Treze anos depois da posse de Lula, o medo está vencendo a esperança. Houve importantes avanços sociais, mas eles não se mostraram sustentáveis. A correlação de forças não se alterou, mudanças estruturais não se realizaram e o conjunto das políticas de Estado mal saiu do lugar. O País continua patinando em termos de saúde, educação e infraestrutura. O prometido “espetáculo de crescimento” não passou de um jargão solto no ar e o governo Dilma está na ponta do precipício.
Como foi possível que tudo desse tão errado? Há diagnósticos parciais, quase sempre envenenados pela luta político-partidária que engessou a sociedade desde que Lula foi eleito presidente. A polarização dos últimos anos afastou o debate público do fundamental.
Na economia, por exemplo, a corrente mais liberal afirma que houve descuido com as contas públicas e excesso de intervenção estatal, que os gastos não levaram em conta a capacidade de arrecadação do Estado. A crise externa desempenhou um papel, mas o problema principal foi interno, pois o governo abandonou os “fundamentos econômicos” e trouxe de volta a inflação e a “irresponsabilidade fiscal”. Optou-se pela continuidade dos gastos públicos sem o devido cuidado com as receitas e a estabilidade. A única saída é um aperto fiscal duro.
Os economistas mais alinhados com o governo e o PT, por sua vez, não concordam com esse diagnóstico. Eles se subdividem em duas correntes: os “novos desenvolvimentistas”, mais tradicionais, e os “social-desenvolvimentistas”, que defendem a combinação de políticas sociais ativas com investimentos em infraestrutura energética e logística. Ainda que seja favorável a medidas anticíclicas, esta segunda corrente não as vê como algo permanente. Tem pontos de contato com a “nova matriz econômica”, mas não a endossa como coisa sua. Não é tão “estatista” e “intervencionista” quanto ela, por exemplo. Nem aplaude a opção pelo consumo como impulsionador do crescimento. Para ela, a orientação geral beneficiou os setores sociais mais fragilizados, mas os erros de gestão e algumas escolhas equivocadas foram tão graves que tornaram inevitável um ajuste.
Os “social-desenvolvimentistas”, porém, opõem-se ao que chamam de “austericídio”, defendendo um ajuste calibrado para recompor a capacidade de financiamento do Estado.
No fundo desse debate, está a questão do Estado, verdadeiro divisor de águas no mundo contemporâneo. Mas do mesmo modo que os liberais entendem o valor da regulação e sabem que é insensato discutir se o Estado deve ou não intervir na economia, os “social-desenvolvimentistas” entendem que as contas públicas precisam de equilíbrio e hoje o ajuste é inevitável. Uns e outros aceitam que os setores público e privado precisam trabalhar juntos. Sabem, também, que cortar gastos públicos tem efeitos perversos no emprego e na renda. E que um aperto duro demais pode fazer a recessão se estender no tempo e ser mais profunda.
Ambas as correntes são críticas do governo atual. Deveriam dialogar mais entre si. A contraposição dogmática das visões, porém, bloqueia a formação de uma agenda econômica. O debate gira em torno de dois polos incomunicáveis, que se comportam com autossuficiência, como se não existissem mais alternativas.
A saída mais sensata e inteligente seria o entendimento entre governo, trabalhadores e empresários, em nome de um ajuste que não dizime a sociedade. Mas ninguém patrocina isso.
O calcanhar de Aquiles dos governos petistas tem sido a política de coalizões, ou seja, o modo como o partido buscou compensar a falta de maioria parlamentar e de condições de governabilidade.
Recusando-se a investir numa frente social-democrata que reunisse PT e PSDB, a opção petista foi buscar o “baixo clero” do Congresso Nacional, ou seja, os partidos menores. Uma opção de risco, porque o preço cobrado pelo apoio foi alto e teve de ser pago em moeda, não só com cargos e favores.
O episódio do “mensalão” escancarou o procedimento, que espalhou seus venenos pelo sistema. O partido recompôs sua base, aliou-se ao PMDB e passou a fazer vista grossa para o crescimento da corrupção, agora praticada mediante empreiteiras e empresas públicas, como a Petrobrás. Ainda que não tenha impedido que Lula e Dilma se reelegessem em 2006, 2010 e 2014, tal política amarrou e enfraqueceu o PT, forçando seus governos a uma entrega ao PMDB, que, aos poucos, foi engolindo o partido e a agenda governamental.
A política de coalizões se articulou com uma política de “aliança de classes” por meio do Estado. Lula atraiu o apoio do grande empresariado e dos setores organizados da classe trabalhadora em nome de uma política expansionista que anunciava ganhos para todos, beneficiando os mais pobres com políticas assistencialistas e de transferência de renda. O Estado converteu-se no grande articulador político do País. Para manter os inúmeros aliados, Lula, Dilma e o PT concederam todos os anéis, viraram as costas para a esquerda democrática e passaram a tratar os adversários como inimigos.
Cortaram o País em duas metades. Ajudaram a alimentar o “ódio” de que tanto reclamam hoje.
Com o fracasso da política econômica, a difícil reeleição em 2014 e a falta de molejo político da presidente, o governo Dilma passou a perder apoios em cascata. Deixou de coordenar até mesmo as próprias bases. Nada do que tenta fazer funciona.
Sem forças para repor a política de alianças e coalizões, o governo ficou sem capacidade de agendamento e ação. Abriu-se, assim, o cenário surreal em que nos encontramos, no qual um governo recém-empossado parece prematuramente envelhecido e caminha para o ostracismo, ameaçando arrastar a sociedade consigo.
A gritaria é geral, mas pouco se faz para que se reponham as bases da convivência civilizada e produtiva entre os que pensam diferentemente.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais (neai) da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (24/10/15)
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