Em abril de 1964, após o golpe de Estado, o presidente João Goulart exilou-se no Uruguai e só retornou ao Brasil para ser enterrado, em São Borja, em 1976. Depois de sua exumação, foi sepultado, passados 37 anos, com honras de chefe de Estado.
Em setembro de 1973, Salvador Allende foi retirado morto do Palacio de la Moneda, após intenso bombardeio. A circunstância dramática levou Allende ao martírio em nome da causa que defendia. Hoje ele é o único presidente do Chile a ter um memorial vizinho ao palácio presidencial, no centro de Santiago.
Era uma época de golpes de Estado na América Latina, com o seu cortejo de violência e terror. O de 1964, no Brasil, e o de 1973, no Chile, são considerados paradigmáticos. Não se resumiram numa quartelada e, mesmo diferentes entre si, solaparam a democracia então existente para, em seguida, instalarem regimes autoritários de longa duração.
O que ocorre no Brasil com o processo de afastamento ainda em curso da presidente Dilma Rousseff não encontra parâmetro comparativo nem com o que ocorreu com Goulart e menos ainda com o que se passou com Allende. Com a aprovação no Senado do procedimento constitucional de investigação e julgamento dos crimes de responsabilidade de que é acusada, a presidente foi notificada e deixou o Palácio do Planalto, com toda segurança. Ato contínuo, discursou para uma plateia de apoiadores que não foi molestada de nenhuma maneira. Depois se dirigiu ao Palácio da Alvorada, sua residência oficial, e tem garantidas suas prerrogativas de presidente da República. Tais circunstâncias, além de evidenciarem uma distância de anos-luz em relação ao destino imposto aos dois ex-presidentes mencionados, mostram que a presidente afastada continua agindo politicamente, sem constrangimentos e com muita desenvoltura.
O parâmetro comparativo entre as situações é evidente por si mesmo e contribui para que o processo de impeachment não deva ser qualificado como golpe de Estado. Os acontecimentos que marcaram o final dos governos de Goulart e Allende são tipicamente os de um golpe de Estado, enquanto os eventos a que assistimos no processo contra Dilma Rousseff nada mais são do que uma série de episódios e decisões afeitas ao funcionamento da democracia e de suas instituições, com seus ritos e seu ritmo, todos sancionados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nessas circunstâncias, caso se consume o impeachment de Dilma, por óbvio, não se instalará nenhum novo regime político, como ocorreu nos dois casos paradigmáticos mencionados. A democracia segue seu curso, sem ter arranhada sua legitimidade.
No entanto, a presidente afastada, o PT e seus aliados insistem em qualificar de golpe o processo político em curso, inflacionando, com essa insistência, as redes sociais e os meios de comunicação em geral. Além de contrafatual e da clara intenção vitimista, o que esses atores objetivam é a difusão de uma “nova epistemologia do golpe”, diversa dos casos paradigmáticos e de quaisquer outros.
Como hoje vivemos outro tempo histórico, diverso da guerra fria, cuja centralidade repousava na luta entre capitalismo e comunismo, e como as democracias na América Latina, mesmo com seus problemas, contam com uma história razoável de implantação, obtendo com isso uma adesão generalizada, até mesmo dos movimentos e partidos de esquerda, os apoiadores de Dilma e do PT percebem que o argumento do golpe, vocalizado nos velhos termos, não se sustenta pela simples evidência dos fatos, ou, mais precisamente, pela ausência destes.
Isolado e fragilizado, o petismo manteve o discurso do golpe, mas buscou encontrar uma justificativa teórica plausível para sustentá-lo, visando a dar a ele um caráter próprio ao novo tempo, próprio às democracias. De acordo com o petismo, posto em andamento, esse golpe “fere a democracia”, mas não a elimina. Segundo essa nova teorização, as condições jurídico-políticas das democracias hoje existentes permitiriam que as classes dominantes, apoiadas na mídia monopolista e nas classes médias reacionárias, urdissem um golpe de Estado não mais com tanques e soldados, mas por meio de ações comunicacionais, jurídicas e parlamentares. Todos esses elementos fariam parte de um mesmo dispositivo: um “golpe de novo tipo”.
Assim, de acordo com essa teorização, não estaríamos diante de um golpe violento, de tipo convencional, e tampouco de um “golpe parlamentar”. O “golpe de novo tipo” tem seu fundamento num raciocínio de natureza sofística que parte do pressuposto de que nenhuma Constituição possui mecanismos de autodefesa contra quem a use contra ela mesma. Ora, a supremacia formal que tem a Constituição além de suas cláusulas pétreas compõe sua autodefesa, juntamente com o papel ativo dos cidadãos, e não de uma normativa específica. O pressuposto não tem base jurídica, mas é extremamente perigoso para o ordenamento democrático.
O PT, na sua avaliação de conjuntura, após o afastamento de Dilma, lamentou não ter seguido o caminho venezuelano, que impôs desde o início uma Constituição com os devidos “mecanismos de defesa”, o que tem permitido ao atual presidente, Nicolás Maduro, se manter no poder e bloquear qualquer saída para a dramática crise que vive nosso vizinho. O PT lamentou ter confiado na ordem democrática fundada na Carta de 1988, uma Constituição “indefesa” que permitiu que o partido fosse “golpeado” por aqueles que levaram o impeachment em frente.
A tese do “golpe de novo tipo” visa a advertir a esquerda de que, mesmo aderindo à democracia, não estará imune ao golpe, uma vez que a democracia não tem condições de se proteger dos “golpistas”. A tese é reiterativa e deriva dos pergaminhos que ditam que o objetivo da esquerda é instalar um regime (também) de “novo tipo”, que dê cabo da democracia vigente. Mas deste, como nos recordamos, os presságios sempre foram assustadores.
(*) Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (08/06/16)
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