O governo Temer continua a se mexer com dificuldade. A estratégia de blindar a economia e as relações exteriores, dando-lhes estrutura técnica superior, e de negociar o resto para obter maioria parlamentar tem feito com que acerte no atacado, mas erre no varejo. Na escolha dos ministros, mostrou que é prisioneiro do sistema político e permeável às suas chantagens. Com isso, distanciou-se da sociedade. Nem sequer conseguiu entabular relação produtiva com a opinião pública.
O governo está encharcado de alvos fáceis: não se trata só de corrupção, mas de fragilidade política e baixa densidade técnica. Os mesmos que foram “empoderados” por Dilma e a levaram, depois, ao altar dos sacrifícios continuam aí, debochando do Executivo e da sociedade, devidamente “empoderados” por Temer. É um feitiço que não consegue ser controlado por nenhum feiticeiro.
Democratas pró-impeachment orbitam o novo governo, mas não têm voz, nem poder de agenda, nem iniciativa. São menos que coadjuvantes. Democratas contra o impeachment desperdiçam energias para manter viva a “narrativa do golpe”, neutralizando-se a si próprios e pregando no deserto.
Se com Dilma havia um não governo, com Temer passou a haver mau governo. Se está ruim agora, ficará pior se a presidente afastada voltar. O que ela faria, com quem governaria, que arco de forças poderia lhe dar sustentação, que liderança teria?
Espaços para que se vire a página existem. Mas faltam protagonistas, lideranças, agentes de uma mudança que todos parecem desejar, mas ninguém sabe como alcançar. É o que faz a crise se estender no tempo, ficar fora de controle, encorpar como processo de longa duração, que arrasta consigo as esperanças de muitas gerações. Por isso, é paradoxal que um clima de “agora vai!” paire em alguns ambientes.
Entre os apoiadores de Temer, há um núcleo duro realista, que sabe que o caminho é escorregadio e que é preciso evitar arroubos triunfalistas. Fora daí há otimistas inveterados, oportunistas, reacionários, revanchistas, gente que quer tirar vantagem e atrapalha. Falam que a “turma do PT” foi varrida do mapa e que uma nova era começou, sem riscos de retroceder, por mais que os “petistas” continuem ativos, prontos para boicotar os bons propósitos de Temer.
Na sociedade, a ingenuidade faz com que alguns comecem a se decepcionar com Temer. Alegam que seu governo tem “políticos demais” e ignoram que em política, no Brasil, o toma lá dá cá, a troca de favores, os chefões e a oferta de influência são práticas que não podem ser simplesmente varridas do mapa. Trata-se da face mais tenebrosa do sistema político nacional, dado forte de sua cultura, que invade e domina o Legislativo e o Executivo, espraiando-se por partidos, associações e movimentos sociais.
Entre os que foram contra o afastamento de Dilma, a maioria acha que, agora, com a crise Jucá, uma nova fresta se abriu. Querem aproveitá-la para manter em circulação a “narrativa do golpe” e quem sabe promover o retorno da governante afastada. O próprio Temer reconheceu que a queda de Jucá reanima o movimento “volta, Dilma!”. A verdade, porém, é que ela não ajuda nem sequer ao PT: como, então, teria havido um golpe, se os golpistas cortam-se a si próprios com a mesma faca que cortara os petistas?
Fazem-se planos de reconquistar alguns senadores que votaram pelo impeachment, promovem-se ações exemplares de ocupação, agitação e propaganda, prega-se a “revolta popular” e o retorno do protagonismo de esquerda. O clima impulsiona a sensação de que é preciso aumentar a pressão sobre Temer, que estaria “por um fio”, e anima o engajamento de pessoas no fortalecimento das esquerdas.
Há de tudo nesta seara, mas falta o fundamental: análise política, lideranças, ousadia, algumas boas ideias para serem disseminadas.
A pressão que pode ser armada contra a situação atual tem efeito bumerangue: atinge tanto Temer quanto Dilma. Se dela derivar uma piora generalizada do quadro político, ninguém se beneficiará e aumentarão os riscos de desarranjo sistêmico. A saída passaria muito mais pelo vínculo entre ativismo social, ação política no plano institucional e efervescência intelectual, o que não existe. E não existe sobretudo porque falta o cimento essencial: a articulação entre democratas e progressistas, calcanhar de Aquiles da democratização do País. Em cima, o sistema apodrece; embaixo, falta organização.
Quanto ao eventual aproveitamento da crise para impulsionar o sempre tão acalentado fortalecimento das esquerdas, seria preciso que viessem à tona ao menos duas coisas: a superação do revanchismo e o compromisso explícito com a democracia. Uma esquerda raivosa, dogmática e fanatizada pelas simplicidades do “golpe” e do “ataque à democracia latino-americana” não terá como dialogar nem com o País real nem com as necessidades do futuro. Precisará se livrar daquilo que a puxa para baixo: kirchneristas, bolivarianos, chavistas, a retórica vazia contra o “capital”, o latino-americanismo à moda antiga, o populismo demagógico, a improvisação, o doutrinarismo. Não avançará se permanecer instrumentalizando, em nome de uma democracia mal ajambrada, os espaços e os aparelhos públicos a que tem acesso e controle. E precisará, sobretudo, encontrar meios de multiplicar, nos círculos de esquerda, o número de ativistas que se disponham a fazer da democracia a pátria comum dos reformadores mais radicais ou menos.
Vale, portanto, o mantra: cada dia com sua agonia. Crises entrelaçadas não poderão ser resolvidas de uma só vez. Tentar adivinhar o que virá pela frente ou fazer hoje o que só poderá ser cogitado amanhã é um erro de compreensão política que levará o carro do futuro para trás.
Entre o “fica, Temer!” e o “volta, Dilma!” há um oceano de problemas e desafios, que só será vencido por embarcações sólidas e sofisticadas, que não existem prontas, à disposição.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-neai da Unesp
O Estado de São Paulo (28/05/16)
Nenhum comentário:
Postar um comentário