Há cerca de dez anos, o mexicano Jorge Castañeda, ator e analista da política latino-americana deste nosso tempo conturbado, propôs um esquema simples, mas relativamente eficaz, para entender as esquerdas no poder, especialmente a partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela por meio do voto. As esquerdas, dizia Castañeda, tinham no subcontinente uma natureza dupla, segundo admitissem, ou não, as novas condições derivadas do fim do comunismo real e da obsolescência dos padrões da guerra fria.
Brasil, Uruguai ou Chile, por exemplo, teriam enveredado por um caminho próximo das social-democracias europeias, adotando políticas pluriclassistas e respeitando os requerimentos do regime representativo. Coerentemente, em relação à economia, a questão se resumiria a regular de outro modo os mercados, para além da experiência liberal dos anos 90, mas sem violar seus princípios básicos nem descuidar dos equilíbrios macroeconômicos. Um moderado reformismo social estaria em curso nesses países, atacando primeiramente a pobreza extrema e, de forma indireta, a desigualdade.
A Venezuela e os demais países ditos bolivarianos eram exemplos de esquerda radical, inspirada muitas vezes no ambiente hiperideológico dos anos 70 vertido para o novo contexto de interdependência e de redes globais. Com ou sem razão, tratava-se, aqui, de refundar a nação e implantar democracias de alta intensidade: formas diretas de participação e líderes carismáticos eleitoralmente “invencíveis” iriam mais uma vez se associar para lançar as bases do “socialismo do século 21”.
Tal intento se pretendia diverso do socialismo do século 20, ainda que desde o primeiro momento não fosse muito difícil de ver em operação as categorias do velho repertório, com a adição inquietante de “coisas nossas”, como o caudilhismo e o militarismo, desta vez em roupagem progressista.
Os processos ora em curso na Venezuela e em nosso país, estruturalmente tão diferentes entre si, complicam a dicotomia de Castañeda. A Venezuela, sob Chávez e, agora, Nicolás Maduro, não deixou em momento algum de ser totalmente dependente da renda do petróleo – o excremento do diabo, na expressão famosa. E o Brasil, ainda que assediado pelo fantasma da reprimarização da economia, inclusive nos anos triunfantes do lulismo, continuou a ter uma economia diversificada e a ser uma sociedade complexa, em que amplos setores de classe média, pelo menos em tese, são refratários aos apelos anacrônicos do populismo.
Realidades contrapostas, portanto, mas, como sabemos, razões e motivos “ideológicos” não decorrem automaticamente de “bases materiais”. Eles se cruzam e contaminam, determinam a percepção dos problemas de um modo ou de outro, podendo inclusive agravá-los ou dramatizá-los substancialmente. Houve quem, à esquerda, despreocupando-se com a exigência de análises diferenciadas, propagasse a ideia de um bloco latino-americano maciçamente contra “o capital” e o neoliberalismo. Governos nacional-populares na região seriam a nova vanguarda anticapitalista e anti-imperialista, retirando o protagonismo da moderada esquerda europeia de feição social-democrata. E, à direita, a desolação intelectual não poderia ser maior, com tentativas de ressurreição do vetusto armamentário anticomunista.
Nada a fazer no plano argumentativo se as coisas fossem deixadas assim. O espaço da política se reduziria a bem pouca coisa se, diante destas crises estruturalmente desiguais, mas temporalmente “gêmeas” – o total desastre venezuelano e a aguda crise institucional brasileira –, não tentássemos acionar os mecanismos de uma autorreflexão dura e impiedosa. Inútil dizer de Maduro, como disse Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, que es loco como una cabra. Um mero insulto pessoal, um tanto folclórico, que não vai à raiz do problema nem revela, infelizmente, um dirigente capaz de contribuir para a superação pacífica do desastre à vista de todos naquele país.
Da nossa parte, impossível aceitar sem renovado sinal de alarme a derivação “bolivariana” de manifestações petistas que denunciam o suposto “golpe parlamentar” e reiteram obsessivamente a contraposição frontal entre amigos e inimigos (a “direita”), como se a democracia política não exigisse, para sua vigência, um amplo terreno comum entre os contendores, no qual se viabiliza o próprio discurso público e a situação de recíproco assédio, de luta e proximidade, que marca a atuação de forças políticas amadurecidas, ainda que representem interesses e visões conflitantes.
Não há partido na democracia “burguesa” que possa entender a reforma do Estado como controle ideológico dos diferentes órgãos daquilo que alguns chamam sistema de integridade – a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário. E muito menos possa propor um ataque frontal à “mídia monopolista”, sem antes esclarecer cabalmente que qualquer ideia de regulação constitucional dos meios deve refugar, sem ambiguidade, a tal “hegemonia comunicacional” de feitio chavista – que, de resto, tem pouco de hegemonia e muito de dominação simples e bruta, funcional ao monopólio da fala pelo caudilho em exercício.
Quase 30 anos depois da Carta de 1988, a esquerda brasileira ainda não tirou de sua história os recursos para construir uma forte social-democracia, cujo compromisso essencial seja, além dos objetivos de reforma, a defesa da legalidade democrática e suas instituições, que dão vida e densidade a tais objetivos. Não consegue estabelecer parâmetros altos para a ação de um reformismo latino-americano mais unitário, generoso e integrador. A vertente democrática fraca termina por abrir o flanco para a vertente autoritária e personalista. Condena-se, assim, a recomeçar em condições piores – e sempre depois de tempestades que, como na Venezuela, caudilhos meticulosamente semeiam e, agora, colhem.
(*) Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
Fonte: O Estado de São Paulo (19/06/16)
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