Muitos já ouviram falar da expressão "presidencialismo de coalizão", cunhado pelo brilhante cientista político Sérgio Abranches. A ideia do presidencialismo de coalizão assenta-se em dois pilares básicos: o papel do presidente da República e a existência de coalizões partidárias que sustentem o governo. Ao se pôr a fórmula em movimento, os partidos que sustentam a coalizão participam do governo quase que de forma semiparlamentarista, oferecendo a maioria de que dispõem no Congresso para apoiar a agenda presidencial. Para assegurar três condições básicas: dar governabilidade ao presidente, assegurar a aprovação das principais propostas do governo no Congresso e evitar que a oposição paralise politicamente o governo com pedidos de investigação.
Enfim, funciona para dar operacionalidade à maioria. Se esse modelo não conseguir assegurar tais condições, não funcionará. E, pior, será gerador de crises que, no mínimo, terão impacto sobre a governabilidade e, no máximo, tornarão o governo inviável. Nos dias de hoje, o modelo é claramente gerador de crises e de instabilidade. Tanto por causa da fragmentação das forças políticas existentes no País quanto pela incapacidade de o Poder Executivo exercer adequadamente o seu papel. É tanto um problema de modelo quanto de gestão.
O Brasil vive, desde o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff, uma crise em seu presidencialismo de coalizão, fruto de uma soma espantosa de equívocos políticos. Agora, no início do seu segundo mandato, a crise agravou-se pela incompatibilidade entre a gestão política adotada pelo Planalto e as expectativas dos aliados, pela deterioração do ambiente econômico e pelo temor que o petrolão desperta na comunidade política. A combinação de tudo isso pode gerar um sentimento de "salve-se quem puder", deixando o governo mais isolado ainda.
Mesmo sofrendo um declínio de apoio no Congresso Nacional ao longo do primeiro mandato, o governo jamais enfrentou a questão nem buscou apaziguar as várias forças que compõem a sua base política. O distanciamento e, algumas vezes, a arrogância foram a tônica. Antes do início oficial do segundo mandato de Dilma, era óbvio que o governo ia mal em suas articulações políticas, no entanto repetia os mesmos erros de antes: pouco diálogo, desequilíbrio na representação dos partidos no Ministério e demora no atendimento das demandas dos parlamentares, entre muitas outras queixas. Que, em seu conjunto, transformaram a Câmara dos Deputados em terreno rebelde, para não dizer hostil, às orientações governamentais.
Em 2012, ao analisar esse mesmo tema, apontei o fato de que os focos de atrito estavam em todos os partidos da base. Disse ainda que, "caso o conflito não seja reduzido a limites toleráveis, o cenário é de derrotas no Congresso, de apoios relativizados, de dissidências crescentes e, ainda, de real possibilidade de racha na base política do lulismo". Foi exatamente o que aconteceu de lá para cá. A situação só não degringolou por inteiro por conta da então popularidade da presidente. Hoje a realidade é diferente. Temos o presidente do PT mais impopular dos últimos 12 anos.
O início de 2015 nos traz um cenário de rearrumação das placas tectônicas da política nacional. Existe um sentimento majoritariamente anti-PT dentro do Congresso que é transversal a todos os partidos. A base política que apoia o governo está definitivamente rachada. E prosseguirá como uma base de apoio condicional e muitas vezes estritamente pontual. Sem falar no fogo amigo que vai e volta. Existe também um sentimento, igualmente transversal a muitos partidos, de que o Congresso sempre foi tratado de forma depreciativa pelo governo central e está na hora de reverter o jogo.
A aprovação do orçamento impositivo é uma tentativa de declaração de independência que se seguiu a outras adotadas anteriormente, como a retomada da votação de vetos presidenciais e a mudança no rito das medidas provisórias. Só que, agora, a intenção é mais radical e vem acompanhada de outros sinais de hostilidade, como o convite a todos os ministros para prestar esclarecimentos no Congresso, além da criação de uma nova CPI da Petrobrás.
Porém, mais além das crises de natureza pontual, as consequências do desgaste dos últimos anos projetam uma nova situação e o que se avizinha é um quadro de mudança radical no relacionamento entre o Legislativo e o Executivo, em que a hegemonia do segundo deixará de ser absoluta. O quadro de transformações tende a se sedimentar e pode até mesmo resistir ao tornado do petrolão. O Congresso descobriu-se poderoso e o Executivo, com sua deliberada política de reduzi-lo a um Poder subalterno, acabou sendo o maior incentivador da transformação. Não haverá retorno. Poderá, sim, caso o presidente opere adequadamente, haver uma melhora no relacionamento entre os Poderes. Mas não será como antes.
Hoje a crise política não é apenas uma crise de gestão política. É, evidentemente, uma crise sistêmica do modelo brasileiro. Mas, ao contrário do que alguns pensam, pode não representar o fim do presidencialismo de coalizão, pelo simples fato de que não temos condição de substituí-lo por outro modelo sem uma grave ruptura institucional. Nem existe na prateleira uma alternativa que funcione melhor num quadro de elevada fragmentação partidária. No final das contas, devemos, sim, desejar e incentivar a formação de novas maiorias para que se façam os aperfeiçoamentos necessários ao sistema. Antes que a voz das ruas e as forças da sociedade encontrem caminhos menos pacíficos para isso.
*Murillo de Aragão é consultor e advogado, mestre em Ciência Política, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e autor do livro 'Reforma Política - o debate inadiável' (Civilização Brasileira, 2014)
Fonte: O Estado de São Paulo
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