Como explicar que um governo interino possa agir como se fosse um governo recém-eleito, como se tivesse conseguido a aprovação da maioria do eleitorado em uma disputa presidencial acirrada? É o grande mistério do momento, de difícil solução. Porque é certo que alcançar o impeachment exigiu a produção da mitologia de altas expectativas correspondente. Mas, se pretende sobreviver, o governo interino tem antes de tudo de concentrar esforços em um rebaixamento geral de expectativas. E nisso o Plano Meirelles não ajudou em nada.
A pesquisa mais recente diz que pouco mais de 22% acreditam que o governo interino será ótimo ou bom. Pelo menos 55% acreditam que será um governo igual, pior, ou muito pior do que o de Dilma Rousseff. Uma peça central do arranjo, o ministro do Planejamento, Romero Jucá, foi obrigado a pedir para sair com menos de duas semanas de governo. O temor de que a Justiça desmantele o Congresso e o próprio governo interino se espalhou como epidemia. As gravações feitas por Sérgio Machado fizeram o seriado "House of Cards" parecer uma animação para crianças de pouca idade. E Eduardo Cunha não governa, mas também não deixa governar.
E, no entanto, para surpresa geral, ainda tentando amortecer a queda de Jucá, o governo Temer-Meirelles se apresentou como se fosse Margaret Thatcher no dia seguinte a sua primeira eleição, em 1979. A desorientação da política oficial é tamanha que não se sabe se o governo interino partiu para o tudo ou nada, ou se o plano todo é jogo de cena para negociar apertos mais suaves e, no final das contas, apenas empurrar com a barriga. Se for para valer, o raciocínio pode ser o seguinte. A ameaça de impeachment paira sobre qualquer figura que ocupe a presidência. Para completar, a Lava-Jato não permite que o sistema político encontre uma posição de equilíbrio e a situação econômica é calamitosa. Em um quadro como esse, um governo só sobrevive se produzir resultados inesperados. Se produzir algo que tenha efeitos tão palpáveis como a estabilização do Plano Real.
O que pode ter um efeito pelo menos remotamente semelhante na situação atual? Segundo a inspiração thatcherista do programa, uma inundação de investimento estrangeiro e alguma participação de poupança interna em concessões. A recessão no governo Temer-Meirelles estaria para a inflação no governo Itamar-FHC assim como a inundação de investimento estaria para a estabilização econômica. Em lugar de política feijão com arroz, uma política da feijoada com porco alemão e caipirinha de vodka americana.
Mas o delírio político de um projeto como esse é tão patente que não pode ser para valer. Não sendo para valer, sendo jogo de cena para negociar, o teto do possível passa a ser o de uma política feijão sem arroz, que é o que a recessão e seu rastro de desgraças permite. O problema nesse caso é que Temer vai ficar sem Meirelles. Vai ter de chamar para o posto alguém como aquele que cunhou a expressão "política feijão com arroz", o especialista formado no final do governo José Sarney, o ex-ministro Maílson da Nóbrega.
Ficou já claro que Temer não tem a menor ideia do que seja conduzir um governo. Simplesmente entregou as chaves a Meirelles e disse que decorasse o pacote de medidas como pudesse. Meirelles não apresentou um plano de governo, mas o programa de sua candidatura presidencial. E, como o atual ministro da Fazenda só pensa em termos de celebridades políticas globais, não aceitou o convite para entrar como Margaret Thatcher e sair como François Hollande.
O que o episódio revela é a natureza profunda do governo interino. Sua substância conservadora não lhe dá qualquer real coesão. Todo mundo está ali para tirar o que puder e sair assim que começar a fazer água. O governo é interino e interino é o comprometimento de quem dele participa.
De outro lado, a rejeição a Michel Temer não significa apoio à volta de Dilma Rousseff. E um eventual impeachment do presidente interino provavelmente entraria por 2017, o que, de acordo com a Constituição, exigiria nova eleição indireta pelo Congresso para completar o mandato até 2018. E o Congresso atualmente é culpado até prova em contrário. Não há ação que tome que possa ser vista como legítima. Muito menos eleger um presidente-tampão. A outra possibilidade, a realização de eleições gerais antecipadas, seria engolida pelo pavor da Lava-Jato: seria uma corrida sem regras pela proteção conferida por novos mandatos, estraçalhando o pouco que resta do sistema partidário atual.
O episódio que desorganizou de vez a política oficial no governo Dilma foi a prisão de Delcídio do Amaral, um líder de governo no exercício do mandato de senador. Depois disso, dá para contar nos dedos das mãos quantos políticos com mandato conseguiram dormir tranquilos. A divulgação das gravações de Sérgio Machado foi o divisor de águas da interinidade de Temer: depois disso, nenhum acordo de bastidor conseguirá ser fechado porque ninguém mais confia em que o interlocutor não esteja gravando, como proteção e seguro contra as incertezas do futuro.
É o sistema político em estado de pane total. Qualquer saída é apenas aparente. Essa foi até agora a única lição do impeachment. Uma virada de mesa dessa gravidade não precisa mais de motivo ou justificativa, bastam apenas os votos. Dos mesmos parlamentares citados, investigados e denunciados que afastaram Dilma Rousseff. E o resultado é uma instabilidade tão grande ou maior do que a anterior. O prazo máximo de validade para qualquer arranjo mambembe não ultrapassa uns poucos meses.
Se não quiser ter o mesmo destino de Dilma Rousseff, o que resta para Michel Temer é assumir sua condição de José Sarney. Os delírios de Margaret Thatcher podem bem animar plateias em palestras para investidores, mas não vão convencer quem não tem emprego, renda, ou remédio no posto de saúde. E o segredo do período Sarney é simples: aceitar a própria mediocridade, nunca criar expectativa alguma. Apenas fingir de morto e se esforçar para convencer de que não vai deixar a peteca cair de vez.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap
Valor Econômico (30/05/16)
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