Cada época tem um conjunto de características que demarcam o modo como se desenvolvem as práticas sociais em cada campo específico de atuação.
Na política, a marca é a crise: nenhum sistema funciona bem, mais desagrada que agrada, cria mais problemas que soluções. Crise de governabilidade, crise de representação, crise da democracia, crise dos partidos – as etiquetas são muitas. Os governos estão na berlinda, seja de que partidos forem. Governam pouco.
Na economia, muita coisa gira em torno da flexibilidade. A localização perdeu relevância. Deve-se organizar a partir de planos elásticos, trabalhar de modo polivalente, evitar estoques, incrementar a produtividade mediante desproteção do trabalho e inovação tecnológica, explorar as vantagens da rotatividade, do consumo conspícuo e da substituição incessante de bens, seja por pressões da tecnologia, seja em decorrência da obsolescência programada.
Na universidade, fala-se sobretudo em produtividade: os incentivos são para que se faça mais em menos tempo, se conquiste sempre mais visibilidade, se publique sem interrupção e se frequente um número sempre maior de eventos.
O quadro se desdobra no plano dos relacionamentos. Aqui, a marca forte é o desentendimento, a disposição de construir fortalezas de onde pelejar com os demais e vocalizar a própria opinião, tanto fazendo se isso é feito ou não para que se alcancem melhores patamares de entendimento. É uma marca que se combina com o desejo de ser “diferente” e de não integrar nenhuma “comunidade maior”, ou seja, de se individualizar e se tribalizar, fechando-se em guetos.
Há efeitos colaterais que derivam do predomínio desta marca, especialmente quando os relacionamentos são atravessados por disputas políticas. Um deles é a elevação da temperatura verbal: não basta divergir, é preciso reduzir o outro a pó, tratá-lo como inimigo, e não somente como alguém com quem não se concorda. Em nome disso, o léxico da vida cotidiana ganhou em veemência na mesma velocidade que perdeu em rigor e coerência. A agressão verbal tornou-se prática discursiva. A elegância, a serenidade, a modéstia e o respeito ao pluralismo saem da cena, em benefício de argumentos de autoridade e da grosseria, entendida como recurso de convencimento. Os interlocutores agem por uma espécie de compulsão retórica.
Outro efeito é a expansão do dogmatismo, da postura que se apresenta como dona da verdade, que se afirma a partir de certezas prévias e trata a dúvida como expressão de tibieza, atitude de quem não é forte o suficiente para manifestar a própria opinião. O dogmatismo, como se sabe, hostiliza a realidade, os fatos e as evidências. O dogmático é alguém que segue livros, manias e escrituras, que somente chega ao real a partir de esquemas preconcebidos, que ele invariavelmente associa a um tipo superior de verdade, filosófica, epistemológica ou religiosa.
A direita retrógrada e fundamentalista é uma fábrica de dogmáticos que jamais fecha.
O marxismo, que é patrimônio da humanidade inteligente e livre de preconceitos, também tem sua versão dogmática. Das grandes teorias, é a única que nasceu radicalmente antidogmática mas, ao ser popularizada e instrumentalizada politicamente, impulsionou o dogmatismo, abrigando em seu próprio círculo inúmeros seguidores fiéis, imunizados contra os fatos, prisioneiros de convicções eternas, que não devem mudar jamais. O marxista dogmático é aquele personagem que se tem em alta conta, que enxerga mais longe que os demais, que se considera firme como uma rocha, não abre mão de citações, livros-guia e manuais, não tendo um pingo de dúvida sobre o futuro radiante que virá com a revolução socialista.
Como é um ser inseguro e necessita de autoafirmação, costuma brigar mais com os marxistas não dogmáticos do que com as correntes que disputam a verdade com o marxismo. Pode ser aproximado da figura típica do arrogante. Muitos que se querem revolucionários são conservadores no plano da moral e dos costumes.
Dogmáticos de todos os tipos – marxistas, religiosos, socialistas, neoliberais, conservadores, reacionários – fazem um mal danado ao convívio social e ao debate público. São a antipedagogia em movimento: deseducam, dificultam que as pessoas pensem com a própria cabeça, travam o fluxo saudável de divergências e discussões, impedem a formação de consensos.
Para pessoas assim, não há remédio que cure. Elas estão imunizadas contra a razão crítica e a história, que não as afeta. Continuam agarradas ao passado, que lhes dá segurança ontológica e base para demonstrações de virtuosismo teórico. Vivem em outra dimensão de tempo e espaço. Não se acham dogmáticas, mas, sim, “ortodoxas”, portadoras de verdades e convicções duras, intransigentes.
No Brasil dos dias correntes, é fácil vislumbrar os efeitos perversos desta prevalência do desentendimento e do dogmatismo. Enfrentamos dificuldades épicas para manter viva uma discussão que precisa seguir em frente, rumo ao que deveria ser a tarefa de todos: reduzir animosidades e disputas estéreis, especialmente entre os democratas, para que assim se tenha alguma força para reformar o País.
O desentendimento amplificado sem critério racional produz neblina e fumaça, que não beneficiam ninguém, mas são mais prejudiciais para quem luta por liberdade, democracia, igualdade e justiça social. A retórica inflamada e indignada, o anúncio bombástico do apocalipse, a vitimização e o ataque implacável aos que pensam de outro modo bloqueiam a racionalidade crítica. Prestam um desserviço.
É uma época paradoxal: brilhante e opaca, participativa e improdutiva, de muita inovação e poucos resultados positivos, de sofrimento organizacional, excitação e mal-estar, de vida dinâmica e flutuante. Mas é a nossa época, e teremos de aprender a lidar com ela se quisermos cogitar de transformá-la.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai) da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (25/06/16)