segunda-feira, 1 de julho de 2013

Primavera ou Outono? (R. Penna)


Alguns pensamentos aleatórios sobre as revoltas da atualidade e sobre seus elementos em comum.



Tedd Gurr escreveu, em 1970, um livro que rapidamente tornar-se-ia um clássico das ciências sociais: ”Why Men Rebel”. Ao tentar explicar por que os homens se rebelam em determinados contextos, Gurr desdobrou o conceito de Privação Relativa aplicado às revoltas, levantes e revoluções ao longo da história.

Em resumo, tal conceito pressupõe que a revolta do ser humano — pelo menos no que diz respeito à sua condição material — não advém da simples tensão entre o “ter” e o “não ter”. Pelo contrário, a explicação seria mais sutil e subjetiva. A verdadeira revolta advém da tensão gerada entre o “ter” e a expectativa do que se “pode ter”, isto é, de uma noção relativa sobre o suposto “direito de ter”. A palavra-chave é EXPECTATIVA e ela existe, essencialmente, na mente humana e na comparação que esta faz vis-à-vis o seu meio.  

Obviamente, Privação Relativa não foi nenhuma descoberta em si por parte de Ted Gurr. Marx, Trotsky e outros pensadores também percebiam a dimensão psicosocial como a chave para explicar a insatisfação endêmica de uma coletividade humana até o limiar de sua decisão pela violência aberta. Marx, por exemplo, escreveu em “Trabalho Assalariado e Capital”:

“Seja a casa pequena ou grande, desde que as casas dos arredores não sejam maiores, ninguém reclama das novas construções. Mas, se entre as casinhas, um palácio vem a se erigir, não haverá mais nos arredores senão miseráveis choupanas”. 

Toda essa introdução, de tom mais acadêmico, vem em boa hora à medida que a multiplicação de revoltas pelo mundo — de Tunis a Damasco, de Madrid a Londres — desafiam as análises dos mais rigorosos cientistas sociais. E, antes que me atirem pedras por pronunciar alguns palpites sobre essa questão, saibam que eu sou a primeira pessoa a não querer pasteurizar realidades tão complexas, em países tão distintos e com pressupostos históricos tão divergentes entre si. Afinal, uma ”Teoria do Tudo” sempre tende a superficializar o campo de análise e a nos tornar míopes em nossa observação.

No entanto, ao invés de concluir que os vários sintomas ao redor do mundo são equivalentes (o que definitivamente não são!), seria melhor propor que todos os sintomas partem de uma patologia semelhante ou, até mesmo, de ”mínimo denominador comum”. Seria a partir de um mesmo fenômeno sistêmico que, daí sim, ocorreriam desdobramentos particulares à luz dos contextos sociais de cada país.  À primeira vista, parece inocência intelectual o esforço de conectar as manifestações do Cairo às manifestações de Londres. Afinal, os contextos políticos inglês e egípcio são muito distintos, bem como o perfil especifico dos participantes nas revoltas. Como ligar a aclamada Primavera Árabe aos crimes oportunísticos em Tottenham? Apesar dos contrastes visíveis entre os fenômenos, proponho que ambas sejam ligadas entre si pelo problema da EXPECTATIVA gerada pela atual geração e do seu sentimento de Privação Relativa.  

A promessa feita à geração nascida nos anos 80 e 90 foi de que a educação seria a chave miraculosa para alcançar empregos de alta-qualificação e, ainda mais importante, para satisfazer hábitos de consumo cada vez mais virtiginosos. O veículo para tanto seria o esforço de estudar em uma boa escola, de cursar e conseguir pagar uma faculdade (muitas vezes pela primeira vez na história de toda uma família) e, para uma parcela crescente dos jovens dessa geração, de ainda se submeter a uma pós-graduação ou além para tornar-se realmente competitivo no mercado.

Para essa geração, não há dúvidas de que a vida é, de fato, uma dura e longa maratona. No entanto, diante do império dos valores igualitaristas de nossa época, a ilusão é de que haveria prêmios para todos os colocados. Bastaria o esforço, a conquista individual. No entanto, ao passo em que essa geração superou esses obstáculos educacionais, o objetivo profissional e de vida que tinham em mente não se concretizou para todos. Se segmentarmos o nível de desemprego juvenil na maioria desses países (do Maghreb aos EUA, da Espanha ao Reino Unido), podemos ver índices espetaculares que chegam à casa dos 40-50%. Já entre os que estão empregados, muitos estão em condições de emprego precárias, altamente voláteis e com ganhos pífios diante de um inflação galopante. A sensação é a de que o futuro prometido lhes foi ‘roubado’, uma vez que a expectativa do que poderiam “ter” superou a capacidade de absorção do mercado de trabalho, da qualidade dos empregos e, sobretudo, da satisfação de um perfil de consumo hipertrofiado.

Um exemplo peculiar foi a revolta na Tunísia, ponto de partida da suposta Primavera Árabe. Uma análise brilhante de Amir Tahiri, publicada no jornal The Times em janeiro deste ano (Clique Aqui! para acessar o artigo), explorou a tensão problemática entre expectativas e realidade. A Tunísia tinha a maior quantidade de graduados entre os 21 países do mundo árabe, com uma economia que crescia a taxas próximas a 10% na década de 1990. No entanto, uma conjunção de forças tais como a competição manufatureira com outros países, declínio do emprego qualificado e limitações na alternativa migratória, relegou a geração dos anos 80 a 90 à margem da economia formal. Acrescente a essa equação social alguns fatores tais quais corrupção endêmica, falta de liberdade de expressão e representatividade política pífia. O resultado é a sensação de se ter chegado a um beco sem saída em suas perspectivas profissionais e pessoais, a partir do qual somente a radicalização pela violência aberta parece ser a válvula para uma mudança de realidade.

Não há dúvida de que o papel da internet, dos celulares e das redes sociais é cada vez mais importante nessa conjuntura. No entanto, a tecnologia não deve ser vista como um fator causal e, sim, como um catalizador que coagula indivíduos entre si para gerar uma massa significativa, móvel e articulada (mesmo quando não há uma orientação política clara e unificada entre os seus membros).

A diferença de outras eras está na metodologia usada para mobilizar um grupo social e, sobretudo, em sua dimensão tática. Afinal, não é mais necessário que o fluxo de informação passe pelos nódulos tradicionais monopolizados pelo Estado ou por corporações privadas (isto é, agências de notícia, imprensa, televisão, rádio etc). O fato deste blog existir e servir de plataforma de comunicação direta entre indivíduos, sem intermediários, prova precisamente essa nova realidade. A informação pós-moderna se tornou efetivamente celularizada em cada indivíduo que, por sua vez, é distribuído em um campo hiperconectado de imagens e mensagens intercambiadas em tempo-real. Símbolos, idéias e expectativas são difundidas com essa mesma velocidade. Justamente isso que surpreende e aterrorisa as autoridades públicas tradicionais que precisam encontrar táticas mais flexíveis para fazer face à fluidez das informações pelas redes sociais. Essa novidade em termos táticos é a que tem tornado tão difícil o combate às revoltas nos subúrbios ingleses (os grupos juvenis se mobilizam, se dispersam e se realocam com uma velocidade vastamente superior à velocidade das tropas de choque).

Em meio ao ambiente de expectativas crescentes, de condições decrescentes e da uma impressão de que o apocalipse financeiro está cada vez mais próximo, a atmosfera torna-se cada vez mais inflamável. Basta um Mohamed Bouazizi para a juventude insatisfeita da Tunísia, ou um assassinato para a ‘racaille’ encapuzada de Londres, para que o tecido social e as instituições políticas entrem em rápida combustão. Na base de tudo estaria a tensão insustentável entre expectativas e condições de toda uma geração, isto é, o sentimento relativo de privação e de falta de acesso ao futuro prometido e idealizado.

Diante dessas condições, o retrato otimista e primaveril do começo de 2011 à luz das revoltas no mundo árabe ganha tons mais sombrios ao nos depararmos com o que a história poderá chamar, quiçá no futuro, de um melancólico e decadente Outono Europeu.

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