificação sistemática e criminalização do levante de junho-outubro de 2013 foram um sintoma claro desse funcionamento. Isto conduz a uma paranoia antigolpista que tende a codificar qualquer manifestação que não venha dos grupos cooptados como ameaçadoras, bem como qualquer sujeito social indignado com o governo como classe-média reacionária ("coxinha") ou pobres desorganizados ("manipulados"). Na base dessa paranoia está o bloco do apoio crítico que não só é adesista, como justifica a adesão com a imagem odiada do inimigo.

IHU On-Line - Há sinais da retomada do movimento que vimos em junho 2013? Hoje há mais razões para manifestações em massa? Por quê?

Bruno Cava - O espectro de junho está no ar, embora na história nada se repita igual. Se voltar, voltará diferente. Os indignados com a economia, a crise hídrica, a corrupção estão crescendo em número e intensidade. Além das crises se avolumando na conjuntura, existe um movimento mais profundo, quase telúrico, de rechaço do sistema político representativo. Esse rechaço aparece, às vezes, de maneira truncada, num sentimento contra a "classe política", corrupção, gastos excessivos com o supérfluo, projetos de cidade pautados por máfias de ônibus, obras, lixo etc. Mas é igualmente legítimo. Manifestações quando ganham escala são como laranjas, têm muitos gomos enxertados.

Lamentavelmente, parte da esquerda tende a exercer o papel de sommelier dessas manifestações, bastando achar um gomo podre para condenar a laranja como um todo.

É como se tivessem uma concepção prévia do "cidadão médio" ou da "mulher honesta", e apenas esperassem confirmar o preconceito apontando o dedo para massas "protofascistas" que não conhecem nem pesquisaram, ou, na infeliz expressão de André Singer, para o "conservadorismo de fundo". Esquecem como são muitos gomos e como o sentido político comum resultará do suco resultante da mistura dos gomos, um sentido em aberto e francamente disputável. O problema é que, colocando-se fora delas, a tendência é elas se organizarem por outras vias e, aí sim, quem sabe, privilegiando os gomos podres.

IHU On-Line - As ‘jornadas de junho de 2013’ e acontecimentos da conjuntura internacional – vitória do Syriza e crescimento do Podemos na Espanha – têm contribuído para uma articulação no Brasil para a construção de um novo Partido-Movimento? Poderia descrever esse processo?

Bruno Cava - Vivemos numa era de lutas em que a dimensão global está muito presente. No começo das jornadas de junho, lembro-me bem que os manifestantes de primeira hora entoavam o grito: "Acabou o amor; isto aqui vai virar a Turquia!", fazendo referência aos protestos na praça Taksim. Em 2011, a imagem da multidão nas revoluções no norte da África, em Túnis e Cairo, foi tão importante para as lutas globais quanto as próprias revoluções naqueles países. É o que Gilles Deleuze chamava de devir revolucionário, que não se confunde com o futuro da revolução.

Mesmo que a revolução no Egito não tenha conseguido realizar uma democracia real, deflagrou afetos, desejos e imaginários pelo mundo, multiplicando lutas. A primavera árabe atravessou o Mediterrâneo e fez proliferar as acampadas do Movimento do 15-M europeu, que no verão cruzariam o Atlântico para gerar o Occupy Wall Street. Daí por diante pipocaram mobilizações multitudinárias no Oriente Médio, China, Turquia, Brasil, Ucrânia, Hong Kong.


De maneira semelhante, em 2015, partidos-movimentos surgidos da agitação política e cultural desse ciclo de lutas, como o Syriza e o Podemos, também têm a capacidade de contagiar por grandes distâncias, reinflamando o desejo por mudança. E, da mesma forma, mais vale o devir revolucionário que instauram, do que propriamente o futuro desses partidos uma vez defrontados com o desafio de enfrentar as oligarquias dominantes em seus países, dentro do sistema político representativo.

É esperado, então, que grupos mais jovens e dinâmicos busquem se inspirar nas formas adotadas por Syriza e Podemos no Brasil, bem como haverá tentativas de grupos da "velha política" de se camuflarem à imagem e semelhança daqueles, numa operação de "branding".

IHU On-Line - Qual será a alternativa brasileira? Há espaço para um novo partido de esquerda no Brasil? Em que erros ou vícios esse “partido” não pode incorrer?

Bruno Cava - Sim. Embora tenha de ser um partido absolutamente diferente dos demais, um partido de novo tipo, que aliás evite ser chamado de partido, como o Podemos, que prefere ser chamado de protagonismo cidadão, ou o Ganhemos (Guanyem) Barcelona, que se apresenta como plataforma municipalista. A palavra "partido" está, com muita razão, extremamente desgastada, e vai se desgastar ainda mais nesta crise.

Outra inovação importante é borrar as fronteiras entre dentro e fora, simplificar as estruturas e criar o mínimo de diferenciação possível entre filiados e não filiados. Um partido de filiados já começa mal, porque gera desconfiança.

Outro ponto está em desvencilhar-se de simbologias, ideologias e bandeiras que, levadas às ruas e redes, podem até significar muito nas cabeças dos militantes, mas muito pouco para quem está mais preocupado com as lutas reais por transporte, água, saúde, renda, dignidade, paz. Além disso, a discussão entre esquerda e direita está sendo instrumentalizada como dispositivo governista, que percebeu a permanência do potencial depois do fenômeno do voto crítico de esquerda, em 2014. E ainda outro vício consiste no programatismo: a ideia novecentista que um grupo de pessoas fecha um programa e depois vai à sociedade defendê-lo como uma tábua de princípios e propostas sobre as cabeças. É um modo não colaborativo e verticalizado, e uma péssima estratégia de comunicação.

Tenho acompanhado as produções de Javier Toret, um pesquisador e ativista que sentiu na pele o fracasso do Partido X diante do Podemos, e que agora trabalha pelo Guanyem Barcelona, quando explica que a estratégia de comunicação não serve mais apenas para mediar os conteúdos entre partido e sociedade, mas se tornou a própria franja de constituição da relação entre um e outro, uma relação aberta, maleável e que pode se preencher dos conteúdos das lutas de transformação onde elas são mais quentes e vivas.

No caso do Syriza, foram as jornadas anti-austerity, desde pelo menos 2009; do Podemos, foi o 15-M de 2011 até hoje; no caso brasileiro, seriam as lutas de junho, dos indignados, dos pobres, de todos que vêm sofrendo os efeitos da falta de democracia e desejam mudança, participação e poder de decidir.

Bruno Cava é bacharel e mestre em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e engenheiro de infraestrutura aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. É autor de A vida dos direitos (2008) e A multidão foi ao deserto (2013).

(Por Patricia Fachin. Colaboração de César Sanson)

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