Análises de conjunturas políticas, muito especialmente em épocas de crise, têm em mira a localização dos pontos sensíveis a partir dos quais uma dada intervenção dos atores possa alterar a correlação de forças existente em favor da direção que se deseja imprimir aos rumos dos acontecimentos. Tais operações, na nossa experiência republicana, já conheceram como lugares privilegiados a questão militar e a sindical, quando a expertise demandada nessas análises implicava conhecer as inclinações de suas lideranças.
Na circunstância que aí está não há mistério na identificação desse lugar de difícil precisão. Até as pedras das ruas são capazes de reconhecê-lo no interior dos tribunais, no juizado federal de Curitiba e, principalmente, neste papel de pontificado laico de que está investido o Supremo Tribunal Federal. A judicialização da política virou a segunda pele da República, a tal ponto que a sociedade já adotou como língua geral a que lhe vem do Direito, dos seus procedimentos e instituições, esgrimindo, à esquerda e à direita, o texto constitucional em todas as controvérsias políticas.
O enigma da atual conjuntura reside no fato incontornável de este lugar, por definição, ser neutro quanto à política, na medida em que somente pode agir por provocação de quem de direito. Por essa razão elementar, o diagnóstico formulado pelos responsáveis pela condução da Operação Lava Jato de que a raiz dos nossos males reside em nossas estruturas políticas, embora inequivocamente correto, somente pode se converter numa intervenção saneadora por obra de um agente externo ao Poder Judiciário, no caso, o poder político e suas instituições, crucialmente o Parlamento. Intervenções tópicas, mesmo que exemplares, como detenções e eventuais condenações, não têm o condão de erradicá-los.
A Constituição de 1988, que coroou o processo de democratização levado a efeito pela sociedade e suas instituições, se rompeu com a nossa cultura de autoritarismo político. Manteve, contudo, a desconfiança que lhe vinha do peso das nossas tradições, do Império à República, quanto à representação política. Descrente da possibilidade do Parlamento em promover mudanças sociais, o constituinte dedicou-se à criação de novos direitos em matéria social, a serem assegurados por uma série de institutos que deveriam atuar no sentido de concretizar seus ideais de justiça, a serem acionados até por simples cidadãos ou entes originários da sociedade civil. Por meio dessas inovações, entre as quais a do Ministério Público como ente dedicado à defesa de sua obra, figura inédita no Direito comparado, ficava clara a intenção de impedir que muitas de suas criações, como no caso da Carta de 1946, conhecessem uma existência apenas simbólica.
As décadas recentes assistiram ao processo pelo qual a sociedade se apropriou dos novos institutos criados pela nova Constituição, tanto pelos partidos políticos quanto pelos movimentos sociais. Uma nova geração de magistrados, promotores, defensores públicos e professores nas escolas de Direito, em sintonia com a filosofia que a informava, sedimentou as suas inovações, aproximando-a, como em alguns casos famosos, até de uma obra aberta à criação da própria sociedade. Estava ali, na representação funcional exercida pelo Poder Judiciário, o Terceiro Gigante de que trata o jurista italiano Mauro Cappelletti.
Mas, se o constituinte foi tão atento na construção do sistema de representação funcional, não o foi em relação ao da representação política. O efeito dessa opção de não regular o sistema partidário, decerto em reação aos anos repressivos do regime militar, resultou na multiplicação indiscriminada dos partidos, em boa parte legendas sem identidade programática, o que acabou por expor o Legislativo à ação do Executivo e de sua política de cooptação por meio do presidencialismo dito de coalizão. De passagem, registre-se que o legislador, em defesa de um sistema partidário que se esvaziava de sentido, estabeleceu uma cláusula de barreira ao acesso à representação política, logo, porém, derrubada pela representação funcional numa decisão infeliz do Supremo Tribunal Federal.
A crise que aí está é política e não há solução sem ela e uma radical intervenção em suas instituições que devolva ao poder soberano o lugar que lhe compete nas democracias, que não pode ser usurpado a qualquer pretexto. Não importa o quão estejam estropiados os partidos e o Parlamento neste momento, embora seja irrecusável o reconhecimento de que, mesmo assim, venham sendo responsivos quanto às demandas da sociedade, inclusive neste episódio do impeachment que ainda nos aflige.
Estará mentindo quem disser que há uma saída fácil deste pandemônio em que estamos envolvidos, como aqueles que insinuam a convocação de eleições gerais já como panaceia. A sociedade precisa de tempo para se rearrumar, inclusive por que se está às portas dos pleitos municipais, quando se pode encontrar o fio para um novo começo e deliberar livremente sobre que rumos seguir. À espreita há quem sonde o terreno em escombros na expectativa de que está para chegar a hora do homem providencial vindo de um canto obscuro qualquer da nossa sociedade.
O tempo, porém, é escasso, e cabe ao governo Michel Temer administrá-lo para que se chegue à sucessão presidencial de 2018 com uma sociedade recomposta e em condições de retomar seu destino. De fato, a base parlamentar que sustenta seu governo pode trazer lembranças da Armata Brancaleone da inesquecível comédia italiana, mas é de perguntar àqueles de gosto pretensamente refinado e recém-chegados à política se tomaram conhecimento da manifestação de 3,5 milhões de pentecostais no dia de Corpus Christi na capital de São Paulo. Democracia, pluralidade e diversidade é isso aí, nas ruas e no Parlamento.
Fonte: O Estado de São Paulo (05/06/16)
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