sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Um novo PMDB de olho em 2018 (Murillo de Aragão)






Em menos de duas semanas, duas importantes lideranças do PMDB fizeram defesa velada de candidatura própria para a Presidência da República em 2018.

Após sua eleição para a presidência da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) afirmou em entrevista para a revista Veja que time que não joga não tem torcida e que o PMDB está há muito tempo sem jogar.

Na edição seguinte, o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB), apoiou a tese e lançou o nome do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, como alternativa. Na avaliação de Pezão, a realização dos Jogos Olímpicos na cidade poderá credenciá-lo como postulante ao cargo.

A eleição do deputado Leonardo Picciani (RJ) como líder da bancada na Câmara mostra que o PMDB do Rio de Janeiro sai na frente da disputa com outros estados.

Picciani foi eleito com 34 votos do partido. Seu adversário, Lúcio Vieira Lima (BA), teve 33. O resultado foi uma nova vitória de Eduardo Cunha.

Eduardo Cunha quer assumir papel de destaque na condução da candidatura própria.

Para tanto, está construindo e fortalecendo pontes com importantes setores da sociedade. Nesta semana, por exemplo, ele terá reuniões com representantes do Poder Judiciário, de centrais sindicais e de empresários. Quer colher informações sobre a pauta legislativa de interesse desses setores.

No programa do partido que vai ao ar na TV no dia 26, não será mostrada nenhuma vinculação com o PT nem com o governo. A mensagem que o partido pretende passar é a de que o PMDB apoiará o que for bom para o país, e não para o governo. A mensagem está sendo entendida pelo PT como a intenção de distanciamento e construção de agenda própria.

Para piorar o clima, a imprensa informa que Dilma e Michel Temer não estão se falando com regularidade. E que, apesar das imensas dificuldades políticas, a experiência de Temer parece não interessar à presidente.

Preocupados em preservar o tamanho da legenda, seus líderes também tentam esvaziar a criação de novas legendas. O ministro das Cidades e fundador do PSD, Gilberto Kassab, quer recriar o PL para, depois, fundi-lo ao PSB.

Vendo nessa iniciativa um risco para a legenda, o PMDB apresentará ao Supremo Tribunal Federal, nesta semana, Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o atual modelo de assinaturas exigidas pela Justiça Eleitoral para a criação de um novo partido (490 mil ou 0,5% dos votos válidos para a eleição mais recente para a Câmara dos Deputados).

Como há muito tempo não se via, o partido começa realmente a trabalhar em um projeto de poder capaz de resgatá-lo da condição de coadjuvante, papel que desempenhou nos últimos 20 anos. Tal comportamento contribui para acirrar ainda mais os ânimos do seu principal aliado no plano federal, o PT.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que acena com independência, o partido se mostra preocupado com a governabilidade. Suas lideranças repetem o mantra de que o impeachment de Dilma não terá apoio do partido.

O fato novo é a nova postura do PMDB e que reflete na nova postura do comando da Câmara e do Senado em relação ao governo. Ainda que tardiamente, o PMDB descobriu que poderá mandar muito no governo muito além de sua presença no ministério de Dilma.  

No âmbito da Reforma Política, o partido busca construir sua independência dando força ao debate de propostas na Câmara – a PEC Vacarezza – e no Senado com um conjunto de propostas. Além de fazer eventos e pesquisas de opinião com a militância sobre o tema.

De fato, o PMDB demorou a tomar esta atitude de maior independência. Pois desde a campanha eleitoral de 2011, o partido foi tratado pelo PT como um aliado menor que seria cooptado com meia-dúzia de cargos.

Após anos de conflito, fica evidente que o PMDB deve marchar “solo” ou com novos aliados em 2018. Paradoxalmente, nunca o governo do PT precisou tanto do PMDB como agora. 

Voz do Brasil (Demétrio Magnoli)





Eu sabia que eles assinariam um manifesto. Ingênuo, imaginei que, desta vez, seria um texto contra o pacote fiscal de Dilma Rousseff (culpando, bem entendido, o mordomo, que se chama Joaquim). Contudo, eles desistiram de fingir: o inevitável manifesto, intitulado "O que está em jogo agora", é tão oficialista como A voz do Brasil dos velhos tempos. Num lance vulgar de prestidigitação, o texto dos "intelectuais de esquerda", assinado por figuras como Marilena Chauí, Celso Amorim, Emir Sader, Fabio Comparato, Leonardo Boff, Maria da Conceição Tavares e Samuel Pinheiro Guimarães, apresenta-se como uma defesa da Petrobras — mas, de fato, é outra coisa.

O ofício intelectual não combina bem com manifestos. Dos intelectuais, espera-se o pensamento criativo, a crítica do consenso, a dissonância — não o chavão, a palavra de ordem ou o grito coletivo. Por isso, eles deveriam produzir manifestos apenas em circunstâncias excepcionais. Os "intelectuais de esquerda", porém, cultivam o estranho hábito de assinar manifestos. Vale tudo: crismar um crítico literário como inimigo da humanidade, condenar a palavra equivocada no editorial de um jornal, tomar o partido de algum ditador antiamericano, denunciar a opinião desviante de um parlamentar. O manifesto sobre a Petrobras é parte da série — mas, num sentido preciso, distingue-se negativamente dos demais.

A fabricação serializada de manifestos é um negócio inscrito na lógica do marketing. De fato, pouco importa a substância do texto, desde que ele ganhe suficiente publicidade, promovendo a circulação do nome dos signatários. Como os demais, o manifesto da Petrobras é uma iniciativa em proveito próprio. Mas, nesse caso, o proveito tem dupla face: além do marketing da marca, busca-se ocultar o fracasso de uma ideologia. Por isso — e só por isso! — ele merece a crítica de quem não quer contribuir, involuntariamente, com a operação mercantil dos "intelectuais de esquerda".

Segundo o manifesto, a Operação Lava Jato desencadeou uma campanha da mídia malvada para entregar a Petrobras, junto com nosso petróleo verde-amarelo, aos ambiciosos imperialistas. A meta imediata da conspiração dos agentes estrangeiros infiltrados seria restabelecer o regime de concessão. Sua meta final seria remeter-nos "uma vez mais a uma condição subalterna e colonial". A fábula, dirigida a mentes infantis, esbarra numa dificuldade óbvia: sem o aval do governo, é impossível alterar o regime de partilha.

A Petrobras não foi derrubada à lona pelo escândalo revelado por meio da Lava Jato, que apenas acelerou o nocaute. Os golpes decisivos foram assestados ao longo de anos, pela política conduzida nos governos lulopetistas, sob os aplausos extasiados dos "intelectuais de esquerda". No desesperador cenário atual, a direção da Petrobras anuncia uma redução brutal de investimentos na prospecção e extração, precisamente os setores em que a estatal opera com eficiência. O regime de partilha obriga a empresa a investir em todos os campos do pré-sal. A troca pelo regime de concessão será, provavelmente, a saída adotada pelo governo Dilma. Os "intelectuais de esquerda", móveis e utensílios do Planalto, escreveram o manifesto para, preventivamente, atribuir a mudança de rumo aos "conspiradores da mídia". Por meio dessa trapaça, conciliam a fidelidade ao "governo popular" com seus discursos ideológicos anacrônicos. Ficam com o pirulito e a roupa limpa.

Há uma diferença de escala, de zeros à direita, entre as perdas decorrentes da corrupção e as geradas pelo neonacionalismo reacionário. A Petrobras é vítima, antes de tudo, do investimento excessivo movido a dívida, da diversificação ineficiente e do controle de preços de combustíveis. Numa vida inteira de falcatruas, Paulo Roberto Costa, o "Paulinho", e Renato Duque, o "My Way", seriam incapazes de causar danos remotamente comparáveis aos provocados pelos devaneios ideológicos do lulopetismo – que são os dos signatários do manifesto. "A história dirá!": os "intelectuais de esquerda" invocam, ritualmente, o veredito de um futuro sempre adiável. O manifesto é uma manobra diversionista. Ele existe para desviar a atenção pública de um singelo, mas preciso, veredito histórico: a falência da Petrobras é obra de uma visão de mundo.

Franklin Martins, o verdadeiro autor do manifesto, cometeu um erro tático ao colocar seu nome entre os signatários. Ao fazê-lo, o ex-ministro descerra o diáfano véu de independência que cobriria a nudez do texto. O manifesto não é a "voz da sociedade", nem mesmo de uma parte dela, mas a Voz do Brasil. Nasceu no Instituto Lula, como elemento de uma operação de limitação dos efeitos da Lava Jato. Enquanto os "intelectuais de esquerda" assinavam uma folha de papel, Lula reunia-se com representantes do cartel das empreiteiras e Dilma preparava o "acordo de leniência" destinado a restaurar os laços de solidariedade entre as empresas e os políticos.

Sem surpresa, no último parágrafo, o manifesto menciona o ano mágico. A conspiração "antinacional" e "antidemocrática" dos inimigos da Petrobras almejaria provocar uma "comoção nacional" e, finalmente, a "repetição" do golpe militar de 1964. Na Venezuela, que deixou de ser uma democracia, o regime aprisiona líderes opositores sob acusações fantasiosas de conspiração golpista. No Brasil, que é uma democracia, acusações similares partem dos "intelectuais de esquerda". Os signatários do manifesto, sempre encantados por regimes nos quais a divergência política equivale à traição da pátria, sonham com o dia em que falariam sozinhos, como porta-vozes de um poder incontestável.

O manifesto é uma peça de corrupção intelectual. Ele contamina a praça do debate público com os resíduos de um discurso farsesco. A Petrobras é um pretexto. Os "intelectuais de esquerda" enrolam-se no pendão auriverde para fingir que não estão pelados.

O Globo (26/0215)

Os saqueadores da lógica (Fernando Gabeira)





Se o PT pusesse fogo em Brasília e alguém protestasse, a resposta viria rápida: onde você estava quando Nero incendiou Roma? Por que não protestou? Hipocrisia.

Com toda a paciência do mundo, você escreve que ainda não era nascido, e pode até defender uma ou outra tese sobre a importância histórica de Roma, manifestar simpatia pelos cristãos tornados bodes expiatórios. Mas é inútil.

Você está fazendo, exatamente, o que o governo espera. Ele joga migalhas de nonsense no ar para que todos se distraiam tentando catá-las e integrá-las num campo inteligível.

Vi muitas pessoas rindo da frase de Dilma que definiu a causa do escândalo da Petrobrás: a omissão do PSDB nos anos 1990. Nem o riso nem a indignação parecem ter a mínima importância para o governo.

Depois de trucidar os valores do movimento democrático que os elegeu, os detentores do poder avançaram sobre a língua e arrematam mandando a lógica elementar para o espaço. A tática se estende para o próprio campo de apoio. Protestar contra o dinheiro de Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial, no carnaval carioca é hipocrisia: afinal, as escolas de samba sempre foram financiadas pela contravenção.

O intelectual da Guiné Juan Tomás Ávila Laurel escreveu uma carta aos cariocas dizendo que Obiang gastou no ensino médio e superior de seu país, em dez anos, menos o que investiu na apologia da Beija-Flor. E conclui alertando os cariocas para a demência que foi o desfile do carnaval de 2015.

O próprio Ávila afirma que não há números confiáveis na execução do orçamento da Guiné Equatorial. Obiang não deixa espaço para esse tipo de comparação. Tanto ele como Dilma, cada qual na sua esfera, constroem uma versão blindada às análises, comparações numéricas e ao próprio bom senso.

O mundo é um espaço de alegorias, truques e efeitos especiais. Nicolás Maduro e Cristina Kirchner também constroem um universo próprio, impermeável. Se for questionado sobre uma determinada estratégia, Maduro poderá dizer: um passarinho me contou. Cristina se afoga em 140 batidas do Twitter: um dia fala uma coisa, outro dia se desmente.

Numa intensidade menor do que na Guiné Equatorial, em nossa América as cabeças estão caindo. Um promotor morre, misteriosamente em Buenos Aires, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, só e indefeso, é arrastado por um pelotão da polícia política bolivariana.

Claro, é preciso denunciar, protestar, como fazem agora os argentinos e os venezuelanos. Mas a tarefa de escrever artigos, de argumentar racionalmente, parece-me, no Brasil de hoje, tão antiga como o ensino do latim ou o canto orfeônico.

Alguma evidência, no entanto, pode e deve sair da narrativa dos próprios bandoleiros. Quase tudo o que sabemos, apesar do excelente trabalho da Polícia Federal, veio das delações premiadas.
Alguns dos autores da trama estão dentro da cadeia. Não escrevem artigos, apenas mandam bilhetes indicando que podem falar o que sabem.

Ao mesmo tempo que rompe com a lógica elementar, o governo prepara sua defesa, organiza suas linhas e busca no fundo do colete um novo juiz do Supremo para aliviar sua carga punitiva. O relator Teori Zavascki, na prática, foi bastante compreensivo, liberando Renato Duque, o único que tinha vínculo direto com o PT.

Todas essas manobras e contramanobras ficarão marcadas na história moderna do Brasil. Essa talvez seja a razão principal para continuar escrevendo.

Dilmas, Obiangs, Maduros e Kirchners podem delirar no seu mundo fantástico. Mas vai chegar para eles o dia do vamos ver, do acabou a brincadeira, a Quarta-Feira de Cinzas do delírio autoritário.

Nesse dia as pessoas, creio, terão alguma complacência conosco que passamos todo esse tempo dizendo que dois e dois são quatro. Constrangidos com a obviedade do nosso discurso, seguimos o nosso caminho lembrando que a opressão da Guiné Equatorial é a história escondida no Sambódromo, que o esquema de corrupção na Petrobrás se tornou sistemático e vertical no governo petista.

Dilma voltou mais magra e diz que seu segredo foi fechar a boca. Talvez fosse melhor levar a tática para o campo político. Melhor do que dizer bobagens, cometer atos falhos.

O último foi confessar que nunca deixou de esconder seus projetos para ampliar o Imposto de Renda. Na Dinamarca (COP 15), foi um pouco mais longe, afirmando que o meio ambiente é um grande obstáculo ao desenvolvimento.

O País oficial parece enlouquecer calmamente. É um pouco redundante lembrar todas as roubalheiras do governo. Além de terem roubado também o espaço usual de argumentação, você tem de criticar politicamente alguém que não é político, lembrar o papel de estadista a uma simples marionete de um partido e de um esquema de marketing.

O governo decidiu fugir para a frente. Olho em torno e vejo muitas pessoas que o apoiam assim mesmo. Chegam a admitir a roubalheira, mas preferem um governo de esquerda. A direita, argumentam, é roubalheira, mas com retrocesso social. Alguns dos que pensam assim são intelectuais. Nem vou discutir a tese, apenas registrar sua grande dose de conformismo e resignação.

Essa resignação vai tornando o País estranho e inquietante, muito diferente dos sonhos de redemocratização. O rei do carnaval carioca é um ditador da Guiné e temos de achar natural porque os bicheiros financiam algumas escolas de samba.
A tática de definir como hipocrisia uma expectativa sincera sobre as possibilidades do Brasil é uma forma de queimar esperanças. Algo como uma introjeção do preconceito colonial que nos condena a um papel secundário.

Não compartilho a euforia de Darcy Ribeiro com uma exuberante civilização tropical. Entre ela e o atual colapso dos valores que o PT nos propõe, certamente, existe um caminho a percorrer.

O Estado de São Paulo

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Crise do presidencialismo de coalizão (Murillo de Aragão)





Muitos já ouviram falar da expressão "presidencialismo de coalizão", cunhado pelo brilhante cientista político Sérgio Abranches. A ideia do presidencialismo de coalizão assenta-se em dois pilares básicos: o papel do presidente da República e a existência de coalizões partidárias que sustentem o governo. Ao se pôr a fórmula em movimento, os partidos que sustentam a coalizão participam do governo quase que de forma semiparlamentarista, oferecendo a maioria de que dispõem no Congresso para apoiar a agenda presidencial. Para assegurar três condições básicas: dar governabilidade ao presidente, assegurar a aprovação das principais propostas do governo no Congresso e evitar que a oposição paralise politicamente o governo com pedidos de investigação.

Enfim, funciona para dar operacionalidade à maioria. Se esse modelo não conseguir assegurar tais condições, não funcionará. E, pior, será gerador de crises que, no mínimo, terão impacto sobre a governabilidade e, no máximo, tornarão o governo inviável. Nos dias de hoje, o modelo é claramente gerador de crises e de instabilidade. Tanto por causa da fragmentação das forças políticas existentes no País quanto pela incapacidade de o Poder Executivo exercer adequadamente o seu papel. É tanto um problema de modelo quanto de gestão.

O Brasil vive, desde o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff, uma crise em seu presidencialismo de coalizão, fruto de uma soma espantosa de equívocos políticos. Agora, no início do seu segundo mandato, a crise agravou-se pela incompatibilidade entre a gestão política adotada pelo Planalto e as expectativas dos aliados, pela deterioração do ambiente econômico e pelo temor que o petrolão desperta na comunidade política. A combinação de tudo isso pode gerar um sentimento de "salve-se quem puder", deixando o governo mais isolado ainda.

Mesmo sofrendo um declínio de apoio no Congresso Nacional ao longo do primeiro mandato, o governo jamais enfrentou a questão nem buscou apaziguar as várias forças que compõem a sua base política. O distanciamento e, algumas vezes, a arrogância foram a tônica. Antes do início oficial do segundo mandato de Dilma, era óbvio que o governo ia mal em suas articulações políticas, no entanto repetia os mesmos erros de antes: pouco diálogo, desequilíbrio na representação dos partidos no Ministério e demora no atendimento das demandas dos parlamentares, entre muitas outras queixas. Que, em seu conjunto, transformaram a Câmara dos Deputados em terreno rebelde, para não dizer hostil, às orientações governamentais.

Em 2012, ao analisar esse mesmo tema, apontei o fato de que os focos de atrito estavam em todos os partidos da base. Disse ainda que, "caso o conflito não seja reduzido a limites toleráveis, o cenário é de derrotas no Congresso, de apoios relativizados, de dissidências crescentes e, ainda, de real possibilidade de racha na base política do lulismo". Foi exatamente o que aconteceu de lá para cá. A situação só não degringolou por inteiro por conta da então popularidade da presidente. Hoje a realidade é diferente. Temos o presidente do PT mais impopular dos últimos 12 anos.

O início de 2015 nos traz um cenário de rearrumação das placas tectônicas da política nacional. Existe um sentimento majoritariamente anti-PT dentro do Congresso que é transversal a todos os partidos. A base política que apoia o governo está definitivamente rachada. E prosseguirá como uma base de apoio condicional e muitas vezes estritamente pontual. Sem falar no fogo amigo que vai e volta. Existe também um sentimento, igualmente transversal a muitos partidos, de que o Congresso sempre foi tratado de forma depreciativa pelo governo central e está na hora de reverter o jogo.

A aprovação do orçamento impositivo é uma tentativa de declaração de independência que se seguiu a outras adotadas anteriormente, como a retomada da votação de vetos presidenciais e a mudança no rito das medidas provisórias. Só que, agora, a intenção é mais radical e vem acompanhada de outros sinais de hostilidade, como o convite a todos os ministros para prestar esclarecimentos no Congresso, além da criação de uma nova CPI da Petrobrás.

Porém, mais além das crises de natureza pontual, as consequências do desgaste dos últimos anos projetam uma nova situação e o que se avizinha é um quadro de mudança radical no relacionamento entre o Legislativo e o Executivo, em que a hegemonia do segundo deixará de ser absoluta. O quadro de transformações tende a se sedimentar e pode até mesmo resistir ao tornado do petrolão. O Congresso descobriu-se poderoso e o Executivo, com sua deliberada política de reduzi-lo a um Poder subalterno, acabou sendo o maior incentivador da transformação. Não haverá retorno. Poderá, sim, caso o presidente opere adequadamente, haver uma melhora no relacionamento entre os Poderes. Mas não será como antes.

Hoje a crise política não é apenas uma crise de gestão política. É, evidentemente, uma crise sistêmica do modelo brasileiro. Mas, ao contrário do que alguns pensam, pode não representar o fim do presidencialismo de coalizão, pelo simples fato de que não temos condição de substituí-lo por outro modelo sem uma grave ruptura institucional. Nem existe na prateleira uma alternativa que funcione melhor num quadro de elevada fragmentação partidária. No final das contas, devemos, sim, desejar e incentivar a formação de novas maiorias para que se façam os aperfeiçoamentos necessários ao sistema. Antes que a voz das ruas e as forças da sociedade encontrem caminhos menos pacíficos para isso.

*Murillo de Aragão é consultor e advogado, mestre em Ciência Política, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e autor do livro 'Reforma Política - o debate inadiável' (Civilização Brasileira, 2014)

Fonte: O Estado de São Paulo

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

'Há um presidencialismo semiparlamentar em curso' (Júlio Aurélio Vianna Lopes/entrevista)





Na esteira da aprovação do Orçamento Impositivo, no Congresso Nacional, o pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Júlio Aurélio Vianna Lopes, analisou o novo ritmo que os parlamentares, liderados pelos presidentes da Câmara e do Senado, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e Renan Calheiros (PMDB-AL), tentam imprimir ao Executivo. O cientista social afirmou que os próximos passos (destrancamento da pauta do Legislativo por conta de vetos presidenciais, convocação de ministros e o voto distrital, que pode surgir com a reforma política) fazem parte de um projeto de poder do PMDB e estão reconfigurando o atual sistema político brasileiro. (Eduardo Miranda –Brasil Econômico)

Qual é a análise política que o sr. faz da aprovação do Orçamento Impositivo no Congresso?
Há um movimento de fortalecimento do Parlamento brasileiro. O espaço político do orçamento era basicamente do Executivo. Agora, o legislador passa a ser também executivo. Há uma mudança em curso: a do presidencialismo de coalizão, termo do cientista político Sérgio Abranches, que define a cooptação do Legislativo pelo Executivo, para o presidencialismo semiparlamentar. Essa cooptação não é da vontade da presidenta Dilma. Ela é assim, é natural, e existe desde o governo de Fernando Collor de Mello.

Há um avanço do Congresso sobre as funções do Executivo?
Há, sim, uma extrapolação do parlamento no espaço do Executivo. É uma tentativa de impor o ritmo de trabalho ao Executivo. E isso vai além do momento atual. É uma mudança radical, equivalente à chegada de Lula ao poder, quando, por receio da margem absoluta de manobra que ele teria com medidas provisórias, o Congresso agiu para moderar esse poder. Mas esse presidencialismo semiparlamentar não é uma novidade, ele já estava em gestação desde a configuração do sistema de governo de 1988. Ocorre que só agora ele começa a nascer.

E porque só agora?
Durante os dois anos da Assembleia Nacional Constituinte, o presidencialismo parlamentarizado avançou muito e parecia que ia ganhar. Mas apareceu a emenda do senador Humberto Lucena (PMDB), já articulada com todos os presidencialismos que existiam. Ainda assim, o presidencialismo que venceu não foi o puro, foi o semiparlamentar. O que ocorre é que quem fez o "acabamento" do presidencialismo foram os próprios presidencialistas. Os parlamentaristas saíram do debate. E chegamos a um presidencialismo hegemônico, mais imperativo.

Quais são as variações desses sistemas no mundo?
A maioria dos países europeus faz uma mistura dos dois sistemas, com uma dose maior para o parlamentarismo. Os dois são variações da proposta dos três poderes, formulada por Montesquieu. A França foi a que mais avançou no parlamentarismo semipresidencial. O presidencialismo puro é invenção dos norte-americanos. Obama sequer pode enviar um projeto de lei. A América Latina é presidencialista, com interferências no parlamento, em que um presidente emite medidas provisórias.

Há desdobramentos políticos do Orçamento Impositivo?
O tópico sobre o voto distrital, na reforma política, que é mais uma reforma eleitoral, é talvez o principal. Mas não se trata de um desdobramento. Eu diria que o orçamento agasalha a lógica do voto distrital. O parlamentar que vai manejar um orçamento impositivo — que será de R$ 10 bilhões neste ano — trabalha na lógica distrital, porque a orientação do voto do eleitor tende a ser pelo candidato da sua região, embora juridicamente o voto ainda não seja distrital. É condizente que, depois do Orçamento Impositivo ao Executivo, o próximo passo seja o voto distrital.

Que outras medidas sinalizam para o avanço do Legislativo?
O presidente do Senado, Renan Calheiros, quer reformar o Regimento Interno do Congresso, com o objetivo de estabelecer regimes diferenciados para vetos presidenciais e para destrancar a pauta no Congresso. É mais uma forma de limitar a entrada do Executivo no Parlamento. Temos, também, a iniciativa de sistematizar as convocações de ministros para falarem na Câmara. Isso está na nossa Constituição, mas não têm seu uso disseminado. Um parlamento pode derrubar um ministro se ele é convocado e não comparece.

Qual é o papel do PMDB nessas medidas?
Embora se destaque Eduardo Cunha como avesso ao governo e Renan afinado, existe, nas duas casas, um projeto de poder do PMDB para assumir o controle do Legislativo e construir alternativas para 2018. Há uma fraqueza na Presidência da República, decorrente da vitória apertada de Dilma. Não haverá impeachment, mas ela está acuada. Por consequência, o Congresso está ousando mais diante de uma maior necessidade de apoio da presidenta.

Júlio Aurélio Vianna Lopes  (Cientista social da Fundação Casa de Rui Barbosa)

O lastro da crise: o peemedebismo é a lógica que sustenta o PT (Bruno Cava)




Na avaliação de Bruno Cava a crise do atual governo é consequência de uma opção política feita ainda no governo Lula: a aliança com o PMDB. “O peemedebismo não é um problema que aparece apenas na composição dos ministérios ou do Congresso, é a lógica profunda de sustentação do governo Dilma em sua aliança estrutural com agronegócio, montadoras, mineradoras, grandes ‘players’ de setores estratégicos do empresariado. Então, não existe essa dicotomia entre Dilma/PT e o peemedebismo. O que existe é uma lógica peemedebista com a qual funciona Dilma e PT, que agora está cobrando o seu preço. Não houve ‘guinada à direita’, mas sim a consequência de uma estratégia de governabilidade que Dilma e o PT integram”, reitera.

“O governo só é vítima de seus próprios erros e decisões erradas, visto que ele tinha os meios”.  Apesar dos ajustes anunciados, Cava assinala que “ainda é cedo para antecipar a dimensão desse ‘encontro de tormentas’: se vai ser uma recessão econômica reversível nos próximos anos ou uma crise do tipo argentino de 2001; se o racionamento poderá contornar a falta d'água causando transtornos superáveis, ou se seremos forçados a uma mudança duradoura no dia a dia de metrópoles como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro; se os danos à imagem do governo vão apenas desgastá-lo temporariamente, ou se caminharemos para uma crise destituinte de impeachment, como a oposição vem agourando”. De todo modo, “os cenários são muito negativos para um governo recém-eleito”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que os primeiros 50 dias do segundo mandato Dilma revelam sobre a conjuntura política do país, considerando que a presidente acabou de ser eleita?

Bruno Cava - O governo anunciou um ajuste que cobra da população, especialmente dos mais pobres, a conta pelos problemas da economia. São ajustes na política fiscal, com aumento de tributos, cortes de gastos, redução de subsídios, além de restrições a direitos trabalhistas e ajuste monetário, com aumento dos juros, tudo isso num cenário internacional de queda dos preços do petróleo. Além disso, a falta de planejamento associada a fatores ambientais mais profundos está levando ao racionamento de água e energia, com impactos econômicos e políticos. Com relação ao Petrolão, só apareceu a ponta do iceberg, ao longo do ano os desdobramentos devem implicar vários mandatários e políticos da base do governo, prejudicando a imagem de Dilma.

Ainda é cedo para antecipar a dimensão desse "encontro de tormentas": se vai ser uma recessão econômica reversível nos próximos anos ou uma crise do tipo argentino de 2001; se o racionamento poderá contornar a falta d'água causando transtornos superáveis, ou se seremos forçados a uma mudança duradoura no dia a dia de metrópoles como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro; se os danos à imagem do governo vão apenas desgastá-lo temporariamente, ou se caminharemos para uma crise destituinte de impeachment, como a oposição vem agourando. Em todos os casos, os cenários são muito negativos para um governo recém-eleito, porém o grau de intensidade pode variar e dependerá, sobretudo, das mobilizações sociais e do sentido político comum que pegar nelas.

IHU On-Line - Como você avalia os discursos de que agora, quatro meses depois de eleito, o governo deu uma guinada à direita?

Bruno Cava - Com menos de um mês, Dilma fez o que prometeu que não faria de jeito nenhum. Que não mexeria em direitos sociais "nem que a vaca tussa". Quem não lembra daquela inserção na TV em que os banqueiros comandavam a economia enquanto a comida sumia dos pratos do povo? No segundo turno, a campanha foi construída se contrapondo ao projeto econômico do PSDB. As imagens foram fortes. Uma vez Dilma reeleita, vemos como só havia apenas um projeto único: o ministro da economia vem do Bradesco, é formado na escola neoliberal de Chicago e aplicou na primeira oportunidade, com carta branca, um programa de austeridade. 
Numa eleição acirrada, João Santana fez a diferença em alguns pontos percentuais decisivos, mas não tem marqueteiro que dê jeito por quatro anos seguidos.

As pessoas vão sentir na pele o aumento das tarifas, inflação, cortes sociais, racionamentos, e nomes da base do governo aparecerão na TV nos episódios do Petrolão. Embora o bloco do apoio crítico, que votou no "menos pior" para "barrar a direita", no final das contas, acaba votando por vínculo simbólico, escolhendo aquele candidato que agita mais bandeiras vermelhas e "tem um passado", a maior parte da população costuma ser mais realista: no ano passado havia otimismo com o futuro da economia e avaliou que, conservando o governo, arriscava menos. Com o choque de realidade, esse otimismo se converte imediatamente em pessimismo e, mais do que isso, sentimento de enganação.

IHU On-Line - Quais são as principais contradições do atual governo Dilma?

Bruno Cava - Numa entrevista recente, Marcos Nobre disse que Dilma falhou em dirigir o peemedebismo, não teria dado certo a estratégia de enfraquecer o PMDB, aliando-se com partidos médios como o PSD (de Kassab) e o Pros (de Cid Gomes). Por isso, para o filósofo da Unicamp, a eleição do Eduardo Cunha à presidência do Congresso seria uma ofensiva do pemedebismo. Essa interpretação vai no sentido do bloco do apoio crítico: a presidente estaria cercada, ilhada, precisando mais do que nunca de apoio das bases. O que também foi um dos pontos-chaves na argumentação eleitoral: com Mantega na Fazenda no primeiro mandato, Dilma teria enfrentado os mercados para reduzir a taxa de juros, mas não teve força. Da mesma forma, em 2015, segundo Nobre, Dilma não teve força, o "peemedebismo está na ofensiva". Existe um pressuposto nessas análises, contudo, que às vezes aparece quando o problema é colocado em termos de correlação de força, que é: de onde vem essa "força"?

Como o próprio Nobre explica em "Imobilismo em movimento" (2013) o peemedebismo não é um sujeito que poderia ir à ofensiva ou fica na defensiva, no que é de estranhar a recente entrevista dele. O peemedebismo é uma lógica, o atravessamento de uma cultura política de caciques e oligarcas que se perpetuam na governabilidade mediante vetos sistemáticos, a neutralização de mudanças e a desqualificação de manobras por fora do condomínio de sócios. O governo Dilma se construiu inteiramente dentro dessa lógica, desde 2011. Pode-se constatar isso, por exemplo, com o Petrolão. O escândalo não foi causado simplesmente porque pessoas corruptas resolveram desviar verba pública para interesses privados. Seria reduzir o caso à moralidade, que é apenas uma face.

O esquema de desvios não foi um acidente, uma mera contaminação do funcionamento que bastaria punir os corruptos e remediar. O Petrolão está mais entranhado, ele é estruturante da própria governabilidade, de maneira que fica até difícil dizer quem é corrupto e quem é o corruptor: se as empreiteiras corromperam o partido e o governo, ou se o partido e governo corromperam as empreiteiras. Nas redes reais de poder e seus fluxos de influência, estatal e privado aparecem como dois polos do mesmo agenciamento de interesses.

Como no filme "Inside job" (2010), que mostra como os operadores que levam Wall Street à crise dos subprimes transitam indistintamente entre as esferas estatal e empresarial. O Petrolão tem tudo pra ser um novo "inside job" brasileiro, em que a corrupção é tão indistinguível da estrutura que punir rigorosamente os principais operadores pode conduzir a estrutura ao colapso. Motivo, aliás, por que nos EUA os responsáveis rapidamente voltaram à ativa no sistema. E não por acaso já cogitem dessa "solução à americana" (salvaguardar o sistema) no Brasil.

A diferença é que aqui não é um "inside job" do capitalismo financeiro, mas do capitalismo industrial. O que deveria sinalizar para a esquerda desenvolvimentista como o capital industrial nacional não é mais moral ou puro do que o capital financeiro internacional, e que o problema do capitalismo não se resume aos yuppies especuladores da bolsa, rompendo com certa simpatia com "empresários comprometidos com a industrialização nacional", uma mitologia industrialista que vai de Mauá a Antonio Ermírio.

É provável que não encontraríamos uma lógica público/privada diversa se examinássemos como funcionam outras estatais, o BNDES, os planos de desenvolvimento industrial, dentro da estratégia consciente e deliberada de Dilma de fortalecer "campeões nacionais". Então o peemedebismo não é um problema que aparece apenas na composição dos ministérios ou do congresso, é a lógica profunda de sustentação do governo Dilma em sua aliança estrutural com agronegócio, montadoras, mineradoras, grandes "players" de setores estratégicos do empresariado. Então, não existe essa dicotomia entre Dilma/PT e o peemedebismo.

O que existe é uma lógica peemedebista com a qual funciona Dilma e PT, que agora está cobrando o seu preço. Não houve "guinada à direita", mas sim a consequência de uma estratégia de governabilidade que Dilma e o PT integram. O que se vê é a tentativa do governo de instaurar uma nova dialética do menos pior entre Dilma e Eduardo Cunha, quando, do ponto de vista histórico-material, são o mesmo bloco de governabilidade em seu desdobramento. Pareceriam diferentes apenas se, num imediatismo jornalístico, colocássemos o atual momento numa lupa e esquecermos os encadeamentos de fatos políticos e escolhas assumidas que nos conduziram até este momento.

IHU On-Line - Estamos diante de um conjunto de crises: da Petrobras (corrupção sistêmica), do transporte coletivo (aumento das passagens), da água, da energia (escassez e aumento das tarifas), da economia (ajustes que levam à perda de direitos). Essas crises podem nos levar para que situação?

Bruno Cava - Na mesma entrevista, Nobre comparou a situação de Dilma em 2015 com a de FHC em 1999. Um primeiro ano terrível, seguido de uma recuperação, possivelmente em 2016 e começo de 2017, dentro do raciocínio de soltar o "pacote de maldades" nos dois primeiros anos, e colher os frutos no último biênio visando à eleição. Essa avaliação, contudo, parte do pressuposto que a economia é como um carro. De tempos em tempos, seria preciso levá-lo para balancear e alinhar. Aí se têm basicamente duas posições entre os economistas: os ortodoxos veem o ajuste como necessário para a recuperação, porque organiza a economia e elimina gastos insustentáveis; já os keynesianos dizem o contrário, que o ajuste provocará uma espiral recessiva, vai acelerar o desaquecimento da economia e com isso o governo arrecada menos.

Ambos os grupos, no entanto, pensam a economia desde cima, com variáveis macroeconômicas, e ambos concentram suas críticas no papel do Estado, embora "Estado" tenha um sentido diferente em cada caso: para os primeiros, o Estado serve para assegurar a regulamentação econômica e monetária da atividade produtiva, enquanto os últimos veem no Estado um promotor direto da atividade econômica por mecanismos de "deficit spending" e similares.

O que essa discussão macroeconômica ao redor dos ajustes não leva em conta é que as crises têm causas muito mais profundas e enraizadas pelo tecido social. A combinação delas na nossa conjuntura não é por acaso. Está em questão o padrão de desenvolvimento que determina o peemedebismo, corrupção da própria representação, como determina também a crise hídrica, visto que a maior parte do consumo de água se dá na indústria e agronegócio, ao mesmo tempo que produzem danos ambientais em larga escala. Por isso, não há solução mágica.

Se o governo racionar para a população, pode gerar uma revolta, mas se racionar para a indústria e agronegócio, agravará a recessão econômica. Não admira o empurra-empurra de responsabilização, apoiadores do governo federal tentando responsabilizar os governos estaduais e vice-versa, ninguém quer aparecer correndo o risco de se tornar o alvo preferencial para os protestos.

Em qualquer caso, as crises combinadas demonstram como, por opções estratégicas e razões mais profundas, os governos terão dificuldades de lidar com a situação. Isto não significa que a crise por si nos levará para mais além do peemedebismo e do desenvolvimentismo, já que ninguém morre de contradição. A mudança real depende do sentido político comum que for construído a partir da mobilização social, e daí poderão emergir as alternativas.

IHU On-Line - Dilma iniciou o segundo mandato ampliando o leque de alianças e o espaço do PMDB no governo, mesmo assim acabou derrotada na eleição para a Câmara dos Deputados. Por outro lado, em negociação com as centrais sindicais, o governo não voltou atrás e sequer negociou as medidas de redução do direito ao seguro-desemprego e de mudanças nas regras de pensão por morte e o auxílio-doença. O governo corre o risco de ficar sem o apoio da direita e da esquerda, que sempre lhe apoiou? 

Bruno Cava - É como a águia bicéfala, que olha para os dois lados: Dilma se alia com as forças mais oligárquicas e conservadoras, enquanto Lula assume o papel de "campeão da esquerda", articulando frentes para fazer oposição... a si mesmo, pois há alguns meses ele fora o cabo eleitoral número 1 da reeleição. Isto é resultado do vazio produzido no interior dos próprios movimentos sociais, seja pela cooptação, seja pelo cerco punitivo e midiático do pós-junho de 2013.

Os movimentos sociais têm dificuldades de se libertar da dependência financeira, política e até simbólica, em relação ao governo Dilma e o PT, mesmo diante do "pacote de maldades". 
O desenvolvimentismo brasileiro de esquerda dos anos 1950 e 1960, dos tempos da CEPAL e ISEB, sempre conseguiu manter aberta a tensão entre modernização e emancipação: falava-se em crescimento econômico, mas também em reformas de base e mobilização popular. Hoje esse desenvolvimentismo, na retórica do governo, é apenas uma ideologia tecnocrática, que inclusive flerta com o ideário nacionalista mais simplório. Belo Monte talvez seja o signo máximo desse progressismo sem conteúdo emancipatório, pelo contrário.

Mesmo assim, apesar de tudo, o bloco do apoio crítico pode continuar ao longo do mandato, bastando as mídias do governo mobilizarem o esquema do "menos pior" e identidades simbólicas de esquerda/direita, embora no mundo real as coisas sejam mais complexas.

O determinante para sustentação do governo, contudo, não estará nesses grupos que têm um alinhamento mais ou menos automático, mas na mobilização social, numa "sociedade em movimento" que ultrapassa aqueles mobilizados diretamente pelos movimentos sociais de formato mais tradicional. O sentido dessa mobilização está em aberto.

IHU On-Line - A crise da Petrobras arrastou o PT junto com ela? O PT entrou em sua fase terminal ou ainda terá sobrevida?

Bruno Cava - O PT sofreu uma derrota eleitoral significativa no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, a ponto de a campanha remover a sigla do material no segundo turno, avaliando que a marca ficou tóxica. A queda da popularidade no começo do mandato também afeta o partido, bem como o Petrolão, haja vista que o partido não só está no governo, como seu quadro dirigente vem aparecendo nas delações premiadas. A vitória de Eduardo Cunha, no Congresso, igualmente impacta, porque compromete a principal bandeira com que o PT pretendia agregar forças sociais, a discussão da reforma política. Mas, no fundo, como disse, essa situação não se abateu sobre o PT sem a sua própria participação na lenta construção da governabilidade peemedebista.

Um partido que se coloca como farol das esquerdas do mundo, mas que precisa apelar para marqueteiros e agências de pesquisa para entender a sociedade local só pode estar com sérios problemas. Havendo mobilização social em escala num futuro próximo, nos cenários mais ou menos agudos, é bem provável que não poupem esse partido de sua parcela de responsabilidade política.

IHU On-Line - Concorda com a avaliação de que o governo Dilma está isolado? Por quais razões?

Bruno Cava - O governo só é vítima de seus próprios erros e decisões erradas, visto que ele tinha os meios. O peemedebismo é nuclear do governo por opção estratégica, com PT e Dilma tendo participado de toda a construção dessa matriz de governabilidade. O isolamento do governo, mais grave, se dá em relação à sociedade. É preciso perguntar de onde vem a "força" capaz de mexer na "correlação de forças". Para o operaísmo italiano, de Antonio Negri ou Christian Marazzi, a força vem sempre da produtividade do trabalho, que não é só econômica: exprime também uma composição política, condensação das qualidades cooperativas e organizativas do trabalho vivo, quer dizer, uma "composição de classe".

Aqui no Brasil, o cientista político Giuseppe Cocco tem usado essa ferramenta de análise ao estudar uma nova composição de classe surgida no Brasil nos últimos 15 anos, a partir da mobilização produtiva dos pobres, chegando a conclusões interessantes sobre possíveis horizontes para um governo aberto aos movimentos. Isto permite sair da armadilha da análise de "correlação de forças", que tem sido uma análise pacificada pelo peemedebismo, bem como dos vícios da esquerda no debate macroeconômico, tendente a deblaterar incansavelmente contra o neoliberalismo enquanto mantém permanente entusiasmo pelo a-b-c keynesiano, sem qualquer capacidade de formular a teoria econômica noutros termos.

O problema é que o governo, preso à ideologia tecnocrática de retórica desenvolvimentista e economicista, tem caminhado cada vez mais para cortar todos os vínculos com a sociedade em movimento e as lutas existentes. As posições de desqualificação sistemática e criminalização do levante de junho-outubro de 2013 foram um sintoma claro desse funcionamento. Isto conduz a uma paranoia antigolpista que tende a codificar qualquer manifestação que não venha dos grupos cooptados como ameaçadoras, bem como qualquer sujeito social indignado com o governo como classe-média reacionária ("coxinha") ou pobres desorganizados ("manipulados"). Na base dessa paranoia está o bloco do apoio crítico que não só é adesista, como justifica a adesão com a imagem odiada do inimigo.

IHU On-Line - Há sinais da retomada do movimento que vimos em junho 2013? Hoje há mais razões para manifestações em massa? Por quê?

Bruno Cava - O espectro de junho está no ar, embora na história nada se repita igual. Se voltar, voltará diferente. Os indignados com a economia, a crise hídrica, a corrupção estão crescendo em número e intensidade. Além das crises se avolumando na conjuntura, existe um movimento mais profundo, quase telúrico, de rechaço do sistema político representativo. Esse rechaço aparece, às vezes, de maneira truncada, num sentimento contra a "classe política", corrupção, gastos excessivos com o supérfluo, projetos de cidade pautados por máfias de ônibus, obras, lixo etc. Mas é igualmente legítimo. Manifestações quando ganham escala são como laranjas, têm muitos gomos enxertados.

Lamentavelmente, parte da esquerda tende a exercer o papel de sommelier dessas manifestações, bastando achar um gomo podre para condenar a laranja como um todo.

É como se tivessem uma concepção prévia do "cidadão médio" ou da "mulher honesta", e apenas esperassem confirmar o preconceito apontando o dedo para massas "protofascistas" que não conhecem nem pesquisaram, ou, na infeliz expressão de André Singer, para o "conservadorismo de fundo". Esquecem como são muitos gomos e como o sentido político comum resultará do suco resultante da mistura dos gomos, um sentido em aberto e francamente disputável. O problema é que, colocando-se fora delas, a tendência é elas se organizarem por outras vias e, aí sim, quem sabe, privilegiando os gomos podres.

IHU On-Line - As ‘jornadas de junho de 2013’ e acontecimentos da conjuntura internacional – vitória do Syriza e crescimento do Podemos na Espanha – têm contribuído para uma articulação no Brasil para a construção de um novo Partido-Movimento? Poderia descrever esse processo?

Bruno Cava - Vivemos numa era de lutas em que a dimensão global está muito presente. No começo das jornadas de junho, lembro-me bem que os manifestantes de primeira hora entoavam o grito: "Acabou o amor; isto aqui vai virar a Turquia!", fazendo referência aos protestos na praça Taksim. Em 2011, a imagem da multidão nas revoluções no norte da África, em Túnis e Cairo, foi tão importante para as lutas globais quanto as próprias revoluções naqueles países. É o que Gilles Deleuze chamava de devir revolucionário, que não se confunde com o futuro da revolução.

Mesmo que a revolução no Egito não tenha conseguido realizar uma democracia real, deflagrou afetos, desejos e imaginários pelo mundo, multiplicando lutas. A primavera árabe atravessou o Mediterrâneo e fez proliferar as acampadas do Movimento do 15-M europeu, que no verão cruzariam o Atlântico para gerar o Occupy Wall Street. Daí por diante pipocaram mobilizações multitudinárias no Oriente Médio, China, Turquia, Brasil, Ucrânia, Hong Kong.


De maneira semelhante, em 2015, partidos-movimentos surgidos da agitação política e cultural desse ciclo de lutas, como o Syriza e o Podemos, também têm a capacidade de contagiar por grandes distâncias, reinflamando o desejo por mudança. E, da mesma forma, mais vale o devir revolucionário que instauram, do que propriamente o futuro desses partidos uma vez defrontados com o desafio de enfrentar as oligarquias dominantes em seus países, dentro do sistema político representativo.

É esperado, então, que grupos mais jovens e dinâmicos busquem se inspirar nas formas adotadas por Syriza e Podemos no Brasil, bem como haverá tentativas de grupos da "velha política" de se camuflarem à imagem e semelhança daqueles, numa operação de "branding".

IHU On-Line - Qual será a alternativa brasileira? Há espaço para um novo partido de esquerda no Brasil? Em que erros ou vícios esse “partido” não pode incorrer?

Bruno Cava - Sim. Embora tenha de ser um partido absolutamente diferente dos demais, um partido de novo tipo, que aliás evite ser chamado de partido, como o Podemos, que prefere ser chamado de protagonismo cidadão, ou o Ganhemos (Guanyem) Barcelona, que se apresenta como plataforma municipalista. A palavra "partido" está, com muita razão, extremamente desgastada, e vai se desgastar ainda mais nesta crise.

Outra inovação importante é borrar as fronteiras entre dentro e fora, simplificar as estruturas e criar o mínimo de diferenciação possível entre filiados e não filiados. Um partido de filiados já começa mal, porque gera desconfiança.

Outro ponto está em desvencilhar-se de simbologias, ideologias e bandeiras que, levadas às ruas e redes, podem até significar muito nas cabeças dos militantes, mas muito pouco para quem está mais preocupado com as lutas reais por transporte, água, saúde, renda, dignidade, paz. Além disso, a discussão entre esquerda e direita está sendo instrumentalizada como dispositivo governista, que percebeu a permanência do potencial depois do fenômeno do voto crítico de esquerda, em 2014. E ainda outro vício consiste no programatismo: a ideia novecentista que um grupo de pessoas fecha um programa e depois vai à sociedade defendê-lo como uma tábua de princípios e propostas sobre as cabeças. É um modo não colaborativo e verticalizado, e uma péssima estratégia de comunicação.

Tenho acompanhado as produções de Javier Toret, um pesquisador e ativista que sentiu na pele o fracasso do Partido X diante do Podemos, e que agora trabalha pelo Guanyem Barcelona, quando explica que a estratégia de comunicação não serve mais apenas para mediar os conteúdos entre partido e sociedade, mas se tornou a própria franja de constituição da relação entre um e outro, uma relação aberta, maleável e que pode se preencher dos conteúdos das lutas de transformação onde elas são mais quentes e vivas.

No caso do Syriza, foram as jornadas anti-austerity, desde pelo menos 2009; do Podemos, foi o 15-M de 2011 até hoje; no caso brasileiro, seriam as lutas de junho, dos indignados, dos pobres, de todos que vêm sofrendo os efeitos da falta de democracia e desejam mudança, participação e poder de decidir.

Bruno Cava é bacharel e mestre em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e engenheiro de infraestrutura aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. É autor de A vida dos direitos (2008) e A multidão foi ao deserto (2013).

(Por Patricia Fachin. Colaboração de César Sanson)

Dilma, carnaval e cinzas (Carlos Melo)




A política é cruel. Talvez, a mais cruel das atividades humanas; e a mais humana também. Ela lida com o Poder, sem condescendência ou apelação. House of Cardsé um modelo simplificado. O certo é que onde há poder, haverá proteção; onde ele falhar, restará um miasma de carniça e um bando de lobos a devorar, em banquete, a carcaça do líder decaído. Até o extraordinário Pombal viveu esta sina: alcoviteiro do Rei, Sebastião José estabeleceu sua vontade e razão sobre o reino, o clero e a nobreza. Morto o Rei, o Marquês foi escorraçado pela rainha traída. Não sabia Pombal que seu poder era nada, que emanava, na verdade, de Dom José.

Pois é, muitos não sabem ou esquecem que o poder que não nasce de si próprio não é poder. É outorga e concessão; é ilusão. É vendaval.

Se já não for tarde, Aloizio Mercadante precisa lembrar disto — com urgência: o suposto poder que expressa não emana de si; é reflexo do frágil poder de uma presidente que, em algum momento, buscou no espelho a si mesma: “existe alguém mais poderosa do que eu?” E seu ministro respondeu: “claro que não!” Parecia música para ouvidos que pouco escutam, como é o caso dos dois. Mas, ambos erravam feio, é claro.

O poder de Dilma emanava da economia, da inclusão social, dos automóveis comprados à prestação, das farras dos cartões de crédito, das compras na 25 de março ou em Miami. Finda a festa; findo o encanto. Tudo rui e torna-se precário. Uma sucessão de eventos surge apenas para comprovar o fato: o poder que parecia forte era frágil. Quase nunca há esperança para tigres desdentados. Será o caso? Difícil afirmar. O fato é que o Carnaval, definitivamente, acabou e agora são cinzas.

Nos últimos dias, a imprensa noticiou, mais que escaramuças internas, um jogo voraz: Aloizio Mercadante virou alvo de seus companheiros. A caça a um presumido culpado é sempre sinal de desespero. Para preservar Dilma, sem ordem nem comando, a alcateia se lançou numa tangente contra o ministro. Faz sentido: Mercadante é anel; Dilma, os dedos. A impressão que se deu foi de que uma baixela era reservada para ser adornada com a cabeça do chefe da Casa Civil. Inadvertidamente ou não, em silêncio a presidente deixou chiar o azeite em que se fará a pururuca de seu ministro.

Dilma sabe que está sob ataque: luta em mais de uma dezena de frentes de conflito simultâneos. Um trabalho para Hércules quando não há mais Hércules. Falta-lhe flexibilidade, habilidade, estratégia, time e confiança. Nessa velocidade e trajetória, sua equipe tende ao esfacelamento: críticas internas, mexericos, tiros amigos, revelações de diálogos que somente os envolvidos diretos deveriam saber. Tudo revela a crise de comando; o vazio de poder.

A presidente está emparedada por circunstâncias que construiu, contando, é claro, com o dócil incentivo adulador de seu ministro. Ainda assim, esse negócio de “sequestro do governo”, mais que exagero, é diversionismo: no limite, responsável é quem está ou deveria estar no comando; não o comandado. Dilma não é Dom José e Mercadante está longe de ser Pombal.

As margens de manobra da presidente se estreitaram e estão se estreitando. Como tem sido apontado, o centro de poder político se deslocou do Executivo para o Congresso Nacional. O governo perdeu a iniciativa e tem perdido a batalha de comunicação ao mesmo passo em que Eduardo Cunha se impõe e já começa a ser avaliado como mal necessário. Em terra de cegos, caolho é mesmo estadista.

Aparvalhada com derrotas no Congresso, problemas na Petrobrás e na economia, uma Dilma relutante procurou a ajuda de seu criador, Lula. Mas, o ex-presidente não é Deus. A interlocução que possui com o sistema político tem limites: não basta recorrer a Sérgio Cabral, Eduardo Paes ou ao governador Pezão; Cunha adquiriu luz própria e não entregaria a terceiros o capital político que hoje é seu. Por que o faria? É um jogador que namora o perigo. O que vier — se vier –, quando vier, se verá. Não adianta especular.

Também no âmbito do governo, Lula é incapaz de fazer aquilo que Dilma, com legitimidade formal, não consegue ou não quer empreender. Junto com sua sucessora, as alternativas do ex-presidente se estreitam: não há mais diálogo com setores médios urbanos e com os meios de comunicação. Mesmo o movimento sindical e o funcionalismo tendem a vulcanizarem-se com os efeitos do inescapável ajuste. No mais, sua capacidade de comunicação com a massa de deserdados também só será efetiva na proporção em que o ajuste na economia não atinja os mais pobres por meio do desemprego. Difícil que não ocorra; complicada equação! Procrastinar o ajuste, tampouco, parece solução.

O fundo do poço que ainda nem se avista pode muito bem ser falso. Há espaço e gravidade para continuar caindo. O que virá das delações premiadas ninguém será capaz de afirmar. Quem será atingido, quem sairá ileso? Como se fosse pouco, o processo ficará confinado à Petrobrás?

A quaresma tende a ser longa e de muita provação; Exús estarão soltos. Para a política será um período de reza, contrição, penitência e mortificações. Sabe-se lá quão distante no tempo está o final.

No sábado de aleluia, quantos Judas estarão nos postes? Neste Carnaval, malhou-se um “Boneco de Olinda”, dada sua visibilidade. E ele atendeu pelo nome de Mercadante. Difícil que fique por ai.

Mesmo sem água, as águas vão rolar!

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
Fonte: O Estado de São Paulo (19/02/15)

Mãos limpas à brasileira (Luiz Sérgio Henriques)





Dados os acontecimentos em torno da Petrobrás e suas conexões com o sistema político e empresarial, tornou-se regra a referência à Operação Mãos Limpas, que nos anos 1990 abalou a primeira República italiana, nascida sobre os escombros do fascismo, levando de roldão partidos solidamente enraizados, como, em particular, a Democracia Cristã e o Partido Socialista.

No cenário delineado pela queda do Muro de Berlim e pela dissolução do socialismo real, a famosa operação judicial desvendou boa parte da intrincada rede de corrupção no país que fora uma das fronteiras mais "quentes" da guerra fria. Ruía assim, estrepitosamente, a "Tangentopoli", a cidade da propina, que mantinha azeitado um poderoso sistema de poder, sustentado, ainda por cima, pela relação de forças internacionais típica do período.

Os democratas-cristãos dirigiram o Estado e o próprio processo de modernização do país, administrando de modo "transformista" - cooptando e recrutando para funções em geral subalternas - forças moderadas da esquerda, como o tradicionalíssimo PSI. O principal partido de oposição, com toda a sua progressiva "heresia" em relação ao monolítico mundo soviético, era o PCI. Um partido de cultura política e intelectual acima do comum, participante ativo da modernização, especialmente por administrar com espírito plural algumas das regiões mais ricas e por protagonizar embates como o do divórcio e o dos direitos reprodutivos da mulher. E, apesar disso, condenado a uma situação "eternamente" minoritária e oposicionista.

Mais além dos escandalosos casos de malversação do dinheiro público e do comprometimento entre máfias, lojas maçônicas suspeitas e altas esferas da política e da economia, esta era a raiz de "Tangentopoli": a interdição da competição democrática, com o veto - contrário à legalidade, mas amparado pela "constituição material" do país - à presença de uma importante força popular na área de governo, fosse ainda nas condições do cauteloso "compromisso histórico" pactuado entre dirigentes da envergadura de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, para fazer referência à conjuntura de meados dos anos 1970, anterior às "mãos limpas".

Como não pode deixar de ser, entre o mundo de ontem e o nosso mundo há todo um enredo tecido de continuidades e descontinuidades. Para apontar um dado de total descontinuidade, caíram por terra, mesmo na turbulenta América Latina, os vetos que impediam à esquerda, em sentido lato, aceder aos governos e conquistar vistosas bancadas parlamentares, além de buscar a correspondente implantação social. Uma novidade "epocal", que passou a legitimar, de uma só vez, todos os atores que se dispusessem a jogar o jogo das instituições, articulando a partir desse terreno privilegiado propostas, concorrentes entre si, de reforma do Estado e da sociedade.

Só personagens egressos da guerra fria, que, deixados a si mesmos, guardariam até uma certa bizarrice, podem atribuir aos sucessivos governos petistas a intenção de "implantar o comunismo", mediante programas como o Bolsa Família, abençoados por instituições financeiras globais. Inversamente, só os ideologicamente alucinados podem detectar nas dificuldades enfrentadas pelo regime chavista a mão pesada do "império", como se houvesse algum termo de comparação possível entre os males que afligiram ou afligem os bolivarianos Hugo Chávez e Nicolás Maduro e as sangrentas vicissitudes que derrubaram Salvador Allende.

Mas continuidades também existem e não é anedótico ou irrelevante, por exemplo, que um dos governos petistas - para não mencionar a "sociedade civil" que sustenta esse partido - tenha acolhido controverso personagem da esquerda armada italiana dos anos 1970, aparentando escassa compreensão da pacífica circunstância eleitoral que o trouxe ao poder de Estado a partir de 2003. Ao mesmo tempo, a solidariedade com os regimes ditos bolivarianos, nos quais a alternância parece um verbete cancelado, faz temer que no cerne do petismo também operem categorias de uma esquerda atrasada, para a qual as dinâmicas institucionais contam pouco - e tudo se resolve em "disputa política" na qual estão franqueados golpes abaixo da linha da cintura.

Segundo os parâmetros dessa luta, e a exemplo das realidades bolivarianas, constrói-se agressivamente uma resposta à questão clássica de um arquiconservador: "Quem é meu inimigo?". O inimigo seria a social-democracia à moda do PSDB, travestida pura e simplesmente de neoliberal, assim como outrora stalinistas estigmatizavam social-democratas como "social-fascistas". E assim como, entre nós, "neoliberais" ou "golpistas" serão todos os adversários - Marina, Aécio ou quem quer que se apresente como ameaça eleitoral.

O problema com categorias anacrônicas é que se chocam com as exigências da política em situações complexas. Imaginando interditar o funcionamento natural das instituições, possibilitam a interpretação de que, em outra época e latitude, se tenta armar um sistema de poder espraiado pelos organismos de Estado e pelo sistema de empresas públicas, como na Itália antes das "mãos limpas".

Lá, a investigação judicial teve como alvo um sistema que girava em torno de democratas-cristãos e socialistas (dos tempos de Bettino Craxi), ao passo que, no núcleo duro da esquerda, havia um agrupamento que, não sem contradições, elaborou o lema (atualíssimo!) da "democracia como valor universal". Aqui, desgraçadamente, pode-se conjeturar que o eixo central girou, ou gira, em torno do principal partido de esquerda, como a confirmar que tentações autoritárias desconhecem cor ideológica. Faltando freios legais, a sedução do poder é fatal: não há quem dela se esquive, ainda que com doce constrangimento e dose maciça de sofismas.
Fonte: O Estado de São Paulo (15/02/15)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O 'distritão' (Michel Temer)





Um dos primeiros temas da reforma política é o da forma de eleição dos deputados federais, estaduais e vereadores, escolhidos hoje por voto proporcional. Dele deriva o chamado quociente eleitoral. Se o quociente é de 300 mil votos, o partido que obtém 900 mil votos elege três deputados federais. Não importa a votação de cada candidato, mas o total obtido pela legenda partidária. Em exemplo mais expressivo: se um candidato da legenda faz 1,5 milhão de votos e os demais correligionários 4, 10 ou 20 votos, o partido leva para a Câmara cinco deputados.

É contra essa fórmula que a nossa pregação pelo "distritão" ou voto majoritário se insurge. Esse sistema significa que os mais votados serão eleitos. São Paulo tem 70 deputados que seriam eleitos segundo a ordem de votos obtida. As razões que fundamentam essa forma são de natureza jurídica e política.

Primeiro, a fundamentação jurídica. A Constituição de 1988 adota retumbantemente a democracia como regime de governo. Significa: a maioria pratica os atos de governo, respeitando a minoria.

Nessa concepção o primeiro registro que se deve fazer é que o titular do poder é o povo. Essa é a regra fundante do nosso sistema democrático. Presidentes, governadores, prefeitos, tribunais governam pelo critério da maioria. Os três primeiros se elegem por essa forma, exigindo-se às vezes maioria absoluta. Nos tribunais as decisões judiciárias (que são atos de governo) se dão por maioria de votos.

Nas casas legislativas a regra constitucional para eleição das mesas diretoras e das comissões deve obedecer ao princípio da proporcionalidade do maior para o menor. A única exceção à determinação de que a maioria é que fala em nome do povo se dá no caso do sistema eleitoral ora vigente, que é o critério da proporcionalidade obtido no quociente de votos. Já houve caso concreto de um deputado federal eleito com cerca de 1,5 milhão de votos que conduziu pela legenda mais quatro deputados - um deles com 382 votos (e que residia de fato em outro Estado). Enquanto um candidato de outra legenda com 128 mil votos não foi eleito, em face do chamado quociente eleitoral.

Aqui se impõe a pergunta: quem representava mais corretamente a regra segundo a qual o poder emana do povo, o de 382 ou o de 128 mil votos? Faço esse registro porque o parlamentar que vota a favor ou contra um projeto de lei está praticando ato de governo e agindo em nome do povo.

Portanto, a manutenção da proporcionalidade eleitoral partidária para eleição dos deputados viola aquela regra definidora do titular do poder, permitindo que um representante da maioria (128 mil) seja alijado por um representante de inexpressiva minoria (382). Se pudesse haver inconstitucionalidade de norma constitucional, diríamos que esta fere o princípio basilar do nosso sistema. Mas não há. Daí por que precisamos modificar a regra constitucional para obedecer ao princípio da maioria.

Hoje o sistema proporcional prestigia o partido político em detrimento da vontade da maioria popular. Entre dois valores constitucionais, vontade majoritária e partido político, deve prevalecer o primeiro. A contradita a essa tese é a de que a nossa fórmula desvaloriza os partidos políticos. Digo que não. Primeiro, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela fidelidade partidária daqueles que são eleitos pela legenda e na emenda constitucional que vier a estabelecer o voto majoritário artigo seguinte estabeleceria a fidelidade como critério. Ou seja, o mandato continuaria a ser do partido.

Outro fundamento jurídico para esta tese é a do artigo 14 da Constituição, que define o voto como direto e secreto e com valor igual para todos. Ora, a proporcionalidade desiguala o voto do eleitor. Não é igual o voto dado para quem teve 128 mil e para aquele que teve 382.

Além da razão jurídica, há razões políticas que amparam o "distritão". Fala-se muito na eliminação das coligações partidárias. Qual o objetivo delas no sistema proporcional? É aumentar os votos das legendas para efeito de ocupação de cadeiras na casa legislativa. Adotado o voto majoritário, os partidos não terão interesse nas coligações. Outro dado: quando o partido organiza a sua chapa de deputados federais, que pode ser uma vez e meia o número de cadeiras que cabem ao Estado, vai procurar candidatos que às vezes não têm mais que 500 votos apenas para engordar o quociente partidário. Ou, então, busca uma figura muito popular e fora dos quadros partidários que possa trazer 1,5 milhão ou 2 milhões de votos.

A proposta não impede tais cidadãos de concorrer. Poderão fazê-lo e eleger-se, mas não levarão consigo deputados que não tiveram votos ensejadores da maioria. Outra vantagem é que se hoje o partido (tomo o exemplo de São Paulo) pode apresentar 105 candidatos, e o faz, com vista ao quociente eleitoral, deixará de fazê-lo. Será certo que os partidos meditarão sobre quantas vagas poderão obter. Se forem cinco ou seis, o partido não lançará mais que 12 ou 15 candidatos, tornando mais programáticas suas falas, no rádio e na televisão e no material de propaganda, e menos caras as campanhas eleitorais.

Outras soluções podem ser debatidas para as eleições de deputados estaduais e vereadores, cujas características são distintas dos deputados federais. Estes não são representantes do povo do Estado (papel dos senadores). Representam o povo brasileiro domiciliado eleitoralmente no Estado e legislam para todo o País, avaliando as aspirações do povo brasileiro de seu "distritão" (Estado).

Essas são algumas ideias que ofereço para continuar o debate da reforma política. O momento é agora. Não devemos mais postergar a votação dessa importante matéria para aprimorar nossa democracia e reaproximar partidos políticos do povo.

Fonte:  O Estado de São Paulo (14/02/15)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

‘Segundo governo Dilma. Guinada à direita? Não! Um ‘cavalo de pau'. (Luiz Werneck Vianna/entrevista)





• “A pior coisa que ocorreu foi o desencanto e o fato de o país olhar em torno e ver que não há nenhum projeto de futuro que seja persuasivo, que mantenha capacidade de encantamento; estamos sem rumo”, lamenta o sociólogo.

“O governo está perdido e confuso. A situação é preocupante”. A resposta direta e sem rodeios é do professor Luiz Werneck Vianna, sociólogo brasileiro que acompanha com inquietação as medidas anunciadas pela presidente Dilma nos primeiros 50 dias de seu segundo mandato. Embora enfatize que “o rumo dos acontecimentos no primeiro mandato dela apontava para uma direção de retorno da inflação e baixo crescimento”, para o eleitor há surpresas no segundo governo, “porque foi dito uma coisa e outra coisa foi feita”, pontua.

De acordo com o sociólogo, embora na campanha eleitoral PT e PSDB fizeram esforços para aparesentar programas políticos e econômicos distintos, há uma coalização entre os partidos, que se expressa na nomeação do Levy. "Um diálogo que está implícito aí é o Levy e o seu programa econômico, que é o programa econômico do PSDB. Então, num certo sentido, há uma coalizão aí não declarada".

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Werneck Vianna identifica ainda mais dois problemas centrais que estão por trás do atual momento político e econômico do país. O primeiro, esclarece, é a aposta da presidente no “caminho do nacional desenvolvimentismo. Esse caminho está exausto. Ele teve seu momento décadas atrás, mas agora não há como continuar. O mundo evoluiu e não há mais folego para uma política desse tipo”.

Segundo ele, "faltou coragem intelectual e competência também para admitir que as circunstâncias foram outras. Então, levou-se até o fim essa possibilidade esgotada na campanha eleitoral, mas com o fim da campanha eleitoral, não havia prerrogativa se não mudasse”.
O segundo problema diz respeito à relação da presidente com o PT. “Que está havendo atritos e ruídos na relação da presidente com o PT, que é o partido dela, é evidente. Isso está presente no cotidiano, estampado nos jornais. E isso é muito perigoso, porque a presidente precisa de um partido que a sustente”, enfatiza.

Diante da queda de popularidade da presidente Dilma pouco mais de um mês depois de assumir o segundo mandato, o sociólogo é enfático: “Agora é difícil para ela, porque ela fez uma campanha política dizendo que estava tudo bem. Mas de qualquer forma, ela tem de dizer que se antes estava tudo bem, agora a situação é outra e é preciso fazer mudanças, ou seja, que neste momento ela precisa fazer uma mudança de rumo no que se refere a aspectos da sua política. Mas ela não fez nada: mudou e não falou nada; ficou muda”.

Nos últimos dois anos, Werneck Vianna esteve entre os sociólogos brasileiros que acompanharam as causas e as consequências das manifestações de massa que iniciaram em 2013 e assegura que embora não tenha havido um retorno de manifestações massivas no país, “a insatisfação agora é mais funda. Se ela vier à tona vai ser muito difícil domesticá-la, porque aí diz respeito aos rumos do país e não a políticas setoriais como foi em 2013, quando as manifestações foram organizadas em torno de políticas públicas específicas, como da saúde, do transporte. Agora, se vier, virá por uma agenda geral”.

Ele sugere que em algum momento os partidos políticos “mais responsáveis e presentes” terão de encontrar uma “saída para o impasse que aí está para evitar o terremoto que pode abalar as estruturas políticas do país, ameaçando as conquistas que fizemos ao longo desse tempo”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Sendo sociólogo, como o senhor está enxergando o Brasil hoje, considerando que há dois anos ocorreram manifestações em massa, depois a presidente Dilma foi reeleita, e já no primeiro mês do segundo mandato, a popularidade dela caiu por conta dos ajustes anunciados, entre eles, as medidas de austeridade, como o aumento dos impostos, o aumento da energia, o aumento da gasolina, a crise da Petrobrás? O que está acontecendo?

Luiz Werneck Vianna – O governo está perdido e confuso. A situação é preocupante.

IHU On-Line - O senhor percebe mudanças no governo Dilma em relação ao discurso que levou à reeleição da presidente e o primeiro mês e meio de sua gestão? Concorda com as teses de que o governo deu uma guinada à direita ou pode-se dizer que se trata de um governo de continuidade?

Luiz Werneck Vianna – Uma guinada à direita não é bem o caso; ela deu um “cavalo de pau”. O rumo dos acontecimentos no primeiro mandato dela apontava para uma direção de retorno da inflação e baixo crescimento econômico – tudo isso estava no radar. Aliás, as candidaturas de oposição batiam exatamente nessa direção, na necessidade de mudança na orientação.
O problema da Dilma é que ela pensa que é economista; ela pode ser tudo, mas ela não é a economista que ela pensa que é. Tanto que quando ela assumiu as rédeas da economia, junto com o Mantega, ela enfiou o país num beco sem saída. Então, não tinha jeito, tinha de mudar.

IHU On-Line – Considerando esse cenário previsto anteriormente de baixo crescimento para este ano, então não há surpresa em relação às mudanças anunciadas no segundo mandato ou há?

Luiz Werneck Vianna – Não, certamente. Mas para o eleitor há, porque foi dito uma coisa e outra coisa foi feita. Agora, o caminho em que a situação se encontrava não permitia a reiteração, porque era o caminho errado. E não à toa Dilmafoi chamar economistas que na verdade perfilavam o programa do adversário.

IHU On-Line – Foi acertada a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda?

Luiz Werneck Vianna – Acho que foi, porque se ela continuasse no caminho em que estava, a crise seria maior ainda.

IHU On-Line - Quais são as principais crises e contradições do atual governo Dilma?

Luiz Werneck Vianna – Ela apostou no caminho do nacional desenvolvimentismo. Esse caminho está exausto. Ele teve seu momento décadas atrás, mas agora não há como continuar. O mundo evoluiu e não há mais folego para uma política desse tipo. A globalização e a internacionalização da economia são um fato, são uma realidade.

IHU On-Line – O governo Lula iniciou seu mandato com o projeto nacional desenvolvimentista. Em que momento o governo Dilma, como continuidade do governo Lula, deveria ter mudado de projeto ou deveria ter percebido que este projeto estava esgotado, como o senhor está dizendo?

Luiz Werneck Vianna – Faltou coragem intelectual e competência também para admitir que as circunstâncias foram outras. Então, levou-se até o fim essa possibilidade esgotada na campanha eleitoral, mas com o fim da campanha eleitoral, não havia prerrogativa se não mudasse.

IHU On-Line - As circunstâncias das quais o senhor fala, que deveriam ter levado a uma mudança de projeto, foram consequência de fatores internos ou externos? Pode exemplificar alguns?

Luiz Werneck Vianna – As duas coisas. Os internos são a baixa capacidade de investimento, o afastamento do empresariado do governo Dilma, e o desencanto com uma proposta que já estava claro que já tinha dado o que tinha que dar.

IHU On-Line - Qual é o significado da eleição de Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados e de Renan Calheiros no Senado?

Luiz Werneck Vianna – A eleição de Renan Calheiros era muito esperada, inclusive porque ele é muito confiável do ponto de vista do governo. Por outro lado, Cunha vinha acumulando forças em nome de algumas coisas até importantes, como a independência do Poder Legislativo, e ele foi capaz de galvanizar em torno dele o baixo clero e setores inconformados com a política do governo, inclusive da própria base aliada, conforme se viu.

IHU On-Line - Que papel jogará o PMDB no segundo mandato de Dilma?

Luiz Werneck Vianna – O PMDB é chave. Ele está mais encorpado e autonomizado agora em relação ao governo. OPMDB percebeu que estava sendo alijado pelo governo e esse foi um dos motivos, inclusive, que propiciou a maciça adesão, por parte do PMDB, à candidatura de Eduardo Cunha. Enfim, as urnas apontavam para o fato de que o PMDB tinha se fortalecido, mas a presidente, que tem um vice-presidente do PMDB, não reconhece o fato e montou um ministério com uma influência reduzida do PMDB, e o PMDB reagiu. Além do fato de o Eduardo Cunha agrupar em torno dele todas as demandas corporativas na classe política e também de agrupar a reação a essa agenda comportamental, digamos, libertária, de alguns setores, como o tema da sexualidade, do aborto. Então, ele se tornou um candidato muito poderoso por vários motivos. Ele tem uma agenda política, uma agenda corporativa e uma agenda das questões comportamentais. Agora a presidente vai ter de saber coexistir e conviver bem com ele. A situação é preocupante.

IHU On-Line – O senhor concorda com a tese de que o governo Dilma está muito isolado neste segundo mandato? Se sim, quais são as razões e os possíveis riscos disso?

Luiz Werneck Vianna – Que está havendo atritos e ruídos na relação da presidente Dilma com o PT, que é o partido dela, é evidente. Isso está presente no cotidiano, estampado nos jornais. E isso é muito perigoso, porque a presidente precisa de um partido que a sustente.

IHU On-Line – Quais são as razões dos atritos entre ela e o partido? Isso representa uma crise ainda maior do próprio partido?

Luiz Werneck Vianna – Um dos motivos é que tal como o PMDB, as facções majoritárias do PT foram deslocadas na hora da composição do governo: os homens da democracia socialista passaram a ter uma posição mais encorpada do que as correntes majoritárias do PT. Então isso também pesa. Além do fato de que a presidente não é capaz de justificar, de forma clara, para o mundo da política, para os eleitores, para os cidadãos em geral, qual é o sentido da política dela, ou seja, por que ela adotou a linha, em termos de programa econômico, do seu adversário. Isso tem de ser dito e explicado. Ela tem de apresentar um diagnóstico. Agora é difícil para ela explicar, porque ela fez uma campanha política dizendo que estava tudo bem. Mas de qualquer forma ela tem de dizer que se antes estava tudo bem, agora a situação é outra e é preciso fazer mudanças, ou seja, que neste momento é preciso fazer uma mudança de rumo no que se refere a aspectos da sua política. Mas ela não fez nada: mudou e não falou nada; ficou muda.

IHU On-Line - É possível identificar um núcleo duro hoje no governo?

Luiz Werneck Vianna – É o pessoal do teu estado, a Democracia Socialista do Rio Grande do Sul, a Dilma, Aloizio Mercadante, que não é o “Ás” da política que dizem que ele é.
Tudo vai depender do que o PT vai fazer, especialmente o Lula. A presidente precisa ter um partido que a sustente. Se ela ficar sem partido, vamos repetir o caso do Collor e aí o impeachment seria inevitável. A pior coisa que ocorreu foi o desencanto e o fato de o país olhar em torno e ver que não há nenhum projeto de futuro que seja persuasivo, que mantenha capacidade de encantamento; estamos sem rumo e não podemos ficar assim.

IHU On-Line – Essa falta de encantamento não é repentina. O que houve? Não foi diagnosticada a tempo?

Luiz Werneck Vianna – Sem dúvida, mas isso aconteceu por causa do pragmatismo. O pragmatismo é bom em política, mas ele não pode prescindir de um elemento de convicção. A ética da responsabilidade – essas categorias célebres da obra de Weber - é incontornável, mas ela não pode abdicar de uma ética de convicção. O que ocorreu ao longo desses governos foi que as convicções foram jogadas fora, postas embaixo do tapete. A ética de responsabilidade nos levou ao pragmatismo que só consultou as suas razões e pôs a marca maior no presidencialismo de coalizão que temos, que é uma forma degradada de política.

IHU On-Line - Assiste-se hoje a um crescente movimento interno no PT com a convocatória “Lula 2018” como tábua de salvação da continuidade do PT no poder. Como interpreta esse movimento?

Luiz Werneck Vianna – Isso a meu ver não ajuda porque apenas põe em parêntese quatro anos. Quatro anos é muito tempo. Como era o mundo há quatro anos? Como era o Brasil há quatro anos? Diferente e, em alguns casos, radicalmente diferente. As coisas não vão permanecer iguais até que chegue a hora da convocação da próxima sucessão presidencial. O que se tem de pensar é como garantir condições de operação do governo que aí está.

IHU On-Line - Parcela do movimento social brasileiro tem levantado a bandeira da reforma política. Como interpreta essa bandeira no contexto da atual conjuntura?

Luiz Werneck Vianna – O presidente da Câmara já assumiu o compromisso de levar a iniciativa legislativa que já existe a voto. Isso vai encontrar uma decisão, mas é claro que isso vai demorar porque o projeto de reforma que está no Congresso agrada apenas parcialmente, mas não agrada a todos. Vai ser difícil encontrar um consenso, mas como a opção foi de encaminhar a reforma política de modo “fatiado”, é possível que os aspectos de difícil aceitação sejam logo rejeitados e as partes, digamos, mais saudáveis da reforma persistam. Esse é um caminho possível.

IHU On-Line - Diante das manifestações que ocorreram em 2013 e no passado, vislumbra a possibilidade de novas manifestações por conta do aumento da tarifa de energia, do provável aumento da tarifa de água - já anunciado -, e do aumento da gasolina, que possivelmente irá gerar aumento no valor da passagem do transporte público e dos alimentos?

Luiz Werneck Vianna – Tem havido algumas movimentações, especialmente em São Paulo, mas elas não têm, pelo menos por enquanto, a mesma envergadura do que se encontrou em 2013. E as manifestações de massa, se vierem, virão por essa agenda que você mencionou, por conta do custo de vida, da inflação.

IHU On-Line – Há razões para ir às ruas hoje como se teve em 2013?

Luiz Werneck Vianna – A insatisfação agora é mais funda. Se ela vier à tona vai ser muito difícil domesticá-la, porque aí diz respeito aos rumos do país e não a políticas setoriais como foi em 2013, quando as manifestações foram organizadas em torno de políticas públicas específicas, como da saúde, do transporte. Agora, se vier, virá por uma agenda geral.

IHU On-Line – E se as manifestações vierem, poderá haver risco de impeachment?

Luiz Werneck Vianna – Penso nessa possibilidade com muita preocupação porque não gosto dessa saída institucional, mas, como disse o senador Cristovam Buarque, em declaração recente no Senado, isso já está nas ruas. Mas isso seria, a meu ver, um terremoto. A presidente tem de procurar dialogar. Um diálogo que está implícito aí é o Levy e o seu programa econômico, que é o programa econômico do PSDB. Então, num certo sentido, há uma coalizão aí não declarada.

Os principais protagonistas da política brasileira deviam propor uma saída suprapartidária no sentido de defender as instituições e a democracia brasileira. André Lara Rezende escreveu há poucos dias um artigo no Estadão em que os últimos parágrafos são dedicados precisamente a essa possibilidade de uma “quase que” – não estou dizendo “de” - união nacional.

Mas precisa de muita maturidade para realizar isso, porque do contrário essa crise pode se tornar infernal, especialmente se ocorrer a reiteração de movimentações massivas como aquelas de 2013, onde certamente o termo impeachment vai aparecer. É necessário evitar isso urgente. Mas está difícil ver quem seria um dos portadores dessa boa mensagem.

IHU On-Line - O governo em negociação com as centrais sindicais não voltou atrás e sequer negociou as medidas de redução do direito ao seguro-desemprego e de mudanças nas regras de pensão por morte e o auxílio-doença. Como interpretar esse endurecimento do governo?

Luiz Werneck Vianna – Essa foi também uma coisa mal conduzida. Que há distorções, há, que há fraude, há. Que isso tem de ser corrigido, tem, mas isso tem de ser dito. Isso tudo tinha de ser concebido de forma consensual, as centrais sindicais tinham de ser chamadas e a situação tinha de ser exposta para mostrar qual é o tamanho da fraude e do buraco que as distorções têm trazido para a política fiscal brasileira, e aí chegar a um consenso. Mas não, o assunto caiu como um relâmpago de cima para baixo.

IHU On-Line – Algumas notícias dos últimos dias informam que o ex-ministro Mantega havia dito aos representantes das centrais sindicais, no ano passado, que ajustes seriam feitos neste ano. Mas essa questão não foi informada nas eleições. Por quê?

Luiz Werneck Vianna – O debate eleitoral foi muito pobre. O tema da distribuição de renda, por exemplo, não apareceu nas eleições. Thomas Piketty fazendo um sucesso danado nas livrarias e na imprensa, mas esse tema passou ao largo nas eleições e ninguém quis se aventurar nele. Todas as questões polêmicas foram contornadas no debate eleitoral por falta de coragem política de apresentar as ideias com medo da perda de votos.

A presidente da República é claramente favorável ao aborto, mas essa é a última questão que ela irá trazer para o debate. Com essa covardia política, conforme denunciou o candidato do PV, Eduardo Jorge, de os candidatos não apresentarem de fato suas posições, elas não vêm à tona e não resulta em educação cívica, e a política fica uma coisa meio eleitoreira.

IHU On-Line - Outro movimento social, ao lado da CUT, que tem endurecido o discurso contra o governo é o MST, principalmente após a nomeação de Kátia Abreu. O governo corre o risco de perder apoio junto a bases tradicionais do movimento social?

Luiz Werneck Vianna – O MST é ambivalente; foi assim com Lula também. O MST é outro que não se assume, não sai do armário. O MST é o que: um movimento social ou um partido político?
Faz falta, no sistema político brasileiro, um partido que tenha mais representação agrária real. O MST poderia ter se tornado esse partido ou então, se não quisesse, que fosse uma facção de outro partido, como, por exemplo, do PT. Mas não quis; ele prefere atuar como movimento social, mas é muito dependente do governo. Quem dá dinheiro para o trabalho do MST, para as escolas do MST? De onde vem esse dinheiro? É do governo. Então, é um movimento muito ambivalente e não creio que o MST tenha esse poder de fogo.

IHU On-Line - Como o senhor está “lendo” a atual crise da Petrobras?

Luiz Werneck Vianna – Essa é uma crise terrível porque afeta uma empresa que é um símbolo do país, do desenvolvimento e da industrialização do país. A Petrobras cresceu demais, cresceu mais do que podia e com uma velocidade que não permitiu que os passos fossem bem calculados. Foi uma corrida vertiginosa contra o tempo à base de uma visão mágica de que com o pré-sal nós iriamos saltar para o mundo desenvolvido. Claro que o pré-sal é um recurso importante, mas isso tudo exigia mais ponderação, um cálculo mais refinado. Mas uma ambição desmedida tomou conta do governo. A empresa tem de ser defendida e tem de ser regenerada.

IHU On-Line – Como o avalia a renúncia coletiva da direção da empresa, na semana passada?

Luiz Werneck Vianna – Ao que tudo indica a Graça Foster desistiu, não suportou mais o curso dos acontecimentos. APetrobras foi muito mal administrada politicamente e não só politicamente, mas gerencialmente. A empresa precisa ter sua lógica própria. Rebaixar o preço da gasolina como se fez, penalizou a Petrobras. Vamos ver se a empresa consegue se recuperar agora.

IHU On-Line - Há possibilidades de um novo partido que preencha o vácuo do PT? Como vê a articulação em curso a partir do Rio e de São Paulo em torno da criação de um partido similar às experiências do ‘Syriza’ da Grécia e do ‘Podemos’ da Espanha?

Luiz Werneck Vianna – Em primeiro lugar, fala-se disso (do surgimento de um partido como o Podemos no Brasil), mas não há esboço disso (da criação do partido no Brasil) nem de longe. Em segundo lugar, tanto o movimento grego como o espanhol são movimentos de jovens educados politicamente, com trajetórias políticas articuladas. A juventude brasileira não está nesse nível; ela está ainda viciada nos manuais revolucionaristas das décadas anteriores. Então não tem novidade política e intelectual nesses movimentos juvenis. Basta ver os black blocs; é um modelo exemplar disso. Uma das moedas correntes na juventude é o anarquismo, mas com o anarquismo não se faz o poder, oPodemos, não se faz o Syriza.

IHU On-Line – O anarquismo já está superado enquanto uma “possibilidade” para se chegar ao poder, ou uma reação ao poder instituído?

Luiz Werneck Vianna – O anarquismo tem lá os seus encantos poéticos, agora, para governar o mundo é preciso algo além disso. Mas voltando ao ponto, a juventude brasileira não está se educando para uma intervenção do tipo da que ocorre na Espanha e na Grécia; ela está olhando para o passado e é prisioneira de uma história que já passou, ainda vive no bovarismo. Os jovens não são modernos. Não estou vendo até agora algo que reitere a experiência espanhola e grega. Não vejo pistas e indícios disso.

IHU On-Line - O que o futuro reserva ao Partido dos Trabalhadores? Conseguirá recuperar a vitalidade que um dia teve com as “ruas” ou sobreviverá apenas de sua história?

Luiz Werneck Vianna – O futuro a Deus pertence, agora, o que o PT trouxe na época de sua formação está perdido. Se ele terá condições de encantar e reanimar de algum modo a sua vida e ter um discurso persuasivo para a população, vai depender dele. Ainda não deu os sinais disso. O PT hoje é um partido sem intelectuais.

IHU On-Line – Ao mesmo tempo alguns intelectuais estão tentando pensar novos rumos para a esquerda no Brasil. O que falta para eles?

Luiz Werneck Vianna – É, há, mas essas esperanças dos gregos e dos espanhóis, a meu ver, são muito ingênuas porque não há nada que esteja fermentando em nossa sociedade que indique essa possibilidade. Acho que vamos ter de contar com os partidos que estão aí.

Inclusive, tentei sinalizar nesta entrevista, em algum momento, a necessidade de os partidos mais responsáveis e presentes encontrarem uma saída para o impasse que aí está e para evitar o terremoto que pode abalar as estruturas políticas do país, ameaçando as conquistas que fizemos ao longo desse tempo. O melhor instrumento que nós temos é a Carta de 88 e as suas instituições. Então, temos de vigiar essa crise com recursos institucionais que estão ao nosso dispor, como o Ministério Público, o Judiciário. Temos de impedir que essa crise desate uma situação incontrolável de todos contra todos.

Por Patricia Fachin. Colaboração de César Sanson - IHU On-Line